Direito Hoje | A alteração do critério de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente pela Emenda Constitucional nº 103/2019: primeiras reflexões e alguns testes de constitucionalidade
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Vitor Hugo Anderle
Vitor Hugo Anderle
Juiz Federal Substituto

Patrick Lucca Da Ros Patrick Lucca Da Ros
Juiz Federal Substituto, Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS
 
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 Vitor Hugo Anderle e Patrick Lucca Da Ros 

25 de julho de 2022

Resumo

O presente artigo busca analisar a (in)constitucionalidade das alterações promovidas pela Emenda Constitucional nº 103/2019, especificamente no que se refere à mudança do coeficiente de cálculo da renda mensal inicial da aposentadoria por invalidez/incapacidade permanente não acidentária. Para tanto, empreende-se o presente estudo levando em consideração, essencialmente, o direito à previdência social como direito fundamental social, de cunho prestacional, e as consequências de ordem interpretativa daí advindas. São propostos testes de constitucionalidade que tomam como suporte teórico as implicações da reforma sob o ângulo dos princípios da vedação ao retrocesso social, da irredutibilidade do valor dos benefícios, da igualdade, assim como dos postulados de razoabilidade e proporcionalidade. Ao final, apresenta-se uma síntese conclusiva sobre o tema ora proposto.

Palavras-chave: Emenda Constitucional nº 103/2019. Coeficiente de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária. Testes de constitucionalidade. Direitos sociais.

Sumário: Introdução. 1 Direito à previdência social como direito fundamental. 1.1 Três premissas de trabalho. 1.2 Primeira premissa: direito a prestações previdenciárias como direito fundamental de cunho socioeconômico (segunda geração). 1.3 Segunda premissa: aplicabilidade direta dos direitos fundamentais e seu status de cláusula pétrea quanto ao núcleo essencial. 1.4 Terceira premissa: direitos fundamentais prestacionais reclamam gastos públicos e, portanto, escolhas quanto à alocação de recursos escassos. 2 Alguns “testes de constitucionalidade” do tratamento diverso conferido pela Emenda Constitucional nº 103/2019. 2.1 Proteção ao núcleo essencial do direito fundamental à previdência social. 2.2 O princípio da vedação ao retrocesso social (ou da vedação de regressividade). 2.3 Princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios. 2.4 Princípio da igualdade. 2.5 Postulados de proporcionalidade e razoabilidade. Conclusão. Referências bibliográficas.

Introdução

A Emenda Constitucional nº 103/2019 (a chamada “Reforma da Previdência”) previu, em seu art. 26, caput e § 2º, III, acerca do cálculo do benefício de aposentadoria por incapacidade permanente de natureza não acidentária, o seguinte:

Art. 26. Até que lei discipline o cálculo dos benefícios do regime próprio de previdência social da União e do Regime Geral de Previdência Social, será utilizada a média aritmética simples dos salários de contribuição e das remunerações adotados como base para contribuições a regime próprio de previdência social e ao Regime Geral de Previdência Social, ou como base para contribuições decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal, atualizados monetariamente, correspondentes a 100% (cem por cento) do período contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência.

(...)

§ 2º O valor do benefício de aposentadoria corresponderá a 60% (sessenta por cento) da média aritmética definida na forma prevista no caput e no § 1º, com acréscimo de 2 (dois) pontos percentuais para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 (vinte) anos de contribuição nos casos:

(...)

III – de aposentadoria por incapacidade permanente aos segurados do Regime Geral de Previdência Social, ressalvado o disposto no inciso II do § 3º deste artigo; e

Mais adiante, no mesmo artigo, desta feita em seu § 3º, assim dispôs o constituinte derivado sobre o critério de cálculo do valor do benefício da aposentadoria por incapacidade permanente quando decorrente de acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho:

§ 3º O valor do benefício de aposentadoria corresponderá a 100% (cem por cento) da média aritmética definida na forma prevista no caput e no § 1º:

(...)

II – no caso de aposentadoria por incapacidade permanente, quando decorrer de acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho.

Como se verifica, a emenda constitucional estabelece, pelo menos enquanto não vier a ser editada lei que discipline distintamente o cálculo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, para eventos cobertos pela previdência social que são equivalentes – casos de incapacidade permanente aptos a gerar aposentadoria –, critérios de cálculo de valor do benefício completamente diversos, tendo como fator de discrímen único a origem da incapacidade.

Assim, se a inaptidão permanente decorrer de acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho, o montante do amparo estatal corresponderá à integralidade da média aritmética simples dos salários de contribuição e das remunerações adotados como base para contribuições correspondentes a todo o período contributivo desde a competência julho de 1994 ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência. Por outro lado, se a origem do infortúnio for outra, não acidentária (a exemplo de doenças orgânicas, sem qualquer relação com o trabalho ou ofício do indivíduo ou com eventos traumáticos, ou sequelas destas e/ou de seu tratamento), o valor do benefício consistirá em 60% dessa mesma média aritmética, acrescida de 2 pontos percentuais para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 anos de contribuição.

Embora, no segundo caso, o valor da renda mensal inicial do benefício possa vir a alcançar 100% da média dos salários de contribuição, fato é que, para tanto, será necessário que o(a) segurado(a) conte com, pelo menos, 20 anos de contribuição, o que possivelmente não ocorrerá em grande parte, talvez mesmo na maioria, das situações. Logo, o art. 26 da Emenda Constitucional nº 103/2019 promove tratamento diferenciado a eventos equiparados – inaptidão laboral permanente – em razão de eles derivarem de causas distintas, o que não existia anteriormente na legislação infraconstitucional e nas normas constitucionais.

O presente estudo visa a aferir, justamente, em que medida a dispensação de um tratamento diverso a situações de incapacidade permanente de segurados(as) do RGPS, com base única na causa da incapacidade – se, grosso modo, acidentária ou não [1] –, se sustenta à vista do ordenamento jurídico, tomando-se como parâmetro de análise, sobretudo, os princípios da vedação ao retrocesso social, da irredutibilidade do valor dos benefícios, da igualdade, da proporcionalidade e da razoabilidade. [2]

Ao final, espera-se contribuir, ainda que minimamente, ao debate acerca da questão proposta.

1 Direito à previdência social como direito fundamental

1.1 Três premissas de trabalho

Antes de se abordar a viabilidade constitucional da reforma trazida – e já levando em consideração o fato sedimentado jurisprudencialmente no sentido de que mudanças constitucionais podem se revelar inconstitucionais e, assim, vir a ser afastadas pelo Poder Judiciário em controle de constitucionalidade –, mostra-se pertinente frisar, desde já, três premissas importantes: (i) o direito a prestações previdenciárias consiste em direito fundamental de cunho socioeconômico (ou, como costuma ser chamado em doutrina, direito de segunda geração/dimensão, de caráter prestacional); (ii) os direitos fundamentais usufruem de aplicabilidade direta e de status de cláusula pétrea quanto ao seu núcleo essencial; e (iii) os direitos fundamentais prestacionais reclamam gastos públicos e, portanto, escolhas quanto à alocação de recursos escassos, sendo, ainda que excepcionalmente, sindicáveis essas escolhas em âmbito judicial.

Frente a tais considerações prévias, haverá melhores possibilidades de se analisar a viabilidade constitucional dos critérios de cálculo do benefício de aposentadoria por incapacidade permanente de natureza não acidentária diante do cálculo do benefício decorrente de acidente.

1.2 Primeira premissa: direito a prestações previdenciárias como direito fundamental de cunho socioeconômico (segunda geração)

A primeira premissa consiste no fato de que o direito a prestações previdenciárias traduz direito fundamental de segunda geração/dimensão. E, tratando-se de direito inscrito dentre aqueles reputados fundamentais, recebe tratamento constitucional diferenciado, em âmbito protetivo mais alargado.

Deveras, o direito à previdência social figura de forma genérica no art. 6º, ao passo que o direito à aposentadoria é elencado dentre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais no art. 7º, XXIV, em ambos os casos no Capítulo II (“Dos direitos sociais”) do Título II (“Dos direitos e garantias fundamentais”) da Constituição da República Federativa do Brasil. De forma específica, e em mais minúcias, o direito à previdência social é tratado na Seção III do Capítulo II do Título VIII da Constituição, vindo ainda abordado em outros pontos do diploma normativo em tela, com menção especial ao art. 40, que aborda o regime próprio de previdência social dos servidores públicos titulares de cargos de provimento efetivo.

Ainda, o direito à proteção estatal em caso de eventos esperados (idade avançada, por exemplo) ou inesperados (invalidez), na forma de previdência social, é preconizado em âmbito internacional por instrumentos notórios de direitos humanos, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (artigos 22 e 25) [3] e do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, incorporado à legislação nacional por meio do Decreto nº 591, de 06.07.1991 (artigo 9º). [4]

Portanto, percebe-se que o direito a prestações previdenciárias se enquadra como direito inerente à condição humana, fundamental, e, com isso, sujeita-se a regime normativo diferenciado.

1.3 Segunda premissa: aplicabilidade direta dos direitos fundamentais e seu status de cláusula pétrea quanto ao núcleo essencial

Enquanto direitos fundamentais, os direitos socioeconômicos usufruem, como ensinam Ingo Wolfgang Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo, do “regime pleno da dupla fundamentalidade formal e material dos direitos fundamentais” [5] :

Com efeito, para além de poderem ser reconhecidos como protegidos contra uma supressão e erosão pelo poder de reforma constitucional (por força de uma exegese necessariamente inclusiva do artigo 60, § 4º, inciso IV, da CF), os direitos sociais (negativos e positivos) encontram-se sujeitos à lógica do artigo 5º, § 1º, da CF, no sentido de que a todas as normas de direitos fundamentais há de se outorgar a máxima eficácia e efetividade possível, no âmbito de um processo em que se deve levar em conta a necessária otimização do conjunto de princípios (e direitos) fundamentais, sempre à luz das circunstâncias do caso concreto. Em outras palavras, também as normas de direitos sociais (inclusive de cunho prestacional) devem, em princípio, ser consideradas como dotadas de plena eficácia e, portanto, direta aplicabilidade, o que não significa (nem o poderia) que sua eficácia e efetividade deverão ser iguais.

Quando enunciados na Constituição, os direitos fundamentais sociais consistem em direitos imediatamente aplicáveis. Não traduzem, pois, inclusive quando estabelecidos nas chamadas “normas programáticas”, “meras recomendações ou preceitos morais com eficácia ético-política meramente derivativa”. [6] Isso decorre do comando do § 1º do art. 5º da Constituição, segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Todavia, sujeitam-se a espaço de conformação legislativa, ou seja, a uma margem substancial de autonomia na definição do seu modelo de efetivação, de que dotado o legislador [7] :

Num sistema político pluralista, as normas constitucionais sobre direitos sociais devem ser abertas para receber diversas concretizações consoante as alternativas periodicamente escolhidas pelo eleitorado. A apreciação dos fatores econômicos para uma tomada de decisão quanto às possibilidades e aos meios de efetivação desses direitos cabe principalmente aos governos e aos parlamentos.

Essa discricionariedade atua não só no âmbito de criação/implementação de direitos, mas, também, em menor grau – porque inerentemente vinculada a determinações constitucionais e legais –, na elaboração dos orçamentos. E, como não poderia deixar de ser, sujeita-se ao controle judicial quanto ao acatamento ao que determina a Constituição da República – pois, do contrário, faria “letra morta” a previsão constitucional de direitos sociais.

A propósito, defende Cláudio Ari Mello o seguinte [8] :

O sucesso e a vitalidade do modelo da democracia constitucional dependem da construção de uma teoria constitucional capaz de equilibrar os polos institucionais do regime. Portanto, não há como escapar de um arranjo que organize um balanceamento entre constitucionalismo e democracia. Esse arranjo recomenda a articulação de um ativismo judicial moderado e reflexivo, encarregado principalmente de garantir a eficácia dos direitos fundamentais, com a preservação e o fortalecimento da ética republicana e dos espaços de deliberação democrática. Assim, por um lado, deve-se afirmar a competência da jurisdição constitucional para concretizar diretamente a constituição e para controlar a concretização constitucional feita pelos demais poderes; por outro lado, deve-se aceitar e racionalizar a existência de limites que restrinjam a atuação do Poder Judiciário no exercício dessas competências, de modo a respeitar os espaços institucionais constitucionalmente deferidos aos órgãos de direção política do Estado. Como assinala Alexy, o problema já não diz respeito à existência da competência da jurisdição constitucional para controlar a atividade do legislador e do administrador, mas ao alcance dessa competência.

Contudo, os limites da justiça constitucional não podem ser o resultado de uma restrição heterônoma, seja ela fundada em um arranjo institucional normativamente vinculante, estabelecido por normas legais, seja ela fundada em uma teoria constitucional ideologicamente determinante, já que essa solução, em última instância, representaria, a pretexto de promover a democracia deliberativa, a opção por um regime legiscentrista de soberania parlamentar, no qual quem tem a última palavra e efetivamente comanda o processo jurídico-político de concretização da constituição é o legislador. Essa opção é incompatível com um regime constitucional dotado de um sistema de direitos fundamentais destinado a promover e proteger os bens e os valores que garantem a dignidade da pessoa humana e a justiça política da comunidade e que expressamente atribui ao Poder Judiciário a função de guardião da constituição. Ou seja, é incompatível com o regime constitucional brasileiro e com a maior parte dos sistemas constitucionais ocidentais.

O significado de uma teoria da autorrestrição judicial está em assegurar o equilíbrio entre a constituição dos direitos e a constituição do poder, os direitos fundamentais e a democracia, a jurisdição constitucional e os órgãos de direção política, o Direito e a política. Esse balanceamento, ou essa “homeostase”, é que permite estabilizar o princípio democrático e o princípio constitucional em um mesmo modelo de Estado, o Estado de Direito democrático-constitucional. Portanto, a doutrina da “judicial self-restraint” não pode ser uma teoria da evitação da jurisdição constitucional. A autorrestrição judicial só pode fazer sentido em uma concepção constitucional em que os tribunais estão liberados para exercer um ativismo judicial na proteção dos direitos fundamentais. No entanto, como esse ativismo não pode converter o Poder Judiciário em um poder constituinte permanente e, assim, sufocar o princípio republicano e a concretização política dos conteúdos constitucionais, é preciso estabelecer limites à atuação jurisdicional. Mas esses limites devem ser estabelecidos pelo próprio órgão judicial encarregado de interpretar e aplicar a constituição. Vale dizer, a restrição ao exercício da jurisdição constitucional fundamentada no respeito e no fortalecimento da democracia deliberativa deve ser sempre e apenas uma autorrestrição do Poder Judiciário.

No mais, os direitos fundamentais de segunda dimensão usufruem de proteção constitucional alargada, no sentido de que o art. 60, § 4º, IV, da Constituição veda a deliberação de proposta de emenda tendente a abolir os direitos e as garantias individuais. Em outras palavras, consistem em cláusulas pétreas.

No entanto, é pertinente frisar a compreensão firmada pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de que “(...) as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e dos institutos cuja preservação nelas se protege”. [9]

Daí por que, ao principiar a descrição do conteúdo do direito fundamental à previdência social, Daniel Machado da Rocha [10] explicita:

(...) em atenção aos valores e aos objetivos eleitos por nossa Constituição, especialmente nos artigos 1º e 3º, entendemos que o direito fundamental à previdência social goza de força jurídica privilegiada do inciso IV do artigo 60. Evidentemente, o fato de integrar o elenco das “cláusulas pétreas” não tem o condão de obstaculizar qualquer adaptação que seja necessária ao aperfeiçoamento da cobertura previdenciária ou a sua adequação aos contornos evolucionantes de nossa realidade social, ainda que o efeito seja uma indesejada redução de sua amplitude. Não sendo o nosso desejo aprofundar a problemática dos limites da revisão constitucional, impende destacar que somente a alteração agressora do núcleo fundamental da proteção previdenciária – instituída pelo legislador constituinte, diagnosticada no caso concreto pela insuportável afetação à dignidade da pessoa humana – não poderá ser admitida em qualquer circunstância.

Assim sendo, não obstante protegidas a título de direitos fundamentais de segunda geração, as prestações previdenciárias podem ser objeto de alteração constitucional, desde que mantido o seu núcleo essencial. Vale dizer, a essência do direito, a sua razão de ser, insitamente vinculada à dignidade humana, há de ser acatada pelo constituinte derivado, e não esvaziada, ainda que promovido esvaziamento por meio de mudanças normativas que, a uma primeira vista, não aparentariam vulnerar direitos dessa magnitude. Como exemplo, pode-se mencionar que não se admitiria que, em emenda constitucional, fossem recrudescidos os requisitos à obtenção de aposentadoria a tal ponto de esta se tornar inviável, na prática, a ampla gama da população – conjuntura que, se formalmente não implica a extinção do direito à aposentação, acabaria, no dia a dia, por via reflexa, quase que por bani-lo.

A ideia de manutenção do núcleo essencial de prestações jusfundamentais, dentre as quais aquelas de natureza previdenciário-assistencial, ademais, está umbilicalmente ligada à ideia de preservação do mínimo existencial. Ou seja, o respeito ao conteúdo intangível de um direito fundamental, à sua essência, pressupõe, pelo menos, que se assegure o mínimo inerente à existência digna da pessoa. Se sequer esse ponto de partida é respeitado, tem-se, na prática, a inexistência do direito, ou a existência de simulacro de direito.

Sem se aprofundar em demasia nesse aspecto, o que refugiria ao objetivo deste trabalho, é de se sublinhar que a acepção de mínimo existencial padece, como advertem Ingo Wolfgang Sarlet e Carolina Zancaner Zockun, de certa fluidez e vagueza, contando, ao lado de uma “zona de certeza positiva” – o que com certeza integra o mínimo existencial – e de uma “zona de certeza negativa” – o que se sabe não o compor –, com uma “zona de penumbra”, ainda que, muitas vezes, nos casos concretos – citam os autores Celso Antônio Bandeira de Mello –, as indeterminações acabem por assumir mais consistência. [11]

A respeito do mínimo existencial, os autores mencionam, ainda [12] :

Ainda no contexto do debate jurídico-constitucional alemão, é possível constatar a existência (embora não uníssona na esfera doutrinária) de uma distinção importante no concernente ao conteúdo e ao alcance do próprio mínimo existencial, que tem sido desdobrado num assim designado mínimo fisiológico, que busca assegurar as necessidades de caráter existencial básico e que, de certo modo, representa o conteúdo essencial da garantia do mínimo existencial, e um assim designado mínimo existencial sociocultural, que, para além da proteção básica já referida, objetiva assegurar ao indivíduo um mínimo de inserção – em termos de tendencial igualdade – na vida social, política e cultural. É nessa perspectiva que, no âmbito de sua justificação jurídico-constitucional, há quem diga que, enquanto o conteúdo essencial do mínimo existencial encontra-se diretamente fundado no direito à vida e na dignidade da pessoa humana (abrangendo, por exemplo, prestações básicas em termos de alimentação, vestuário, abrigo, saúde ou os meios indispensáveis para a sua satisfação), o assim designado mínimo sociocultural encontra-se fundado no princípio do Estado Social e no princípio da igualdade no que diz com o seu conteúdo material.

(…)

Do exposto, em especial com base na síntese da experiência alemã, que, à evidência, em termos de repercussão sobre o direito comparado, certamente é a mais relevante na perspectiva da dogmática jurídico-constitucional de um direito ao mínimo existencial, resultam já pelo menos duas constatações de relevo e que acabaram por influenciar significativamente os desenvolvimentos subsequentes. A primeira diz com o próprio conteúdo do assim designado mínimo existencial, que, consoante já verificado a partir da experiência alemã, não pode ser confundido com o que se tem chamado de mínimo vital ou um mínimo de sobrevivência, de vez que este último diz com a garantia da vida humana, sem necessariamente abranger as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida com certa qualidade. Não deixar alguém sucumbir por falta de alimentação, abrigo ou prestações básicas de saúde certamente é o primeiro passo em termos da garantia de um mínimo existencial, mas não é – e muitas vezes não o é sequer de longe – o suficiente. Tal interpretação do conteúdo do mínimo existencial (conjunto de garantias materiais para uma vida condigna) é a que tem prevalecido não apenas na Alemanha, mas também na doutrina brasileira, assim como na jurisprudência constitucional comparada, notadamente no plano europeu (…).

Em que pese certa convergência no que diz com uma fundamentação jurídico-constitucional a partir do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa humana, e tomando como exemplo o problema do conteúdo das prestações vinculadas ao mínimo existencial, verifica-se que a doutrina e a jurisprudência alemã partem – de um modo mais cauteloso – da premissa de que existem diversas maneiras de realizar esta obrigação, incumbindo ao legislador a função de dispor sobre a forma da prestação, seu montante, as condições para sua fruição, etc., podendo os tribunais decidir sobre este padrão existencial mínimo, nos casos de omissão ou desvio de finalidade por parte dos órgãos legiferantes. Relevante, todavia, é a constatação de que a liberdade de conformação do legislador encontra seu limite no momento em que o padrão mínimo para assegurar as condições materiais indispensáveis a uma existência digna não for respeitado, isto é, quando o legislador se mantiver aquém dessa fronteira. Tal orientação, de resto, é que aparentemente tem prevalecido na doutrina e na jurisprudência supranacional e nacional (constitucional) europeia, e, de algum modo, parece ter sido assumida como substancialmente correta também por expressiva doutrina e jurisprudência sul-americana, como dão conta importantes contribuições oriundas da Argentina e da Colômbia. Para o caso brasileiro, basta, por ora, lembrar o crescente número de publicações e de decisões jurisdicionais sobre o tema. No plano judicial, o destaque, dado o enfoque do presente texto, fica com o STF, que tem produzido muitas decisões aplicando a noção de um mínimo existencial a vários tipos de situações envolvendo diversos direitos fundamentais.

Portanto, a par de diretamente autoaplicáveis, os direitos fundamentais consistem em cláusulas petrificadas da Constituição, cujo núcleo essencial, ao qual vinculado extensamente o mínimo existencial, não pode ser vulnerado mediante atuação normativa do Congresso Nacional (e, em geral, de todos os poderes).

1.4 Terceira premissa: direitos fundamentais prestacionais reclamam gastos públicos e, portanto, escolhas quanto à alocação de recursos escassos

A terceira premissa, por sua vez, diz respeito ao reconhecimento, haurido da teoria geral dos direitos fundamentais, de que os direitos a prestações, tal como o direito à previdência social de que ora se cuida, por demandarem uma necessária ação positiva estatal, possuem, conforme ensinam Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, “peculiaridades estruturais, em termos de níveis de densidade normativa, que os distinguem dos direitos de defesa, não somente quanto à finalidade, mas, igualmente, quanto ao seu modo de exercício e à eficácia”. [13] Vale dizer, a efetivação de direitos fundamentais prestacionais dependerá da existência de recursos aptos a tanto (na medida em que implicam gasto público), bem assim de escolhas políticas.

Como ponderam os autores mencionados [14] :

Os direitos a prestação material, como visto, conectam-se ao propósito de atenuar desigualdades fáticas de oportunidades. Têm que ver, assim, com a distribuição da riqueza na sociedade. São direitos dependentes da existência de uma dada situação econômica favorável à sua efetivação. Os direitos, aqui, submetem-se ao natural condicionante de que não se pode conceder o que não se possui.

Os direitos a prestação material têm a sua efetivação sujeita às condições, em cada momento, da riqueza nacional. Por isso mesmo, não seria factível que o constituinte dispusesse em minúcias, de uma só vez, sobre todos os seus aspectos. Por imposição da natureza do objeto dos direitos a prestação social, o assunto é entregue à conformação do legislador ordinário, confiando-se na sua sensibilidade às possibilidades de realização desses direitos em cada momento histórico.

Os direitos a prestação notabilizam-se por uma decisiva dimensão econômica. São satisfeitos segundo as conjunturas econômicas, de acordo com as disponibilidades do momento, na forma prevista pelo legislador infraconstitucional. Diz-se que esses direitos estão submetidos à “reserva do possível”. São traduzidos em medidas práticas tanto quanto permitam as disponibilidades materiais do Estado.

A escassez de recursos econômicos implica a necessidade de o Estado realizar opções de alocação de verbas, sopesadas todas as coordenadas do sistema econômico do país. Os direitos em comento têm que ver com a redistribuição de riquezas – matéria suscetível às influências do quadro político de cada instante. A exigência de satisfação desses direitos é mediada pela ponderação, a cargo do legislador, dos interesses envolvidos, observado o estádio de desenvolvimento da sociedade.

Com efeito, a atribuição estatal de direitos e sua concretização na prática implicam custos ao Erário. Direitos custam dinheiro ao Estado, seja na forma de pagamento direto ao indivíduo – por exemplo, na destinação de valores orçamentários ao pagamento de aposentadorias, mas também de seguro-desemprego e, mais recentemente, em época pandêmica, também do auxílio emergencial previsto na Lei nº 13.982, de 02.04.2020 –, seja de forma indireta – mediante, v.g., a manutenção de um aparato estatal destinado à proteção de direitos, como é o caso do Poder Judiciário, mas também, dentro do Poder Executivo, de agências reguladoras, de órgãos de fiscalização, de ministérios e secretarias, e assim por diante.

Ou seja, é fato que direitos prestacionais demandarão atuação direta do Estado (prestações “positivas”), como sucede, por exemplo, quando este paga benefícios previdenciários ou assistenciais, ou quando mantém escolas para garantir o direito à educação, ou, ainda, quando mantém o Sistema Único de Saúde para atender ao comando constitucional que obriga o poder público a entregar prestações de saúde.

Essa peculiaridade, ao contrário do que de forma bastante comum se propugna, também é uma realidade em relação aos chamados direitos de liberdade (ou direitos de primeira dimensão/geração). Há gastos públicos no assegurar de direitos que a uma primeira vista ensejariam apenas conduta não interventiva (abstenção de comportamento) por parte do Estado, como sucede quando este disponibiliza instrumentos judiciais para afastar esbulho possessório, protegendo a posse e a propriedade; ou garante treinamento a agentes policiais e penitenciários para não torturarem custodiados, bem assim aplica penalidades, administrativas e criminais, quando comprovada a ocorrência efetiva de tortura, assegurando atuação contra a tortura; ou quando organiza as eleições, que são sabidamente dispendiosas, para assegurar o direito ao voto.

Por consequência, contrariamente à crença muitas vezes disseminada de forma acrítica, não são apenas os direitos sociais a reclamarem alocação de recursos públicos, e sim todo e qualquer direito, como demonstram Cass Sunstein e Stephen Holmes [15] :

Uma máxima clássica da ciência jurídica diz que “não há direito sem o remédio jurídico correspondente”. Os indivíduos só gozam de direitos no sentido jurídico, e não apenas no sentido moral, quando as injustiças de que são objeto são reparadas pelo Estado de maneira justa e previsível. Essa realidade simples já revela o quanto é insuficiente a distinção entre direitos negativos e positivos. O que ela demonstra é que todos os direitos passíveis de imposição jurídica são necessariamente positivos.

Os direitos têm um custo alto porque o custo dos remédios é alto. Garantir os direitos sai caro, especialmente quando essa garantia é justa e uniforme; e os direitos jurídicos não têm significado algum quando não são garantidos coercitivamente. (…) Toda lei proibitiva, sejam quem forem os seus destinatários, implica tanto a concessão afirmativa de um direito pelo Estado quanto a pretensão legítima à solicitação de assistência do mesmo Estado, caso a lei seja desobedecida.

(…) Todos os direitos custam caro porque todos eles pressupõem que o contribuinte financie um mecanismo eficiente de supervisão, que monitore o exercício dos direitos e os imponha quando necessário.

(…)

Na mesma medida em que a garantia dos direitos depende da vigilância judicial, os direitos custam no mínimo o montante necessário para recrutar, treinar, fornecer, pagar e (como não?) monitorar os órgãos judiciais que guardam nossos direitos básicos.

Assim sendo, tutelar direitos sociais, dentre os quais inegavelmente os previdenciários, da mesma forma que a todo e qualquer direito, significará dispêndio de recursos públicos, os quais são sabidamente escassos. Em outras palavras, tutelar direitos em geral implica custos à coletividade, inclusive quanto aos assim chamados direitos de primeira geração. Portanto, trata-se de um equívoco a contraposição entre uma pretensa “gratuidade” de alguns direitos, prevalentemente as liberdades “contra” o Estado, e o alto custo de outros, notadamente os direitos de seguridade social; na verdade, todos os direitos são custosos, a demandar, pelo menos, a presença de todo um aparato estatal para que possam ser efetivados. E esse aparato todo, como mencionam Sunstein e Holmes, é bastante caro.

O respeito a todo e qualquer direito reclama, ainda que em diferentes medidas e quantidades, pois, a alocação de recursos públicos.

Com isso, na prática, o que na realidade não raro há é questão muito mais de decisão política quanto à alocação dos recursos do que, propriamente, o privilegiar de direitos “gratuitos” ou “baratos”, que “caberiam” no orçamento, contra direitos reputados “caros”. Por isso que optar por uma previdência mais protetiva, com a correspondente vinculação de receitas orçamentárias ao pagamento de benefícios – mas também com as manifestas repercussões socioeconômicas dessa escolha –, significará que custos diversos terão de ser reduzidos ou suprimidos, inclusive em outra sorte de direitos; “afirmar que um direito tem um certo custo é confessar que temos que renunciar a algo para adquiri-lo ou garanti-lo”. [16] Mas essa escolha não deverá seguir, como critério, o argumento – não verdadeiro, viu-se – de que os direitos de liberdade nada custam aos cofres estatais e os direitos sociais, sim, como se aqueles, justamente por uma questionável ausência de custos, fossem intangíveis, e estes, por serem “caros”, fossem uma primeira opção de “sacrifício” em momentos de “aperto” orçamentário ou de pura e simples opção por viés de governo mais austero.

Sem embargo isso, só por si, não baste a assegurar que sempre esses direitos deverão preponderar, cumpre levar em conta essa circunstância como elemento de análise na legitimidade da escolha política de porventura diminuir ou enfraquecer a abrangência de certo direito, sobretudo se esta é norteada por um alegado alto custo (real ou apenas retórico), à vista de princípios ou postulados constitucionais caros, como a igualdade, a razoabilidade e a proporcionalidade.

De qualquer forma, o fato é que o orçamento estatal não é ilimitado, e sua destinação a uma ou outra política, ou a um ou outro direito, implica necessariamente a realização de escolhas, à luz dos montantes a que o Estado tem acesso ou a que pode ter (mediante empréstimos, por exemplo). Por conseguinte, administrar é fazer escolhas, e estas muitas vezes poderão ser trágicas. Em termos de direitos jusfundamentais sociais, muitas vezes há “fuga” de efetividade na sua não eleição como prioridade em políticas públicas, ou mesmo de políticas públicas que não os contemplem de forma ampla, o que pode ensejar desrespeito ao art. 5º, § 1º, da Carta Constitucional.

Com efeito, não raro se justifica a não implementação de direitos fundamentais na ideia de reserva do possível. Conforme Ingo Sarlet e Mariana Figueiredo, [17]

a assim designada reserva do possível apresenta pelo menos uma dimensão tríplice, que abrange a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade. Todos os aspectos referidos guardam vínculo estreito entre si e com outros princípios constitucionais, exigindo, além disso, um equacionamento sistemático e constitucionalmente adequado, para que, na perspectiva do princípio da máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, possam servir não como barreira intransponível, mas inclusive como ferramental para a garantia também dos direitos sociais de cunho prestacional.

Sublinhe-se, nesse contexto, que não se trata de limitar toda a problemática envolvendo a busca da eficácia dos direitos fundamentais sociais em sua dimensão prestacional tão somente à referência e ao inevitável confronto com a reserva fática do financeiramente possível. [18] Para além disso, é inescapável o cotejo e o balanceamento com outros princípios constitucionais, em relação de precedência condicionada de acordo com os contornos do caso concreto, atentando-se, assim, também e da mesma forma, às possibilidades jurídicas. [19]

Dessa forma, não há discordar do fato de que em contabilidade pública inexistem soluções mágicas, que garantam recursos onde eles não existem. A inexistência destes poderá, sim, constituir um empecilho na implementação fática de políticas públicas e, com elas, de direitos, inclusive de natureza fundamental.

Ainda: mesmo que se entenda que a realidade fática porventura possa, em algum grau, ensejar a limitação ou, em casos extremos, inclusive o afastamento do direito em certo período – como ocorreria, por exemplo, se realmente os recursos fossem escassíssimos –, a realização das escolhas na alocação dos recursos deve estar devidamente fundamentada, e os fundamentos devem ser razoáveis e comprováveis. Vale dizer, as escolhas, sobretudo quando acarretarem vulnerabilidade à consecução de direitos fundamentais, devem vir acompanhadas de um reforço argumentativo, calcado em fundamentação idônea, não só porque assim o exige o funcionamento da coisa pública (já que o direito administrativo reclama a motivação das escolhas do gestor), mas também porque estarão em jogo direitos extremamente caros, inerentes à própria condição humana, cujo enfraquecimento há de se justificar pela situação concreta [20] :

Nesse contexto, dada a íntima conexão desta problemática com a discussão em torno da assim designada “reserva do possível” na condição de limite fático e jurídico à efetivação judicial (e até mesmo política) de direitos fundamentais – e não apenas dos direitos sociais, consoante já frisado –, vale destacar que também resta abrangida na obrigação de todos os órgãos estatais e agentes políticos a tarefa de maximizar os recursos e minimizar o impacto da reserva do possível. Isso significa, em primeira linha, que, se a reserva do possível há de ser encarada com reservas, também é certo que as limitações vinculadas à reserva do possível não são, em si mesmas, necessariamente uma falácia. O que tem sido, de fato, falaciosa é a forma pela qual muitas vezes a reserva do possível tem sido utilizada entre nós como argumento impeditivo da intervenção judicial e desculpa genérica para a omissão estatal no campo da efetivação dos direitos fundamentais, especialmente de cunho social. Assim, levar a sério a “reserva do possível” (e ela deve ser levada a sério, embora sempre com as devidas reservas) significa também, especialmente em face do sentido do disposto no artigo 5º, § 1º, da CF, que cabe ao poder público o ônus da comprovação da falta efetiva dos recursos indispensáveis à satisfação dos direitos a prestações, assim como da eficiente aplicação daqueles. Por outro lado, para além do fato de que o critério do mínimo existencial – como parâmetro do reconhecimento de direitos subjetivos a prestações – por si só já contribui para a “produtividade” da reserva do possível, há que explorar outras possibilidades disponíveis na nossa ordem jurídica e que, somadas e bem utilizadas, certamente haverão de reduzir de modo expressivo, se não até mesmo neutralizar, o seu impacto, inclusive no que diz com prestações que transcendam a garantia do mínimo existencial.

Com isso, se o Estado gasta mal seus recursos, destinando parte deles a despesas supérfluas, dificilmente subsistirá como legítima a limitação a direitos fundamentais, sobretudo quando ligados ao mínimo existencial. Nesses termos, a escolha política, ainda que possa contar com certo verniz de legitimidade, poderá na prática não ser, ao cabo, devidamente respeitadora do que determina a Constituição da República, e mesmo do teor de compromissos assumidos internacionalmente pelo Brasil em tema de direitos humanos.

2 Alguns “testes de constitucionalidade” do tratamento diverso conferido pela Emenda Constitucional nº 103/2019

Assentadas as premissas de análise da higidez constitucional das mudanças trazidas pelo art. 26 e parágrafos da Emenda Constitucional nº 103/2019, mostra-se pertinente fazer alguns “testes de constitucionalidade” de suas disposições, a fim de apurar se, à luz da Constituição Federal de 1988, estas permaneceriam hígidas. Para tanto, verificar-se-á se as mudanças subsistem diante da proteção ao núcleo essencial do direito fundamental à previdência social; da vedação ao retrocesso social; da irredutibilidade do valor dos benefícios previdenciários; do princípio da igualdade/isonomia; e dos postulados da proporcionalidade/razoabilidade.

2.1 Proteção ao núcleo essencial do direito fundamental à previdência social

Se, como dito, o direito à proteção previdenciária consiste em direito fundamental de 2ª geração/dimensão, resta perquirir se a Emenda Constitucional nº 103/2019, mais detidamente seu art. 26, violou o seu núcleo essencial, ao alterar o salário de benefício e o critério de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente.

Faz-se necessária, aqui, a comparação entre o regime antecedente e aquele ora vigente após a edição e a publicação da Emenda Constitucional nº 103/2019. Para tanto, colhe-se da doutrina de João Batista Lazzari o seguinte [21] :

a) Salário de benefício: regra anterior e posterior à Reforma da Previdência

(...) o salário de benefício era calculado com base na média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a 80% de todo o período contributivo, desde a competência julho de 1994, ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência. Nessa fórmula, era possível excluir os menores salários de contribuição, aumentando a média final do salário de benefício.

A EC 103/2019 estabeleceu no art. 26 que, até que lei discipline o cálculo dos benefícios, será utilizada a média aritmética simples dos salários de contribuição atualizados monetariamente, correspondentes a 100% do período contributivo desde a competência julho de 1994, ou desde o início da contribuição, se posterior àquela competência. Referida média, assim como no modelo anterior, será limitada ao valor máximo do salário de contribuição do RGPS.

Essa alteração provoca uma perda significativa no cálculo dos benefícios ao impedir a exclusão de 20% dos menores salários de contribuição, ou seja, todas as competências com contribuição, independentemente do valor, passam a integrar o período básico de cálculo do salário de benefício. No entanto, aplicada a regra do descarte de salários de contribuição (art. 26, § 6º, da EC 103/2019), poderá haver um ganho na apuração do salário de benefício para os segurados com mais de 12 contribuições.

b) Coeficiente de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente

Na LBPS, havia a previsão de que o coeficiente de cálculo da aposentadoria por invalidez, inclusive a decorrente de acidente do trabalho, correspondia a 100% do salário de benefício (art. 44). E, na hipótese de o segurado necessitar de assistência permanente de outra pessoa, era previsto um acréscimo de 25%, podendo nesse caso ultrapassar o teto máximo dos benefícios do RGPS.

No entanto, a EC 103/2019 estabeleceu (art. 26) novos coeficientes de cálculo. Vejamos:

b.1) aposentadoria por incapacidade permanente (não acidentária): corresponderá a 60% do salário de benefício, com acréscimo de dois pontos percentuais para cada ano de tempo de contribuição que exceder o tempo de 20 anos de contribuição, no caso dos homens, e de 15 anos, no caso das mulheres.

Sublinhe-se que não se trata da primeira alteração promovida no coeficiente de cálculo da aposentadoria por invalidez (ou, na nomenclatura atual, benefício por incapacidade permanente), pois a redação original do art. 44 da Lei nº 8.213/1991 já havia sido objeto de mudança pela Lei nº 9.032/1995, que passou a prever 100% do salário de benefício em vez de 80% mais 1% por grupo de 12 (doze) contribuições, consoante inicialmente estabelecido na Lei nº 8.213/1991. É bem verdade que, como se pode perceber, na ocasião, a legislação editada foi, em princípio, mais benéfica para o segurado.

De qualquer forma, isso evidencia que não há falar em intangibilidade do direito social como algo sacrossanto per se, sujeito que está às limitações de ordem econômico-financeira de um dado momento. E essa possibilidade de ajustes a serem empreendidos pelo legislador reformista traduz poder-dever decorrente do art. 201, caput, da Constituição Federal, que preceitua que “a previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial”. Se a preservação do equilíbrio financeiro e atuarial é também ditame constitucional, resulta natural que, de tempos em tempos, possa haver revisões nas normas previdenciárias constitucionais ou legais, inclusive de maneira a tornar a situação dos segurados menos favorável – desde que, como já dito, venham devidamente fundamentadas e não prejudiquem o núcleo essencial do direito e o mínimo existencial.

A propósito, da exposição de motivos da Proposta de Emenda à Constituição nº 06/2019 extrai-se, dentre outros argumentos, a seguinte justificativa [22] :

As alterações se enquadram na indispensável busca por um ritmo sustentável de crescimento das despesas com previdência em meio a um contexto de rápido e intenso envelhecimento populacional, constituindo, assim, elemento fundamental para o equilíbrio das contas públicas e a atenuação da trajetória de crescimento explosivo da dívida pública. De modo geral, portanto, propõe-se a construção de um novo sistema de seguridade social sustentável e mais justo, com impactos positivos sobre o crescimento econômico sustentado e o desenvolvimento do país.

Não há dúvida de que as reformas que vêm sendo promovidas em nível constitucional, principalmente considerando o teor das Emendas Constitucionais nº 20/1998, nº 41/2003 e nº 103/2019, possuem como ponto em comum a lógica de fundo consistente na redução de despesas mediante o endurecimento das regras de concessão e a diminuição de valores dos benefícios. [23]

Apesar disso, do ponto de vista do controle de constitucionalidade do art. 26, naquilo que se refere à leitura ampliada do novo regime estabelecido para o cálculo da renda mensal inicial da aposentadoria por invalidez/aposentadoria por incapacidade permanente não acidentária, não há como de maneira concludente reconhecer mácula no texto aprovado, considerando que a conformação do direito pelo constituinte derivado não importou em ofensa evidente ao seu núcleo essencial.

Gize-se que não se está a negar que o novo regime possa vir a acarretar cálculo desfavorável ao segurado em relação à legislação que anteriormente fixava as balizas de sua elaboração (art. 44 da Lei nº 8.213/1991). Todavia, daí não se conclui que as alterações promovidas tenham, à luz do referido fundamento, promovido “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” da política pública de previdência social, ou mesmo desrespeito à dignidade das pessoas protegidas pela seguridade social no Brasil. Ajustes, ainda que para pior, podem ser feitos em direitos fundamentais prestacionais, desde que, como já mencionado, dentre outras vicissitudes, reste preservado o seu núcleo essencial – e, a princípio, parece que este não foi vulnerado.

Tampouco se divisa a pecha da inconstitucionalidade pelo fato de o novo regramento prever que o valor do benefício será calculado com base na média de todo o histórico de contribuições do segurado, sem a possibilidade de exclusão das 20% menores, tal como constava da Lei nº 9.876/1999. No caso, há de se prestigiar a discricionariedade legislativa, calcada na lógica macroeconômica e na sustentabilidade atuarial, notadamente quando não é possível inferir, a toda evidência, malferimento ao núcleo essencial do direito em análise.

Em suma, não há elementos seguros que permitam concluir que a graduação econômica do benefício previdenciário, em decorrência do art. 26, caput, da Emenda Constitucional nº 103/2019, venha a sofrer aniquilamento ou esvaziamento expressivo a ponto de impor o reconhecimento do esvaziamento do seu núcleo duro.

É de se perceber, aliás, que o próprio art. 26, § 6º, prevê que

poderão ser excluídas da média as contribuições que resultem em redução do valor do benefício, desde que mantido o tempo mínimo de contribuição exigido, vedada a utilização do tempo excluído para qualquer finalidade, inclusive para o acréscimo a que se referem os §§ 2º e 5º, para a averbação em outro regime previdenciário ou para a obtenção dos proventos de inatividade das atividades de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal.

Nesse contexto, à míngua de demonstração evidente no sentido de que, uma vez operadas essas mudanças, quedou-se ferido o núcleo do direito, tem-se que, a uma primeira vista, deve-se prestigiar a escolha do constituinte derivado, jungido que está à observância da preservação do equilíbrio financeiro e atuarial do regime previdenciário, entendendo-se, por ora, a presunção da constitucionalidade da alteração promovida. [24]

Da mesma forma, eventual diminuição do montante do benefício não significa, só por si, vulneração ao mínimo existencial, sobretudo se, como no caso, não foi atingido o piso de benefícios, um salário mínimo, que segue assegurado (art. 201, § 2º, da Constituição da República). [25]

Por conseguinte, não se visualiza, à partida, inconstitucionalidade na alteração pontual do texto constitucional, sob o enfoque da preservação do núcleo essencial. [26]

2.2 O princípio da vedação ao retrocesso social (ou da vedação de regressividade)

A ideia de vedação ao retrocesso social é intrinsecamente vinculada à de direitos fundamentais e, além de bastante estabelecida em âmbito doutrinário, também veio consolidada em terras brasileiras por meio da promulgação, trazida pelo Decreto nº 591, de 06.07.1992, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, adotado pela XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 19 de dezembro de 1966. Conforme o art. 2.1 do referido tratado internacional,

cada Estado-Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas. (destaque adicionado)

Como observam Victor Abramovich e Christian Courtis, a noção de progressividade do pacto – também comum a outros instrumentos internacionais de proteção de direitos econômicos, sociais e culturais, a exemplo do Pacto de San José da Costa Rica (art. 26) – abarca dois sentidos complementares: o “reconhecimento de que a satisfação plena dos direitos estabelecidos no pacto supõe certa gradualidade”, ou seja, tomar em conta que a realização desses direitos pode levar tempo, sem que isso traduza a ausência de uma obrigação, por parte dos Estados signatários, de envidar os esforços necessários para rapidamente cumprir a meta protetiva; e a ideia de progresso, ou seja, a “obrigação estatal de melhorar as condições de gozo e exercício dos direitos econômicos, sociais e culturais”. [27]

Mais adiante, arrematam os autores [28] :

Desta obrigação estatal de implantação progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais podem ser extraídas algumas obrigações concretas, possíveis de serem submetidas à revisão judicial em caso de não cumprimento. A obrigação mínima assumida pelo Estado a respeito é a obrigação de não regressividade, ou seja, a proibição de adotar políticas, medidas e, por consequência, sancionar normas jurídicas que piorem a situação dos direitos econômicos, sociais e culturais de que usufruía a população no momento de adoção do respectivo tratado internacional ou também em cada melhora “progressiva”. Dado que o Estado se obriga a melhorar a situação desses direitos, simultaneamente assume a proibição de reduzir os níveis de proteção dos direitos vigentes ou, por outro lado, de derrogar os direitos já existentes. A obrigação assumida pelo Estado é ampliativa, de modo que a derrogação ou redução dos direitos vigentes contradiz frontalmente o compromisso internacional assumido.

Assim sendo, se os direitos econômicos, sociais e culturais devem ser salvaguardados em um horizonte de ampliação de direitos – proteção progressiva –, a consequência/contrapartida é a inviabilidade de retrocesso nas conquistas sociais. A direção deve ser a da ampliação de direitos fundamentais, não se admitindo regressos.

Em teoria, a determinação convencional é irretocável e encantadora. Todavia, fica em aberto como se analisa o que é retrocesso, ou, rectius, como este é examinado do ponto de vista dos direitos: em um contexto, por exemplo, de previdência social, nenhuma disposição nunca poderá ser alterada em prejuízo dos segurados, ou é a previdência social como um todo que não poderá sofrer retrocessos? Como observar a ampliação progressiva se o próprio andar da sociedade também alterna momentos de expansão e de retração de direitos? Ainda: como se compatibiliza o princípio diante da determinação, de matriz constitucional, de que se deve preservar o equilíbrio financeiro e atuarial, em especial em contextos em que também a realidade econômica é mutável? [29]

As respostas não são fáceis, mas deverão passar por aspectos como a garantia do mínimo existencial e a preservação do núcleo essencial, de maneira que a existência de retrocesso, ou não, haverá de considerar se as conquistas de determinado momento histórico, que assegurem o que então se visualiza como o piso de sobrevivência digna, foram devidamente mantidas e respeitadas. Outro norte hermenêutico viável é o da proporcionalidade/razoabilidade, no sentido de as mudanças operadas, a par de atentas ao mínimo existencial e ao núcleo essencial do direito, justificarem-se à luz das circunstâncias concretas.

Nesse sentido, extrai-se das lições de J. J. Gomes Canotilho o seguinte [30] :

A “proibição de retrocesso social” nada pode fazer contra as recessões e crises económicas (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos “direitos adquiridos” (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do “princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural, e do núcleo essencial” da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. (...) A violação do núcleo essencial efectivado justificará a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada “justiça social”. Assim, por ex., será inconstitucional uma lei que extinga o direito a subsídio de desemprego ou pretenda alargar desproporcionadamente o tempo de serviço necessário para a aquisição do direito à reforma. A liberdade de conformação do legislador nas leis sociais nunca pode afirmar-se sem reservas, pois está sempre sujeita ao princípio da igualdade, princípio da proibição de discriminações sociais e de políticas antissociais. As eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito vinculativos da actividade legislativa e o “núcleo essencial” dos direitos fundamentais. O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado por meio de medidas legislativas (“lei da segurança social”, “lei do subsídio de desemprego”, “lei do serviço de saúde”) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa “anulação”, “revogação” ou “aniquilação” pura e simples desse núcleo essencial. Não se trata, pois, de proibir um retrocesso social captado em termos ideológicos ou formulado em termos gerais ou de garantir em abstracto um status quo social, mas de proteger direitos fundamentais sociais sobretudo no seu núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e a inerente autorreversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado, sobretudo quando o núcleo essencial se reconduz à garantia do mínimo de existência condigna inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana.

Ao analisar em termos gerais a Emenda Constitucional nº 103/2019, João Batista Lazzari et al. constataram que “da análise das inovações trazidas pela EC 103/2019 pode-se afirmar que a reforma promovida causou um sério desajuste na proteção previdenciária que estava em vigor, em virtude da precarização das regras de concessão, de cálculo e de manutenção dos benefícios do RGPS”. [31]

Pensando nas disposições da emenda como um todo, talvez se poderia defender, em uma análise inicial, que, realmente, houve um colossal movimento de desproteção dos indivíduos, em prol de uma almejada “saúde fiscal”. [32] Mas isso demandaria aprofundamentos em estudo específico, que refoge aos propósitos deste ensaio.

Contudo, examinando a alteração sobre a qual versa este texto por si só – e não no contexto integral da emenda –, e para além da constatação extraída da doutrina constitucional sobre o inegável entrelaçamento entre a compleição jurídica do direito social e a disponibilidade material estatal (riqueza nacional), a ser ponderada precipuamente pelo órgão político quando da sua conformação, poder-se-ia cogitar acerca da existência de ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso social, na medida em que houve, a partir da Emenda Constitucional nº 103/2019, desequiparação injustificável quanto aos benefícios acidentários e não acidentários. Sublinhe-se que, com o advento da Lei nº 9.032/1995, a forma de cálculo passou a ser idêntica, havendo, com a emenda de 2019, a renovação da distinção entre as situações.

No âmbito pretoriano, o Supremo Tribunal Federal já decidiu na direção de que alteração como aquela sobre a qual ora se debruça este ensaio não traduziria desrespeito à vedação de retrocesso:

ADICIONAL DE PERICULOSIDADE – BASE DE CÁLCULO – ALTERAÇÃO. Ausente parâmetro de controle a estabelecer patamar mínimo alusivo ao adicional de periculosidade, surge constitucional ato normativo mediante o qual alterada base de cálculo. NORMA INFRACONSTITUCIONAL – PARÂMETRO DE CONTROLE ESTRITO – VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL – IMPROPRIEDADE. Tendo em conta avanço na tutela de direitos mediante norma infraconstitucional, é impróprio, considerado tratamento estrito dado à matéria pela Constituição Federal, potencializar o princípio da vedação ao retrocesso social, a ponto de, invertendo a ordem natural, transformar em cláusula pétrea legislação ordinária ou complementar. [33]

Sem embargo consista a decisão do Supremo Tribunal Federal, sobretudo quando proferida em controle concentrado de constitucionalidade, em riquíssimo norte interpretativo, é de se contestar se, de fato, uma norma infraconstitucional de tutela de direitos sociais, quando devidamente amparada em normas constitucionais e convencionais de direitos humanos e fundamentais, não alcançaria um estatuto próprio de cláusula pétrea, ou, ainda, se não se cristalizaria pelo menos enquanto mínimo protetivo. Ou seja, caso uma previsão de nível legal trouxesse a operacionalização, na prática, de um princípio jusfundamental constitucional básico, e, pari passu, materializasse o mínimo existencial, seria defensável que essa norma, não obstante formalmente infraconstitucional, alcançasse estatuto constitucional; e, com isso, reclamasse maior proteção, inclusive, cuidando-se de direito social, também enquanto limite à regressão de direitos. [34]

Apesar disso, a alteração da sistemática de cálculo de um benefício previdenciário, em que pese possa se dar para pior, não parece, só em vista disso, acarretar um efetivo retrocesso na proteção do direito à previdência social – pelo menos, não para o efeito da vedação de regressividade. Se, como dito, o princípio da vedação ao retrocesso deve levar em consideração que não há involução social quando preservados os direitos sociais no mínimo existencial e em seu núcleo, não parece que a mudança na forma de cálculo de benefício vá vulnerar em demasia, só por si, o direito à previdência, ou, ainda, que vá ensejar ferimento ao mínimo existencial, ressalvadas situações extremas (por exemplo, condução do valor de benefícios para patamares ínfimos). Como dito anteriormente, são viáveis mudanças “para pior”, sem que isso signifique sempre que o núcleo essencial do direito fundamental tenha sido suprimido ou diminuído, ou que elas implicarão ofensa à dignidade do(a) segurado(a), em sua dimensão de existência.

Assim, não há, em princípio, inconstitucionalidade com fundamento no princípio de vedação ao retrocesso social.

2.3 Princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios

O art. 194, parágrafo único, IV, da Constituição da República prevê competir ao poder público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base, também, na irredutibilidade do valor dos benefícios. De pronto, pode-se questionar se o art. 26, § 2º, III, da Emenda Constitucional nº 103/2019 estaria em descompasso com essa previsão constitucional.

Antes, porém, faz-se indispensável contextualizar a análise, inclusive com o atual regime jurídico previsto para o auxílio-doença, atualmente auxílio por incapacidade temporária.

Para tanto, colhe-se da obra de Daniel Machado da Rocha [35] o seguinte excerto:

Como a EC nº 103/19 não trata do coeficiente do auxílio-doença, seu cálculo continuará regido pelo art. 61 da LBPS, com renda equivalente a 91% do salário de benefício, para qualquer caso. Apesar de a renda mensal inicial estar limitada à média dos 12 salários de contribuição (§ 10 do art. 29), a aplicação da nova metodologia de cálculo prevista no art. 26 da EC nº 103/2019 poderá trazer uma situação paradoxal. Ocorre que, se a aposentadoria por incapacidade permanente não decorrer de acidente do trabalho, sendo o tempo de filiação inferior a 20 anos, no caso do homem, ou 15 anos, no caso da mulher, o trabalhador terá direito apenas a 60% da média.

Como exemplo, vamos imaginar que um segurado com 5 anos de contribuição entra em gozo de auxílio-doença. Depois de 3 anos, a perícia do INSS recomenda a conversão do benefício em aposentadoria por invalidez. Pergunta-se, poderia o trabalhador receber uma aposentadoria por invalidez com valor menor que o auxílio-doença que até então era recebido? Nessa situação, defendo uma interpretação pautada pelo princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios. Assim, como a redução da renda do trabalhador não apresenta nenhuma justificativa plausível, ferindo o inciso IV do parágrafo único do art. 194 da Constituição Federal, o benefício de aposentadoria por invalidez deveria manter o mesmo valor do auxílio-doença.

Também Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari [36] chamam atenção para os reflexos na renda mensal inicial da aposentadoria por invalidez não acidentária precedida de auxílio-doença, em decorrência do art. 26, § 2º, III, da Emenda Constitucional nº 103/2019, defendendo a aplicação do princípio da irredutibilidade dos benefícios, conforme se verifica da seguinte passagem de sua obra:

Essa mudança no cálculo representa uma perda significativa de renda do segurado que se tornar incapaz de forma permanente para o trabalho, salvo na hipótese de a incapacidade ter resultado de acidente do trabalho, em situações assemelhadas ao acidente típico, em casos de doença profissional e de doença do trabalho. Este tema deverá acarretar grandes controvérsias também porque, em caso de incapacidade permanente não acidentária, o valor do benefício de aposentadoria pode ser, e bem possivelmente será, calculado em valor menor que o auxílio-doença que o antecedeu, situação que pode acarretar a arguição de que há violação quanto à irredutibilidade do valor do benefício, pois não há sentido em receber um valor de benefício menor (incapacidade permanente) por uma situação menos grave (que a de uma incapacidade temporária).

Para a compreensão do conteúdo, do sentido e do alcance do princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios, é relevante trazer as lições de Daniel Machado da Rocha e José Antonio Savaris [37] :

Revelando especial atenção à manutenção do nível de proteção que se deve assegurar aos beneficiários da seguridade social, a Constituição prevê expressamente o princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios (CF/88, art. 194, parágrafo único, IV).

O princípio da irredutibilidade consubstancia manifestação do direito adquirido, pois a diminuição do conteúdo econômico de uma prestação da seguridade social implica agravo ao patrimônio jurídico da pessoa protegida.

Em sua dimensão negativa, o princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios da seguridade social veda a ação estatal tendente a reduzir-lhes o valor nominal. Já em sua dimensão positiva, mais do que vedar a medida de redução do valor nominal, a norma da irredutibilidade exige contínua ação estatal com vistas a proteger o valor real dos benefícios contra os efeitos do fenômeno inflacionário.

Apesar das importantes observações, a alteração da forma de cálculo não parece se amoldar à previsão inserta no art. 194, parágrafo único, IV, da Constituição.

Veja-se que não há falar, na hipótese, em direito adquirido, na medida em que a diminuição a ser promovida, nos casos mencionados, dar-se-á em benefício distinto, decorrente da conversão do auxílio-doença/auxílio por incapacidade temporária em aposentadoria por invalidez/aposentadoria por incapacidade permanente, em razão de regramento próprio e, mais do que isso, submetido à incidência de suporte fático específico.

Vale dizer, embora o auxílio-doença/auxílio por incapacidade temporária e a aposentadoria por invalidez/aposentadoria por incapacidade permanente sejam espécies de proteção previdenciária em situação de incapacidade laboral, possuem contornos e requisitos próprios.

Fato é que há quem defenda equiparação entre os benefícios por incapacidade temporária e permanente, a exemplo deste excerto de Carlos Alberto Pereira de Castro em texto recente [38] :

Não se pode dizer que a aposentadoria por incapacidade permanente seja um benefício totalmente distinto do benefício por incapacidade temporária. Em verdade, o evento gerador é o mesmo – um acidente ou doença incapacitante –, sendo certo que a diferença consiste apenas no grau de gravidade do problema de saúde, se permite ou não o reingresso no mercado de trabalho pelo segurado que está afastado.

Apesar da abalizada opinião transcrita, não é viável confundir um e outro benefício, na medida em que possuem suportes fáticos diferentes – incapacidade temporária, em um caso, e incapacidade permanente, noutro. Aliás, no trecho acima reproduzido, o próprio autor reconhece que há diferença, mesmo que esta consista “apenas no grau de gravidade do problema de saúde, se permite ou não o reingresso no mercado de trabalho pelo segurado que está afastado”.

Com isso, a invocação da irredutibilidade do valor do benefício, no caso sobre o qual versa este estudo, significaria tomar de empréstimo a intangibilidade da renda de prestação previdenciária antecedente, que exauriu seus efeitos a partir da constatação do implemento dos requisitos que impuseram o reconhecimento do direito ao jubilamento ao segurado incapacitado de forma permanente e definitiva.

Daí por que a dimensão negativa e a dimensão positiva do princípio da irredutibilidade estão a se referir a benefício do qual o segurado já é titular, e não a outro, que porventura o substitua. Eventual ofensa, comissiva ou omissiva, há de ter como pressuposto a inequívoca incorporação ao seu patrimônio jurídico do direito à prestação que alegadamente sofre aviltamento, o que não ocorre quando apenas se cogita, exemplificativamente, de futura e incerta constatação de incapacidade permanente, o que conflagraria, a partir de então, nova situação jurídica frente à previdência social. Em suma, a partir dessa perspectiva, trata-se de evitar a caracterização de “sistema híbrido, incompatível com a sistemática de cálculo dos benefícios previdenciários”. [39]

Além disso, a crítica feita ocorre de maneira compartimentada, ou seja, diz respeito àqueles casos de conversão de benefício de incapacidade temporária em benefício de incapacidade permanente, não abrangendo a concessão inicial, na via direta, de aposentação por invalidez. Dessa maneira, o fundamento de irredutibilidade poderia ensejar situações diferentes a quem recebedor de benefício por incapacidade permanente, igualmente sem justificativa bastante de discrímen: ao passo que os indivíduos que tivessem amparo anterior convertido em benefício por incapacidade permanente veriam a renda mensal inicial do último mantida em função da renda do primeiro, as pessoas que tivessem a concessão deferida de forma imediata – em virtude, por exemplo, de doença gravíssima que rapidamente as levasse à invalidez – amargariam conjuntura distinta. E isso, como dito, sem que houvesse uma razão suficiente para o tratamento diferenciado, na medida em que se cuidaria, conforme o raciocínio mencionado, de benefício de mesma natureza, fundado em suporte fático equivalente, apenas não precedido de situação de incapacitação progressiva.

Dessa maneira, parece que a equiparação não só não se sustenta porque se cuida de benefícios marcadamente distintos, ainda que próximos em essência, mas também por problemas lógicos, como aquele mencionado no parágrafo anterior.

Tudo somado, não se divisa inconstitucionalidade levando em consideração o princípio da irredutibilidade dos benefícios. Realmente, não deixa de causar estranheza e certa perplexidade que a situação em termos de valor de benefício do(a) segurado(a) piore conforme amarga também uma piora em seu quadro de saúde, quando o contrário deveria ocorrer (já que, em tese, precisaria ainda mais do amparo estatal, provavelmente também em volume monetário mais substancial, dada a sua piora de saúde). Todavia, não se cuida, como dito, de mesmo benefício que sofre decréscimo, e sim de amparo outro, com contornos legais distintos. A postura do legislador é, do ponto de vista lógico, criticável, o que enseja, como se verá, desrespeito ao princípio da igualdade e aos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, mas isso, por si só, não traduz ofensa à irredutibilidade dos benefícios.

2.4 Princípio da igualdade

O art. 5º, caput, da Constituição da República determina que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Partindo da premissa de que necessariamente o princípio da igualdade envolve um conceito de relação, não é de menor importância frisar que, conforme clássica lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, [40]

as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição.

Ou seja, a igualdade, assim como sua contraparte, a desigualdade, deve ser vista sob um prisma relacional, de maneira que se deve estabelecer uma análise comparativa entre duas ou mais situações distintas, a fim de apurar se tanto o tratamento igualitário quanto aquele diferente se sustentam, se justificam.

Ademais, é já um truísmo do direito dizer que não basta que a igualdade seja formal – pura e simples equiparação de todos –, reclamando a Constituição que esta incorra em uma dimensão material, que imporá, para além de tratar a todos de maneira equiparada, também observar tratamentos desiguais quando estes se fizerem justificáveis. Não basta conferir paridade estrita de oportunidades a todas as pessoas quando há muitas camadas da população que, por fatores históricos ou mesmo circunstanciais, não estão no mesmo ponto de partida que outros indivíduos da mesma população. Tampouco a aplicação da legislação de modo acrítico, em contextos sociais marcados por diferenças sensíveis, em desfavor de indivíduos ou grupos em situação de vulnerabilidade, pode mesmo ser reveladora da igualdade reclamada e exigida pela Constituição Federal (art. 3º, IV). [41]

Nessa ordem de ideias, J. J. Gomes Canotilho, ao tratar do princípio da isonomia e das possibilidades de discrímen, observa [42] :

A fórmula “o igual deve ser tratado igualmente e o desigual desigualmente” não contém o critério material de um juízo de valor sobre a relação de igualdade (ou desigualdade). A questão da “igualdade justa” pode colocar-se nestes termos: o que é que nos leva a afirmar que uma lei trata dois indivíduos de uma forma igualmente justa? Qual o critério de valoração para a relação de igualdade?

Uma possível resposta, sufragada em algumas sentenças do Tribunal Constitucional, reconduz-se à proibição geral do arbítrio: existe observância da igualdade quando indivíduos ou situações iguais não são arbitrariamente (“proibição do arbítrio”) tratados como desiguais. Por outras palavras: o princípio da igualdade é violado quando a desigualdade de tratamento surge como arbitrária. O arbítrio da desigualdade seria condição necessária e suficiente da violação do princípio da igualdade. Embora ainda hoje seja corrente a associação do princípio da igualdade com o princípio da proibição do arbítrio, este princípio, como simples princípio de limite, será também insuficiente se não transportar já, no seu enunciado normativo-material, critérios possibilitadores da valoração das relações de igualdade ou desigualdade. Esta a justificação de o princípio da proibição do arbítrio andar sempre ligado a um fundamento material ou critério material objectivo. Ele costuma ser sintetizado da forma seguinte: existe uma violação arbitrária da igualdade jurídica quando a disciplina jurídica: (i) não se basear num fundamento sério; (ii) não tiver um sentido legítimo; (iii) estabelecer diferenciação jurídica sem um fundamento razoável. Todavia, a proibição do arbítrio intrinsecamente determinada pela exigência de um “fundamento razoável” implica, de novo, o problema da “qualificação” desse fundamento, isto é, a qualificação de um fundamento como razoável aponta para um “problema de valoração”.

A necessidade de valoração ou de critérios de qualificação bem como a necessidade de encontrar elementos de comparação subjacentes ao caráter relacional do princípio da igualdade implicam: (1) a insuficiência do arbítrio como fundamento adequado de valoração; (2) a imprescindibilidade da análise da natureza, do peso, dos fundamentos ou motivos justificadores de soluções diferenciadas; (3) a insuficiência da consideração do princípio da igualdade como um direito de natureza apenas defensiva ou negativa. Esta ideia de igualdade justa deverá aplicar-se mesmo quando estamos em face de medidas legislativas de graça ou de clemência (perdão, amnistia), pois, embora se trate de medidas que, pela sua natureza, transportam referências individuais ou individualizáveis, elas não dispensam a existência de fundamentos materiais justificativos de eventuais tratamentos diferenciadores.

Dito isso, é de se observar que a discussão jurídica presente neste estudo passa, inevitavelmente, pela aferição da higidez do discrímen eleito pelo constituinte derivado.

Frente a esse ponto de partida de análise, pondera João Batista Lazzari [43] :

A mudança no cálculo da aposentadoria por invalidez representa uma perda significativa de renda do segurado que se tornar incapaz de forma permanente para o trabalho, salvo na hipótese de a incapacidade ter resultado de acidente do trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho.

Semelhante diferenciação ocorreu no passado, na redação original da Lei 8.213/1991, sendo corrigida posteriormente pela Lei 9.032/1995. E agora volta à baila essa regra discriminatória, sem razão de ordem contributiva que justifique pagar menor valor para situações isonômicas.

A propósito, é interessante observar que a exposição de motivos da Lei nº 9.032/1995, naquilo que se refere à justificativa para a “equalização dos valores dos benefícios acidentários com os demais benefícios previdenciários”, amparava-se nos seguintes argumentos [44] :

13. O anteprojeto, ao propor também a alteração de dispositivos referentes aos acidentes do trabalho, busca dar solução ao verdadeiro caos que hoje existe na área, com interpretações as mais diversas, além de fraudes e procedimentos irregulares. Existem mais de 300 mil ações acidentárias em andamento na justiça brasileira, que poderão assim ser eliminadas de imediato. A proposta de equalização dos valores dos benefícios acidentários com os demais benefícios previdenciários será elemento importante para que sejam reduzidas as ações judiciais contra a Previdência Social, assegurando melhores condições de cálculo de benefício para aposentados e pensionistas.

(…)

14. Finalmente, ressalto que, com as medidas ora propostas, o governo de Vossa Excelência dará um grande passo na busca da desejada racionalização da atual estrutura e da maior eficiência do sistema. A recuperação do adequado padrão de operacionalidade do sistema é sem dúvida condição fundamental para a reengenharia das funções que devem ser executadas pelo moderno Estado social, reformado para bem cumprir uma legislação efetivamente garantidora dos direitos sociais fundamentais.

Veja-se que, ao contrário do que seria inicialmente legítimo pressupor – que a mudança visava ao reconhecimento da isonomia entre as causas acidentárias e não acidentárias que viessem a acarretar a incapacidade laboral –, o intento do legislador para a alteração do coeficiente de cálculo, à época, assumiu caráter eminentemente pragmático, essencialmente voltado à redução de litígios. Isso inegavelmente não afasta a validade da proposição nem retira o mérito da medida, de resto dirigida à “maior eficiência do sistema”. Contudo, demonstra que a equiparação dos valores não se deu por critérios de equalização de situações equivalentes, sanando diferenciação injustificável.

Nesse contexto, parece, efetivamente, existir ofensa ao princípio da igualdade.

Isso porque não se mostra despropositado, tampouco redundante, sublinhar o resgate do objetivo elementar da previdência social, consistente em assegurar os meios indispensáveis de manutenção aos segurados em face da ocorrência de riscos sociais que imponham prejuízo manifesto à sua capacidade de trabalhar e de gerar renda para si e seus dependentes. Trata-se, pois, de política pública, constitucionalmente prevista, intimamente relacionada ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que asseguradora do mínimo existencial.

Avulta, nesse contexto, a importância dos benefícios por incapacidade, benefícios não programáveis calcados em situação de fato que “mais se coaduna à noção de risco social, enquanto evento incerto que determina dificuldade ou impossibilidade de autossustento pelos segurados do sistema”. [45]

Não há dúvida de que se encontram vigentes ainda hoje diferenciações de tratamento normativo entre os benefícios previdenciário e acidentário, tais como segurados abrangidos, carência, custeio, efeitos trabalhistas e até mesmo competência para o processamento e o julgamento das causas a eles relacionadas.

O que se perquire neste momento, contudo, é se a retomada da distinção do coeficiente de cálculo para fins de apuração da renda mensal inicial operada pela Emenda Constitucional nº 103/2019 decisivamente conflagra violação ao princípio da isonomia.

Sobre o tema, J. R. Feijó Coimbra, discorrendo sobre a proteção contra o infortúnio do trabalho, já dispunha [46] :

Entre nós, Cesarino Junior alonga-se em oportunas considerações: “A existência dessa lei especial só se compreendia nos começos da legislação social, e não hoje em dia, em que se estão realizando, ou pelo menos programando, em quase toda parte, os seguros sociais. Com efeito, quais podem ser as consequências dos acidentes de trabalho? Evidentemente, a morte ou a invalidez (total ou parcial), permanente ou temporária. Ora bem, do ponto de vista que determina atualmente a obrigação legal de sua reparação, e que consiste em ser o trabalho o meio de subsistência do hipossuficiente, pode-se afirmar que as consequências dos acidentes de trabalho sejam essencialmente distintas das produzidas pela morte ou pela incapacidade ocasionadas por outras causas, como as enfermidades e os acidentes estranhos ao trabalho? Está claro que não”. (...) Se é de solidariedade que se cuida, faça-se a proteção na sua plena feição social, esquecidos de plano os conceitos de culpa e de risco criado. (...) A mesma proteção – e de forma mais justa – se alcançaria, dando maior e mais exata amplitude às leis gerais de amparo social. Bastariam algumas alterações, de escassa monta. (...) Por outro lado, ter-se-ia de considerar a desigualdade entre as prestações devidas por acidentes e as decorrentes de outras causas. Aí, contudo, ao contrário de dar-se maior valor às prestações devidas por acidentes, dever-se-ia igualar-lhes o valor, seja quando decorrentes do infortúnio do trabalho, seja quando ditadas por causas a ele alheias, pois a necessidade do trabalhador e da sua família é igual, seja qual for a origem dos males de que se deplore.

Portanto, não há como deixar de reconhecer que a finalidade protetiva da norma que assegura a proteção social aos benefícios por incapacidade, de natureza acidentária ou não, é a mesma. A cobertura conferida pelo Regime Geral de Previdência Social é aos “eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho”, conforme art. 201, I, da Constituição Federal, já na redação da Emenda Constitucional nº 103/2019, não havendo, no texto constitucional, qualquer menção à possibilidade de, diante do mesmo evento protegido – de novo, incapacitação permanente –, serem conferidas consequências diversas a depender de sua causa – se acidentária ou se não acidentária.

Mais: inexiste qualquer justificativa fundada em razão objetiva para o retorno à distinção do coeficiente de cálculo entre os benefícios acidentários e não acidentários. Mesmo que se considere a recomposição do equilíbrio financeiro e atuarial como causa justificante, não há menção ou fundamento específico para que houvesse o aviltamento do direito em relação a tão somente uma situação de fato ou mesmo categoria de segurado, sem abarcar as situações equivalentes.

Deveras, diferentemente do grau de incapacidade – se temporária ou permanente –, conforme abordado no tópico anterior, em que a distinção de tratamento é justificável, na medida em que se têm situações de fato distintas, a toda evidência, a natureza da causa da incapacitação permanente, se acidentária ou não, é elemento meramente secundário na definição dos aspectos monetários dos benefícios. Dito de outra forma: a origem da incapacidade perene, ainda que possa eventualmente se mostrar relevante para outros propósitos (a exemplo de acarretar a isenção de carência em casos de inaptidão decorrente de eventos abruptos), não deve bastar, sozinha, para influir no cálculo e no valor do amparo, na medida em que a estipulação normativa de tais preceitos deve se nortear pelas necessidades do(a) segurado(a) sem condições de trabalhar – e estas são objetivamente idênticas, estando a pessoa incapaz por acidente ou por outra causa.

Em outras palavras, o discrímen, o fator de diferenciação adotado, não guarda correlação lógica com a desequiparação. E, a partir daí, como acima exposto, não parece existir maior dúvida de que “a desigualdade de tratamento surge como arbitrária” e encontra-se destituída de um “fundamento razoável”.

O que se tem é uma indevida discriminação, que não detém contornos de razoabilidade, uma vez que a causa ensejadora da incapacidade não possui correlação lógica necessária com a proteção social conferida à contingência prevista na legislação de regência.

A redação original da Proposta de Emenda à Constituição nº 6/2019, [47] no que tange a seu artigo 26 e ao cálculo das aposentadorias por incapacidade permanente, era bastante similar, em teor, à redação que prevaleceu na Emenda Constitucional nº 103/2019. [48] A Mensagem nº 55, de 20.02.2019, do Poder Executivo, ao abordar o assunto, é meramente expositiva, não explicando os porquês da escolha legislativa [49] :

67. Também está assegurada a aposentadoria por incapacidade permanente para os trabalhadores que forem considerados incapazes para o trabalho e insusceptíveis de reabilitação para o exercício de outra atividade que lhes garanta subsistência. Quando a incapacidade for decorrente de acidente do trabalho, doença profissional ou doença do trabalho, o valor da aposentadoria será integral.

Por questão de honestidade intelectual, registra-se aqui que os autores deste texto não encontraram as justificativas originais da alteração proposta. De qualquer maneira, independentemente das razões que motivaram o(s) proponente(s) da proposta de emenda à Constituição e, ao final, o constituinte derivado, fato é que o texto ao final aprovado deve se sustentar sozinho, vale dizer, ter em si elementos que o justifiquem plenamente, seja qual for alguma alegada mens legislatoris – o que, como se viu e ficará ainda mais claro a seguir, não é o caso.

Com isso, o que se percebe é que a destinação de tratamento diferenciado, pelo menos no documento que encaminhou a proposta de emenda à Constituição pelo seu proponente ao Congresso Nacional, não contou com embasamento argumentativo bastante. E isso, a par de consistir em desrespeito ao ônus de transparência que incumbe ao poder público na formulação de suas escolhas, também implica ausência de demonstração da correlação lógica da distinção entre situações com o fator de discrímen. Mais ainda: significa que a restrição de direito fundamental, decorrente da escolha alocativa de recursos, não foi realizada mediante a apresentação de fundamentação robusta, que realmente comprovasse a efetiva necessidade de uma restrição de tal índole.

Portanto, a par de a distinção trazida não se embasar em fator de discriminação fundado em “vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto e a desigualdade de tratamento em função dela conferida”, para usar as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, não se visualiza justificativa idônea à destinação de tratamento diverso a situações que se equiparam. Se o único fator de distinção é a natureza da causa da incapacitação – se decorrente esta de acidente ou não –, não se tem fator de discrímen adequado para a ocorrência do tratamento dissímil.

2.5 Postulados de proporcionalidade e razoabilidade

A partir da compreensão unitária dos direitos fundamentais e da limitação material imposta ao poder de reforma, é indispensável reconhecer que a conformação do direito social (no caso, aquele previsto no art. 201, I, da Constituição Federal) deve se dar em consonância com o postulado da proporcionalidade (“limite dos limites”), inclusive e precipuamente sob a perspectiva da proibição de proteção insuficiente.

Nessa ordem de ideias, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco [50] assim discorrem sobre o tema:

A doutrina identifica como típica manifestação do excesso de poder legislativo a violação do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso (Verhältnismässigkeitsprinzip; Ubermassverbot), que se revela mediante contraditoriedade, incongruência e irrazoabilidade ou inadequação entre meios e fins.

(...)

A utilização do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso no direito constitucional envolve, como observado, a apreciação da necessidade (Erforderlichkeit) e da adequação (Geeignetheit) da providência legislativa.

(...)

O Tribunal Constitucional explicitou, posteriormente, que “os meios utilizados pelo legislador devem ser adequados e necessários à consecução dos fins visados. O meio é adequado se, com a sua utilização, o evento pretendido pode ser alcançado; é necessário se o legislador não dispõe de outro meio eficaz, menos restritivo aos direitos fundamentais”.

A aferição da constitucionalidade da lei em face do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso contempla os próprios limites do poder de conformação outorgado ao legislador.

(...)

Ao lado da ideia da proibição do excesso, tem a Corte Constitucional alemã apontado a lesão ao princípio da proibição da proteção insuficiente.

Schlink observa, porém, que se o Estado nada faz para atingir um dado objetivo para o qual deva envidar esforços, não parece que esteja a ferir o princípio da proibição da insuficiência, mas sim um dever de atuação decorrente de dever de legislar ou de qualquer outro dever de proteção. Se se comparam, contudo, situações do âmbito das medidas protetivas, tendo em vista a análise de sua eventual insuficiência, tem-se uma operação diversa da verificada no âmbito da proibição de excesso, na qual se examinam as medidas igualmente eficazes e menos invasivas. Daí concluiu que “a conceituação de uma conduta estatal como insuficiente (untermässig), porque ela não se revela suficiente para uma proteção adequada e eficaz”, nada mais é, do ponto de vista metodológico, do que considerar referida conduta como desproporcional em sentido estrito (unverhältnismässig im engeren Sinn).

(...)

Os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar expressão de Canaris, não apenas a proibição de excesso (Übermassverbote), mas também a proibição de proteção insuficiente (Untermassverbote). E tal princípio tem aplicação especial no âmbito dos direitos sociais.

Diante de tais premissas, mostra-se possível o reconhecimento de que a previsão inserta no art. 26, § 2º, III, da Emenda Constitucional nº 103/2019 acaba por se mostrar ofensiva à proporcionalidade.

De fato, deve ser destacada, uma vez mais, a circunstância de o benefício por incapacidade permanente possuir a natureza de prestação não programável. Esse aspecto guarda indiscutível relevância, porquanto a conformação legislativa do direito fundamental, tal como levada a efeito, conflagra proteção insuficiente, principalmente diante do paralelismo com o regime estabelecido para os benefícios decorrentes de incapacidade temporária ou definitiva de natureza acidentária.

Deveras, o contexto jurídico-constitucional elege como valores fundamentais a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (art. 1º, III e IV, da Constituição da República); impõe dentre os objetivos da República a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”, voltada à promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, I e IV, da Constituição da República); e preconiza a ordem econômica “fundada na valorização do trabalho humano” e que “tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170, caput, da Constituição da República), sem descurar da ordem social que “tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais” (art. 193, caput, da Constituição da República).

Ora, a par disso, não é de menor importância destacar a imposição constitucional para que a seguridade social volte seu conjunto de ações observando a “seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços” (art. 194, III, da CF). Entretanto,

o princípio da seletividade e da distributividade destina-se a aperfeiçoar a universalidade, mediante a identificação do nível de proteção orientada não apenas às contingências sociais intrinsecamente consideradas, mas àquilo em que elas podem, em relação a determinadas pessoas, de fato causar perda substancial de recursos para subsistência com dignidade. [51]

E, neste ponto, torna-se possível concluir que a alteração promovida pela Emenda Constitucional nº 103/2019, decorrente da redação conferida por seu art. 26, § 2º, III, traduz medida legislativa que não encontra amparo no subprincípio da adequação do princípio da proporcionalidade, [52] uma vez que o direito à aposentadoria em razão da incapacidade permanente (não acidentária) sofreu sensível aviltamento a partir do momento em que prevê coeficiente de cálculo que permite renda mensal inicial significativamente inferior em relação àquela estabelecida para o benefício de incapacidade temporária.

Assim sendo, se, por um lado, não há falar, como já acentuado, em ofensa à irredutibilidade de vencimentos, é de se perceber, por outro, que o sentimento de estranheza antes alardeado enseja, na verdade, a percepção de afronta à proporcionalidade, sobre o que agora se trata. Realmente, a escolha normativa faz com que conjuntura menos grave, que enseja direito a benefício temporário, confira direito a prestação maior em comparação a conjuntura mais grave, suporte fático de amparo que tende à permanência.

Ainda, em decorrência direta do processo de reforma levado a efeito pelo constituinte derivado, tem-se a previsão, insculpida no art. 26, § 3º, II, da Emenda Constitucional nº 103/2019, no sentido de que, no caso de aposentadoria por incapacidade permanente, quando decorrente de acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho, “o valor do benefício de aposentadoria corresponderá a 100% (cem por cento) da média aritmética definida na forma prevista no caput e no § 1º”.

Note-se que, como já dito, não se extrai do texto constitucional, presentes o art. 201, I, da Constituição e as contingências sociais que visa a proteger, razão ou justificativa bastante que permita ao constituinte derivado distinguir o critério de cálculo de benefícios que, rigorosamente, voltam-se à proteção dos mesmos riscos – independentemente de a causa da incapacidade permanente ser ou não acidentária. Nessa óptica, fica evidenciada, também aqui, a proteção deficiente, ofensiva, pois, à proporcionalidade, quanto ao tratamento conferido aos benefícios decorrentes de incapacidade permanente de causa não acidentária, na medida em que, em face do cotejo com o critério de cálculo estabelecido no art. 26, § 3º, II, da Emenda Constitucional nº 103/2019, é possível constatar a inadequação da alteração normativa.

Além disso, o novo regramento equipara o critério de cálculo com as demais aposentadorias programáveis de natureza voluntária. Ou seja, a rigor, o novo tratamento normativo conferido à aposentadoria por invalidez desconsidera a contingência social (incapacidade permanente), dotada de imprevisibilidade, capaz de afetar “mais decisivamente determinadas pessoas de modo a ameaçar-lhes a capacidade de manutenção”. [53] E, assim, traz equivalência – antes inexistente – a conjunturas plenamente dissímeis, e isso também sem uma justificativa razoável.

Por outro lado, também no âmbito do direito internacional a mudança se mostra problemática e dissonante a compromissos assumidos pelo Brasil. Isso porque o teor do art. 28.2, e, da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada no ordenamento jurídico-constitucional de acordo com o rito do art. 5º, § 3º, da Constituição (Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009), dispõe sobre o direito a padrão de vida e proteção social adequados da seguinte maneira:

2. Os Estados-partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à proteção social e ao exercício desse direito sem discriminação baseada na deficiência, e tomarão as medidas apropriadas para salvaguardar e promover a realização desse direito, tais como:

a) assegurar igual acesso de pessoas com deficiência a serviços de saneamento básico e assegurar o acesso a serviços, dispositivos e outros atendimentos apropriados para as necessidades relacionadas com a deficiência;

b) assegurar o acesso de pessoas com deficiência, particularmente mulheres, crianças e idosos com deficiência, a programas de proteção social e de redução da pobreza;

c) assegurar o acesso de pessoas com deficiência e suas famílias em situação de pobreza à assistência do Estado em relação a seus gastos ocasionados pela deficiência, inclusive treinamento adequado, aconselhamento, ajuda financeira e cuidados de repouso;

d) assegurar o acesso de pessoas com deficiência a programas habitacionais públicos;

e) assegurar igual acesso de pessoas com deficiência a programas e benefícios de aposentadoria.

Sendo certo que, se não coincidentes, os conceitos de deficiência e de incapacidade laboral possuem muitos aspectos de contato, a dedicação de tutela deficitária ao último não raro ensejará, na prática, vulneração ao primeiro.

E, aqui, guarda dimensão maior a análise quanto aos reflexos advindos pela edição do dispositivo mencionado enquanto medida para implementação, pelo Estado brasileiro, do direito inserido com status constitucional após a incorporação no direito interno de compromisso internacional. Nessa linha de intelecção, a Emenda Constitucional nº 103/2019 aponta novamente para a caracterização de medida inadequada sob o ângulo do dever de proteção (proibição de insuficiência).

Com efeito, ao emprestar ao cálculo de benefício índice significativamente inferior na hipótese daquele que se encontrar atingido por incapacidade permanente, e, pois, indivíduo que em vários casos poderia ser enquadrado como pessoa com deficiência, conforme legislação pátria – ou seja, submetido a impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas –, acaba por consagrar déficit normativo em relação a assegurar ao segurado com deficiência “igual acesso” ao direito à aposentadoria.

De todo modo, para além da constatação da ausência de proporcionalidade por proibição da proteção deficiente, a configuração jurídica atual advinda da redação do art. 26, § 2º, III, da Emenda Constitucional nº 103/2019 traduz medida destituída de razoabilidade. Veja-se que há evidente contradição em um ordenamento que propicia maior proteção social àquele que se encontra incapacitado em menor grau em face daquele atingido por contingência social mais gravosa (ausência de coerência interna); ou que discrimina o cálculo de prestações previdenciárias decorrentes de incapacitação permanente por conta da causa da invalidez, sem nenhum fundamento razoável para o discrímen; ou que equipara esse cálculo, no caso de benefícios não programáveis e benefícios programáveis, em evidente prejuízo ao primeiro caso na maciça maioria das situações (já que, nestas, o valor poderá ficar bastante baixo, se for pouco o tempo de contribuição, ou as aludidas contribuições forem baixas).

De outra parte, não se constata existir coerência externa enquanto “harmonia entre a medida estatal e os valores da sociedade e do ordenamento jurídico como um todo”. [54] De fato, mesmo desde antes da Constituição Federal de 1988, vem existindo avanço progressivo na formulação de políticas públicas em favor das pessoas com deficiência, inclusive e marcadamente no âmbito da previdência social (a exemplo da Lei Complementar nº 142/2013), de modo que a norma, tal como posta, milita amplamente, de modo irrazoável, em desfavor do panorama jurídico protetivo então vigente antes da edição da Emenda Constitucional nº 103/2019.

Conclusão

Não parece existir maior dúvida sobre a legitimidade do constituinte derivado na alteração dos direitos fundamentais, desde que preservado o núcleo essencial do seu âmbito de proteção. No caso do direito à previdência social, essa legitimidade decorre, inclusive, do poder-dever de manutenção do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, que é imposição de natureza constitucional.

Nessa tarefa, é bem verdade que os direitos sociais reclamam uma valoração inclusive sob a óptica da reserva do possível, fática e jurídica. Ou seja, a compleição do direito em análise, de cunho prestacional, deve levar em consideração a realidade econômica nacional, pois, inevitavelmente, envolverá gastos públicos. No entanto, essa inescapável consequência econômica não se adstringe aos direitos sociais exclusivamente, senão igualmente aos chamados direitos de liberdade. Em outras palavras, não deve ser imposto unicamente aos direitos sociais o desafio da implementação das políticas públicas a eles relacionadas em face da sempre presente limitação orçamentária, de modo que a escolha legislativa deve encontrar-se suficientemente justificada para que se possa concluir pela sua legitimidade.

Por outro lado, de há muito se tem como legítimo o controle jurisdicional de constitucionalidade das emendas constitucionais. O papel muitas vezes contramajoritário do Poder Judiciário visa a assegurar, sobretudo, a higidez normativa da Constituição da República, mais decisivamente seu núcleo duro, a saber: os direitos fundamentais e o rol de fundamentos e objetivos descritos no texto constitucional. Esses valores traduzem limitações ao legislador reformador, impondo-se ao Poder Judiciário, no sistema de freios e contrapesos, o papel constitucional de velar por sua aplicabilidade livre de ofensas de qualquer ordem.

Em relação à Emenda Constitucional nº 103/2019, mais decisivamente no que tange às mudanças trazidas pelo seu art. 26 e parágrafos, procedeu-se no presente estudo a alguns “testes de constitucionalidade” justamente a fim de apurar se suas disposições terminam por vulnerar o núcleo essencial do direito fundamental à previdência social.

Como se viu, sob o ângulo da proteção ao núcleo essencial do direito fundamental à previdência social, não pareceu haver vulneração evidente pela reforma incremental promovida pelo constituinte derivado. Isso porque as alterações promovidas não implicaram anulação, revogação ou aniquilação da política pública de previdência social.

Da mesma forma, também não se divisou ofensa ou menoscabo ao princípio da vedação do retrocesso social. Se é certo que aludido princípio propugna pela ideia de implantação ou proteção progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais, pareceu inevitável o confronto dessa perspectiva e seu devido sopesamento com a disponibilidade material estatal (riqueza nacional). Assim, a alteração da sistemática de cálculo do benefício previdenciário, isoladamente considerada, não representou, no entendimento destes autores, medida de tal ordem que impusesse o reconhecimento do retrocesso social, notadamente porque a equivalência existente antes da Emenda Constitucional nº 103/2019 entre benefícios acidentários e não acidentários havia sido promovida pela Lei nº 9.032/1995 e, nesse passo, o Supremo Tribunal Federal já decidira no sentido de que “é impróprio, considerado tratamento estrito dado à matéria pela Constituição Federal, potencializar o princípio da vedação ao retrocesso social, a ponto de, invertendo a ordem natural, transformar em cláusula pétrea legislação ordinária ou complementar”. [55]

O princípio da irredutibilidade do valor dos benefícios também serviu como base argumentativa de teste de constitucionalidade. E, a despeito de posição doutrinária dissonante ao entendimento ora adotado, aqui se compreende não ter havido ofensa ao estabelecido no art. 194, parágrafo único, IV, da Constituição da República. Com efeito, verificou-se que o auxílio por incapacidade temporária e a aposentadoria por incapacidade permanente possuem requisitos próprios, vale dizer, calcados em suportes fáticos específicos, que não se confundem. Nesse diapasão, a irredutibilidade do valor dos benefícios deve levar em consideração a prestação previdenciária efetivamente titularizada pelo segurado, não se cogitando de um paralelismo com prestação distinta, futura e incerta, sob pena de ver-se consagrado, tal como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, “sistema híbrido, incompatível com a sistemática de cálculo dos benefícios previdenciários”. [56]

O teste de constitucionalidade promovido, porém, termina por reconhecer a inconstitucionalidade do dispositivo constitucional inserido pela Emenda Constitucional nº 103/2019 a partir da leitura interpretativa do princípio da igualdade. A propósito, principia-se por evidenciar que o art. 201, I, da Constituição Federal, já na nova redação (esta promovida pela mesma emenda constitucional), não permite concluir pela possibilidade de serem atribuídas consequências distintas à incapacidade decorrente de causa acidentária ou não acidentária. Ainda sob essa perspectiva, não se consegue extrair razão objetiva para o retorno à distinção do coeficiente de cálculo existente antes da edição da Lei nº 9.032/1995. Para além disso, o discrímen, o fator de diferenciação adotado, não guarda correlação lógica com a desequiparação. E, aqui, guarda relevância observar que não se extrai do novo texto normativo ou mesmo de qualquer leitura a partir da proposição legislativa encaminhada justificativa idônea à destinação de tratamento diverso a situações que se equiparam.

A inconstitucionalidade do citado dispositivo faz-se igualmente presente quando contrastado o novo regime jurídico do cálculo de benefício sob o prisma dos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade.

De fato, uma vez que os benefícios por incapacidade possuem a natureza de prestação não programável, a conformação legislativa conflagra proteção insuficiente, seja cotejando a proteção conferida aos benefícios programáveis, seja tomando em consideração os benefícios decorrentes de incapacidade temporária ou definitiva de natureza acidentária. A proteção deficiente, ademais, deve ser levada em linha de compreensão sob o ângulo da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, internalizada pelo Estado brasileiro pelo rito do art. 5º, § 3º, da Constituição da República, com status constitucional. Há, de fato, déficit normativo na medida em que obstaculiza “igual acesso” ao direito à aposentadoria àquele(a) que se encontra atingido por impedimentos de longo prazo que podem obstruir sua participação social em igualdade de condições com as demais pessoas.

Por fim, não guarda coerência interna o ordenamento que propicia maior proteção social àquele que se encontra incapacitado em menor grau em face daquele atingido por contingência social mais gravosa, assim como não se constata coerência externa tendo em conta a premissa da “harmonia entre a medida estatal e os valores da sociedade e do ordenamento jurídico como um todo”, tudo a indicar, inevitavelmente, estar-se diante de alteração legislativa destituída de razoabilidade.

Tudo considerado, portanto, conclui-se pela ofensa ao princípio da igualdade e aos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade, de modo a ser lícito concluir pela inconstitucionalidade do art. 26, § 2º, III, da Emenda Constitucional nº 103/2019, devendo ser afastada a aplicação do referido preceito legal. Reconhece-se, pois, em consequência, a incidência do art. 44 da Lei nº 8.213/1991, exclusivamente para fins de admitir a utilização do coeficiente correspondente a 100% do salário de benefício para a apuração da renda mensal inicial do benefício de aposentadoria por invalidez/aposentadoria por incapacidade permanente, devendo ser observado, para tanto, em relação ao período básico de cálculo, o caput do art. 26 da Emenda Constitucional nº 103/2019, diante da higidez constitucional deste último enunciado normativo.

 


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[1] Para simplificar, doravante chamar-se-á, aqui, “acidentária” toda e qualquer causa decorrente de acidente de trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho; “não acidentária” se considerará toda causa que não tenha relação com eventos dessa espécie.

[2] Não passa despercebido o fato de que a análise da constitucionalidade do art. 26 da EC nº 103/2019 se encontra submetida a julgamento pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.279, tendo como relator o e. Ministro Roberto Barroso, pendente de julgamento em março de 2022.

[3] O texto da declaração pode ser lido em https://www.unicef.org/brazil/declaracao
-universal-dos-direitos-humanos
. Acesso em: 29 jan. 2022.

[4] O texto pode ser lido em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto/1990-1994/d0591.htm
. Acesso em: 29 jan. 2022.

[5] SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos
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[6] KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 20.

[7] KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 22.

[8] MELLO, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 287-9.

[9] ADI 2.024, relator Ministro Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 03.05.2007.

[10] ROCHA, Daniel Machado da. O direito fundamental à previdência social na perspectiva dos princípios constitucionais diretivos do sistema previdenciário brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 113.

[11] SARLET, Ingo Wolfgang; ZOCKUN, Carolina Zancaner. Notas sobre o mínimo existencial e sua interpretação pelo STF no âmbito do controle judicial das políticas públicas com base nos direitos sociais. Revista de Investigações Constitucionais, v. 3, n. 2, p. 115-141, maio/ago. 2016. Citação da p. 122.

[12] SARLET, Ingo Wolfgang; ZOCKUN, Carolina Zancaner. Notas sobre o mínimo existencial e sua interpretação pelo STF no âmbito do controle judicial das políticas públicas com base nos direitos sociais. Revista de Investigações Constitucionais, v. 3, n. 2, p. 115-141, maio/ago. 2016. Citação das p. 122-125.

[13] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 181.

[14] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 184-7.

[15] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019. p. 30-32.

[16] HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. O custo dos direitos: por que a liberdade depende dos impostos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2019. p. 13.

[17] SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/
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[18] SCHÄFER, Jairo Gilberto. Classificação dos direitos fundamentais – do sistema geracional ao sistema unitário: uma proposta de compreensão. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 67.

[19] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. 5. tir. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 90.

[20] SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n. 24, jul. 2008. Disponível em: https://revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/
edicao024/ingo_mariana.html
. Acesso em: 11 jul. 2021.

[21] LAZZARI, João Batista. Parte II – Regime Geral de Previdência Social. In: LAZZARI, João Batista et al. Comentários à reforma da previdência. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 87-146. A citação é das p. 102-103.

[23] PEREIRA DE CASTRO, Carlos Alberto; LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciário. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. Nota dos autores à 23ª edição. p. 14.

[24] Cfr. ADI 2.111 MC, relator Ministro Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 16.03.2000.

[25] É passível de questionamentos se o valor do salário mínimo atual de fato cumpre o que preconiza o art. 7º, IV, da Constituição Federal (ou seja, que o montante seja “capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”), o que pode ser assunto para outro trabalho, de maior extensão e aprofundamento. Entretanto, em princípio, o piso estipendial nacional serviria para preservar o mínimo existencial, e, se não servisse, a inconstitucionalidade não seria diretamente da norma trazida pela Reforma da Previdência sobre a qual versa este texto, mas sim das normas que fixam, anualmente, o valor do salário mínimo.

[26] Todavia, ficam em aberto algumas questões, que não serão objeto deste texto: considerando o “conjunto da obra”, será que a emenda, em si, não tenderia a promover um “esvaziamento aprofundado” do direito social à previdência social? A emenda, globalmente considerada, não violaria o núcleo essencial e a vedação de retrocesso, abordada mais adiante? Caso se pense, por exemplo, na ideia de desconstitucionalização de vários aspectos do direito previdenciário trazida pela emenda, facilitando sobremodo a realização de mudanças, não se estaria colocando nas mãos do legislador de ocasião um poder imenso de promover a desproteção previdenciária? A possibilidade de lei complementar prever a participação do setor privado no atendimento à cobertura de benefícios não programados, inclusive os decorrentes de acidente do trabalho, trazida pelo novo art. 201, § 10, da Constituição, não importaria em indevida desincumbência do Estado em política de seguridade social que constitui um dos eixos/elementos político-ideológicos mais evidentes e estruturantes da Constituição? Será legítima a exclusão da previsão da locução “integridade física” para o reconhecimento da atividade especial, visando a eliminar, ao que parece, o reconhecimento da periculosidade para a caracterização da atividade especial? É consentânea com o sistema retributivo a vedação das cumulações de pensão por morte, ou mesmo sua sistemática de cálculo, que reduz substancialmente o seu valor, com a vedação ao retrocesso? Enfim, se, por um lado, aparentemente cada tópico de mudança, isoladamente considerado, pode não significar vulneração ao núcleo essencial, é passível de questionamento, por outro, se o conjunto de mudanças trazidas não ensejaria uma consequência nefasta de tal alcance, o que mereceria um estudo mais aprofundado e representaria um trabalho de maior fôlego, que refoge um tanto aos objetivos deste trabalho, bem mais circunscritos e modestos.

[27] ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Direitos sociais são exigíveis. Porto Alegre: Dom Quixote, 2011. p. 116-117.

[28] ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Direitos sociais são exigíveis. Porto Alegre: Dom Quixote, 2011. p. 117-118.

[29] Há quem defenda, por exemplo, que o período de 2011-2020 representa uma “nova década perdida” no contexto econômico. Nesse sentido: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/03/03/
D%C3%A9cada-perdida-a-queda-do-PIB-em-2020-sob
-perspectiva-hist%C3%B3rica
. Acesso em: 07 dez. 2021. Ou, ainda: https://www.cnnbrasil.com.br/business/
pib-brasil-termina-2020-com-segunda-decada-perdida
-e-a-pior-desde-1900/
. Acesso em: 07 dez. 2021.

[30] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 339-40.

[31] LAZZARI, João Batista. Parte II – Regime Geral de Previdência Social. In: LAZZARI, João Batista et al. Comentários à reforma da previdência. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 87-146. Citação da p. 88.

[32] É interessante observar que o debate da “saúde fiscal” ocorre essencialmente sob o ângulo da “contenção de despesas”, do “corte de custos”, não sendo comum – ou ao menos tendo a importância devida – seu estudo ou mesmo debate público com a política de arrecadação de tributos. Nessa perspectiva, chama a atenção, por exemplo, a falta de um debate mais aprofundado dos efeitos da política de renúncia fiscal no âmbito da previdência social, tal como levada a efeito recentemente com a prorrogação da “desoneração da folha de salários”. Ver: https://economia.uol.com.br/noticias/
redacao/2021/11/19/desoneracao-da-folha-vai-custar
-mais-r-6-bi-ao-governo-em-2022-diz-ifi.htm
. Acesso em: 07 dez. 2021.

[33] ADI 5.013, relator(a): Edson Fachin, relator(a) p/ acórdão: Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 24.08.2020, processo eletrônico DJe-272 divulg. 13.11.2020, public. 16.11.2020.

[34] Note-se que o Supremo Tribunal Federal já admitiu o conceito de “bloco de constitucionalidade” enquanto parâmetro e paradigma de controle que compreenda “para além da totalidade das regras constitucionais meramente escritas e dos princípios contemplados, explícita ou implicitamente, no corpo normativo da própria Constituição formal, chegando a compreender normas de caráter infraconstitucional, desde que vocacionadas a desenvolver, em toda a sua plenitude, a eficácia dos postulados e dos preceitos inscritos na Lei Fundamental, viabilizando, desse modo, e em função de perspectivas conceituais mais amplas, a concretização da ideia de ordem constitucional global” (ADI 2.971 AgR, relator(a): Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 06.11.2014, acórdão eletrônico DJe-030 divulg. 12.02.2015, public. 13.02.2015).

[35] ROCHA, Daniel Machado da. Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 283.

[36] LAZZARI, João Batista; CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. Manual de direito previdenciário. 23. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 668.

[37] ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antônio. Curso de direito previdenciário: fundamentos de interpretação e aplicação do direito previdenciário. Curitiba: Alteridade, 2014. p. 133.

[38] CASTRO, Carlos Alberto Pereira de. O princípio da irredutibilidade e o novo critério de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente (invalidez). Disponível em: http://genjuridico.com.br/2021/03/10/
aposentadoria-incapacidade-permanente/
. Acesso em: 18 ago. 2021.

[39] RE 575.089, relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 10.09.2008.

[40] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 17.

[41] Como ensina Roger Raupp Rios, ao tratar do conceito de discriminação indireta: “De fato, muitas vezes a discriminação é fruto de medidas, decisões e práticas aparentemente neutras, desprovidas de maior justificação, cujos resultados, no entanto, têm impacto diferenciado perante diversos indivíduos ou grupos, gerando e fomentando preconceitos e estereótipos inadmissíveis do ponto de vista constitucional” (RIOS, Roger Raupp. Direito da antidiscriminação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 117).

[42] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 428-429.

[43] LAZZARI, João Batista. Parte II – Regime Geral de Previdência Social. In: LAZZARI, João Batista et al. Comentários à reforma da previdência. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 87-146. Citação das p. 101-103.

[45] FORTES, Simone Barbisan; PAULSEN, Leandro. Direito da seguridade social: prestações e custeio da previdência, assistência e saúde. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 106.

[46] COIMBRA, José dos Reis Feijó. Direito previdenciário brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Edições Trabalhistas, 1999. p. 184-185.

[48] “Art. 26. Até que entre em vigor a nova lei complementar a que se refere o § 1º do art. 201 da Constituição, o valor da aposentadoria por incapacidade permanente concedida aos segurados do Regime Geral de Previdência Social corresponderá a sessenta por cento da média aritmética a que se refere o art. 29, com acréscimo de dois por cento para cada ano de contribuição que exceder o tempo de vinte anos de contribuição. Parágrafo único. Nas hipóteses de acidente de trabalho, doenças profissionais e doenças do trabalho, o valor da aposentadoria a que se refere o caput corresponderá a cem por cento da referida média.”

[50] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 257-258 e 689.

[51] ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antônio. Curso de direito previdenciário: fundamentos de interpretação e aplicação do direito previdenciário. Curitiba: Alteridade, 2014.

[52] SOUZA, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. 6. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 483.

[53] ROCHA, Daniel Machado da; SAVARIS, José Antônio. Curso de direito previdenciário: fundamentos de interpretação e aplicação do direito previdenciário. Curitiba: Alteridade, 2014. p. 132.

[54] SOUZA, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. 6. reimp. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 491. Segundo os referidos autores: “A razoabilidade por vezes é invocada como exigência de correspondência entre a medida estatal e o quadro fático que lhe é subjacente. O Estado, ao editar normas ou outras medidas, não pode se basear em fatos inexistentes, descolando-se da realidade. Não pode, em outras palavras, contrariar a ‘natureza das coisas’. (…) Outra dimensão da razoabilidade diz respeito à exigência de coerência normativa. Nesse sentido, fala-se em coerência interna e em coerência externa da medida. A coerência interna impõe que não haja contradições num ato normativo, não apenas no sentido estritamente lógico, mas também teleológico ou axiológico. O Ministro Joaquim Barbosa, em voto que proferiu no HC nº 84.025-5, que versava sobre a possibilidade de interrupção da gestação do feto anencefálico, apontou, por exemplo, a incoerência interna produzida por uma leitura literal do Código Penal, que não admite o aborto do feto absolutamente inviável, que não gerará vida, mas que permite no caso de estupro da gestante, no qual existe o potencial de vida do nascituro. (…) Quanto à coerência externa, ela se relaciona à harmonia entre a medida estatal e os valores da sociedade e do ordenamento jurídico como um todo. Se, por exemplo, fosse hoje editada uma norma proibindo as pessoas de terem em suas residências animais domésticos – como cães e gatos – ou que vedasse às mulheres o uso de biquínis na praia, faltaria a essa lei razoabilidade externa. A razoabilidade como coerência externa pode ser usada para combater anacronismos legislativos, hipótese em que será possível falar-se numa ‘irrazoabilidade superveniente’”.

[55] ADI 5.013, relator(a): Edson Fachin, relator(a) p/ acórdão: Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 24.08.2020, processo eletrônico DJe-272 divulg. 13.11.2020, public. 16.11.2020.

[56] RE 575.089, relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 10.09.2008.
 

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