Direito Hoje | Assistência judiciária gratuita e judicialização: sobre a possibilidade de definição jurisprudencial de um parâmetro inicial objetivo para o seu deferimento no processo previdenciário
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Paulo Afonso Brum Vaz
Desembargador Federal, Mestre em Poder Judiciário pela FGV, Doutor em Direito Público pela UNISINOS, Pós-Doutor em Direitos Humanos e Fundamentais pelo IGC – Coimbra, Membro da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social (ABDSS), Professor de Direito Processual Civil e Previdenciário das Escolas Superiores da Magistratura de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul

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 Paulo Afonso Brum Vaz 

17 de maio de 2021

Introdução

O direito à gratuidade da justiça está referido no art. 5º, LXXIV, da Constituição da República, estabelecendo que: “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Portanto, consubstancia-se em uma garantia constitucional que assegura aos hipossuficientes a prestação de assistência judiciária gratuita.

Trata-se de princípio constitucional e direito fundamental, conquista histórica intimamente relacionada com uma das ondas de acesso à justiça preconizadas por Cappelletti e Garth. A efetivação do acesso à justiça diz respeito ao cumprimento de condições objetivas que garantem ao cidadão a oportunidade de obter a resolução de seu conflito de interesses pelo Poder Judiciário. No entanto, as despesas processuais podem limitar essa garantia de uma parcela da população. “A justiça [...] só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos; aqueles que não pudessem fazê-lo eram considerados os únicos responsáveis por sua sorte. O acesso formal, mas não efetivo à justiça correspondia à igualdade apenas formal, mas não efetiva”.[1]

Neste breve artigo, vertendo aproximações sobre a assistência judiciária gratuita no processo previdenciário enquanto locus de solução de conflitos judicializados sobre os direitos da seguridade social que demanda tratamento específico e diferenciado, trago à reflexão perspectivas críticas em torno das ideias (concretas) de limitação do acesso ao direito de gratuidade por via legislativa e da ausência de um parâmetro objetivo como início (abertura) de interpretação judicial para a análise dos pedidos de AJG. Almejo demonstrar que eventuais abusos da AJG não se resolvem pelo legislador, e sim pelos tribunais, estabelecendo o referido parâmetro, que entendo ser o limite teto para o valor dos benefícios do RGPS.

1 Riscos intrínsecos à limitação do acesso à AJG pelas vias legislativa e judicial

Depois que a assistência judiciária gratuita passou a ser a panaceia para a desjudicialização, ataca-se, em vez da origem do problema, o instituto em si, que desempenha papel fundamental na ampliação das vias de acesso à justiça. Mata-se o mensageiro porque a mensagem não nos interessa (“ne nuntium necare”).

Trata-se de rematado equívoco legislativo, se considerarmos que o Brasil é um país marcado pela pobreza extrema e ainda conta com imensos gargalos de acesso à justiça. Corre-se o sério risco de esvaziamento da Justiça Federal comum e dos tribunais regionais federais, que julgam metade dos processos previdenciários no Brasil, e o fazem com qualidade inquestionável, construindo, há décadas, a melhor jurisprudência sobre os direitos da seguridade social.

A supressão da AJG ampla no processo previdenciário, cuja razão de ser está vinculada à necessidade de alargamento das vias de acesso à justiça previdenciária, devido à retração da via administrativa na concessão dos benefícios e à imprescindibilidade de concretização dos direitos sociais fundamentais, pode redundar em sobrecarga dos juizados especiais federais, hoje já ordinarizados e assoberbados pelo excesso de processos.

Tem-se esse trabalho muito bem dividido entre a Justiça Federal e os juizados especiais federais, os dois microssistemas funcionando satisfatória e equilibradamente. Mas uma guinada com a limitação do direito à AJG fará com que aquela se torne uma justiça de elevado risco, pelo fantasma dos ônus da sucumbência, além de inacessível a muitos, em razão das custas processuais que precisarão ser adiantadas.

Nessa senda, o processo previdenciário na Justiça Federal vai se tornar, além de uma justiça elitizada, autêntica batalha pelos honorários. Considerando a situação atual, em que os procuradores federais que defendem o INSS em juízo percebem honorários advocatícios, cumulativamente com a remuneração, equiparada à dos juízes, penso que, ao menos nos processos previdenciários, não se deveria legislar no sentido de limitar o sacrossanto direito constitucional à AJG.

Nos juizados especiais federais, impera a gratuidade, não há condenação honorária e os riscos da sucumbência são mínimos. Todavia, embora não se possa dizer que a cognição nos juizados seja ampla, ninguém ignora que as próprias sumariedade e informalidade, que também são seus princípios estruturantes, culminam por implicar déficits garantísticos importantes. Na prática, isso fica muito mais claro quando se contrasta a jurisprudência das turmas recursais com a dos tribunais regionais federais. O aprofundamento das matérias no julgamento dos recursos julgados pelos TRFs é algo de que não se deveria prescindir. Imagine-se que sequer a ação rescisória, uma das ações mais recorrentes e importantes no processo previdenciário, pode ser manejada no rito sumário dos juizados especiais.

Acredito que afunilar o acesso à justiça previdenciária por meio da limitação da AJG, além de inconstitucional, seria um grande retrocesso civilizacional. Talvez se esteja mesmo decretando o fim da Justiça Federal, cujo espírito e alma estão nas ações previdenciárias, interrompendo um trabalho de construção pretoriana de mais de 40 anos e por todos os atores do Direito Previdenciário admirada.

2 Limitação do acesso à justiça pela normativa do deferimento do benefício da assistência judiciária gratuita

Tramita no Congresso Nacional, em caráter de urgência, o Projeto de Lei 6.160/2019, encaminhado pelo Executivo, que cria obstáculos ao deferimento do benefício da gratuidade de justiça. Vejam-se os arts. 2º e 5º do PL:

Art. 2º A Lei nº 5.010, de 30 de maio de 1966, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 45-A. Terá direito à gratuidade de que trata o art. 45 a pessoa pertencente a família de baixa renda, assim entendida:

I – aquela com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo; ou

II – aquela com renda familiar mensal de até três salários mínimos.

§ 1º A prova da condição de que trata o caput será realizada por meio da apresentação pelo autor do comprovante de habilitação em cadastro oficial do Governo Federal instituído para programas sociais.

§ 2º Condenado o beneficiário da assistência judiciária gratuita ao pagamento de honorários, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos suficientes para suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas no prazo de cinco anos, contado do trânsito em julgado da decisão, se o credor demonstrar que deixou de existir a situação prevista no caput.

§ 3º Findo o prazo de cinco anos a que se refere o § 2º, as obrigações decorrentes da sucumbência do beneficiário da assistência judiciária gratuita que ainda não estiverem sendo executadas ficam extintas.”

 

Art. 5º A Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 3º-A. O acesso ao Juizado Especial Federal Cível independerá do pagamento de custas, taxas ou despesas processuais apenas na hipótese de concessão de assistência judiciária gratuita.

§ 1º Terá direito à gratuidade prevista no caput a pessoa pertencente a família de baixa renda, assim entendida:

I – aquela com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo; ou

II – aquela com renda familiar mensal de até três salários mínimos.

§ 2º A prova da condição de que trata o § 1º será realizada por meio da apresentação pelo autor do comprovante de habilitação em cadastro oficial do Governo Federal instituído para programas sociais.

§ 3º Condenado o beneficiário da assistência judiciária gratuita ao pagamento de honorários, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos suficientes para suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas no prazo de cinco anos, contado do trânsito em julgado da decisão, se o credor demonstrar que deixou de existir a situação de prevista no § 1º.

§ 4º Findo o prazo de cinco anos a que se refere o § 3º, as obrigações decorrentes da sucumbência do beneficiário da assistência judiciária gratuita que ainda não estiverem sendo executadas ficam extintas.”[2]

Coloco-me contra o afunilamento do acesso à justiça a partir da limitação ao deferimento do benefício da assistência judiciária gratuita. O problema maior está na retração da via administrativa. Os índices de negativas do INSS, ultimamente muito maiores do que sempre foram, passaram a ser acintosos. Conforme se tem noticiado, mais da metade dos requerimentos são indeferidos.[3] Por outro lado, o elevado índice de procedências evidencia que não se trata de um acesso abusivo à justiça, que mereça ser forçadamente reprimido por uma medida legislativa.

O direito à assistência judiciária gratuita, como disse, tem assento na Constituição e decorre do princípio do acesso à justiça (art. 5º, XXV, CR). Representa uma garantia de ampliação do acesso à justiça para aqueles que não têm condições de pagar as despesas do processo. Se existem casos de pessoas que litigam indevidamente sob o pálio da assistência judiciária gratuita, são esses abusos e somente esses que devem ser coibidos.

Eventuais limites não podem ser estabelecidos por meio de lei, sobretudo de modo tão aviltante que quase aniquila o direito, ferindo de morte seu núcleo essencial, como nessa proposta legislativa. Isso representaria o fim mesmo da AJG, na medida em que engessaria a análise judicial mais acurada e particularizada que deve preceder ao deferimento ou indeferimento do pedido, tal como preconiza o CPC. Certamente, a aprovação de um texto legal tão limitador, num estágio em que o fantasma do consenso positivista volta a assombrar, representaria um risco muito grande de os juízes não conseguirem se libertar das amarras legislativas e, desconsiderando a diferença entre texto e norma, fazer tabula rasa das situações particularizadas da faticidade e da fenomenologia de cada caso.

Observa-se na práxis do processo previdenciário um “demasiado subjetivismo judicial”, impedindo que o direito à AJG fique reservado aos seus legítimos destinatários. Isso implica, vezes sem conta, tratamentos desiguais para situações idênticas.

Sustento, portanto, a adoção de um único critério objetivo racional, que possa servir de norte hermenêutico para a compreensão judicial, a qual hoje atua na base do subjetivismo e da discricionariedade. A tarefa é dos juízes, e não do legislador. É preciso construir precedentes jurisprudenciais que definam um critério objetivo utilizável no processo previdenciário, sem adentrar em matéria de fato, defesa aos mecanismos de solução de demandas repetitivas.

É factível a solução do problema de pessoas que têm condições de pagar as despesas processuais litigando sob o pálio da AJG, circunstância que em tese pode contribuir para o abuso do direito de ação e a judicialização sem riscos, criando-se alguns filtros jurisprudenciais firmados racionalmente e depois de amplo debate pela via dos precedentes vinculantes, forjados em IRDR ou IAC.

3 A jurisprudência pacífica que rechaça a adoção de parâmetros objetivos estanques para o (in)deferimento da AJG confrontada pela práxis pretoriana

A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça sobre gratuidade de justiça entende que o exame judicial não pode se amparar unicamente em critério objetivo, sem deixar de considerar a situação financeira concreta da parte interessada (STJ, 1ª Turma, AgInt no REsp nº 1.463.237, rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 16.02.2017; STJ, 2ª Turma, REsp nº 1.706.497, rel. Ministro Og Fernandes, julg. 06.02.2018; STJ, 3ª Turma, AgInt no REsp nº 1.703.327, rel. Ministra Nancy Andrighi, julg. 06.03.2018). Ainda, de acordo com o STJ, a afirmação de pobreza goza de presunção relativa de veracidade, podendo o magistrado, de ofício, indeferir ou revogar o benefício da assistência judiciária gratuita quando houver fundadas razões acerca da condição econômico-financeira da parte (STJ, AgInt nos EDcl no RMS 59.185/RJ, rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 17.12.2019, DJe 19.12.2019).

Na mesma linha, a Corte Especial do TRF4, antes do Código de Processo Civil de 2015, decidiu nos seguintes termos:

Para a concessão da assistência judiciária gratuita, basta que a parte declare não possuir condições de arcar com as despesas do processo sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família, cabendo à parte contrária o ônus de elidir a presunção de veracidade daí surgida – art. 4º da Lei nº 1.060/50. 2. Descabem critérios outros (como isenção do imposto de renda ou renda líquida inferior a 10 salários mínimos) para infirmar presunção legal de pobreza, em desfavor do cidadão. 3. Uniformizada a jurisprudência com o reconhecimento de que, para fins de assistência judiciária gratuita, inexistem critérios de presunção de pobreza diversos daquele constante do art. 4º da Lei nº 1.060/50. (TRF4, Incidente de Uniformização de Jurisprudência na Apelação Cível nº 5008804-40.2012.4.04.7100, Corte Especial, relator Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, relator para acórdão Desembargador Federal Néfi Cordeiro, por maioria, julgado em 22.11.2012)

Nada obstante, na práxis judicial de primeiro e segundo graus, continua-se adotando, de um modo geral, algum parâmetro de renda. Conquanto se refira que basta a declaração de pobreza para o deferimento da benesse, no caso a caso, utilizam-se critérios objetivos como, por exemplo, o número de salários mínimos, o valor teto dos benefícios da previdência, o limite de isenção do IR, o valor de três salários mínimos ou o valor de 40% do teto do RGPS, conforme art. 790, § 3º, da CLT, na redação dada pela Lei 13.467/17, e outros que ficam na inventividade dos juízes.

Essa diversidade de critérios (objetivos) denota o quão benéfica seria a estipulação de algum referencial objetivo que pudesse servir de ponto de partida para a análise da situação financeira concreta do requerente.

Em certa medida, as divergências podem ser atribuídas ao fato de que, após a uniformização operada pela Corte Especial, entrou em vigor o Código de Processo Civil de 2015, que, em seu art. 99, § 2º, confere ao julgador a possibilidade de indeferir a justiça gratuita quando houver nos autos elementos que evidenciem a falta de pressupostos legais para a concessão do benefício, apesar da declaração de hipossuficiência econômica feita pelo requerente.

Assim, considerando o atual cenário jurisprudencial, e com o objetivo de conferir maior segurança jurídica (previsibilidade das decisões judiciais) e tratamento mais isonômico entre jurisdicionados que se encontrem em situação econômico-financeira bastante semelhante, vejo que há espaço e até mesmo necessidade de se pensar na uniformização do entendimento acerca da questão.

Como se percebe, a jurisprudência rechaça a fixação de um critério objetivo totalizante ao qual se recorra como balizador único disjuntivo para a concessão ou não da gratuidade da justiça. Vale destacar que, consultando os diversos julgados, constata-se que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e o paradigma da Corte Especial deste Regional quanto a refutar o critério único objetivo se formaram a partir da interpretação do texto do art. 4º da Lei 1.060/50, que acabou sendo expressamente revogado pelo Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13.105/15), o qual passou a disciplinar de maneira quase integral o benefício da gratuidade da justiça. O art. 4º da Lei 1.060/50 assim dispunha: “a parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família”. Hoje, o art. 98 do CPC/15 assim estatui: “a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade da justiça, na forma da lei”. E o § 3º do art. 99 do CPC/15 diz o seguinte: “presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural”.

A sutil alteração do texto – embora não tenha sido profunda ou ruptora – permite ao menos uma releitura da jurisprudência do STJ e da decisão da Corte Especial do TRF4 – sem evidentemente desprezá-las – para que sejam ressignificadas a partir do novo texto inserido pelo CPC/15.

Então, se, por um lado, não é possível criar critérios objetivos excludentes de renda para o (in)deferimento da gratuidade, por outro, nada parece impedir que, como início de compreensão ou ponto de partida, seja estabelecido um patamar de rendimentos cuja percepção, única e exclusivamente, não seja apta a afastar a presunção de hipossuficiência econômica decorrente da declaração feita pelo interessado. É aqui que enxergo um campo propício para a uniformização, pois, como já afirmei em outra oportunidade, é preferível haver um mínimo de objetividade a deixar-se ao exame complexo do caso a caso, o que acabará descambando para o indesejável subjetivismo, o qual nem sempre conduzirá a resultados isonômicos.

Além disso, é importante referir que o Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal, por meio da Nota Técnica 22/2019, em estudo realizado acerca dos critérios e dos impactos da concessão da gratuidade no âmbito da JF, afirma que a dispersão jurisprudencial em torno dos critérios utilizados para o deferimento da justiça gratuita é um dos fatores incentivadores da intensa judicialização das demandas. Também convém referir a disposição do governo em rever o benefício de gratuidade da justiça, devido à falta de objetividade sobre quem merece ou não o benefício, o que faz com que algumas pessoas que poderiam pagar tenham acesso à gratuidade, enquanto outras, que não podem custear o processo, aguardam avaliação de critérios pelo juiz. Prova disso é o PL que mencionei alhures.

4 Reflexões sobre um possível parâmetro específico para o processo previdenciário

Sem prejuízo da ampliação do objeto da discussão para as demais matérias em outra oportunidade, é importante que, em um primeiro passo, a uniformização alcance as demandas de natureza previdenciária. Aqui, parece adequado compreender a relativa autonomia do processo previdenciário, que é regido por princípios e institutos próprios, como bem reconheceu o STJ em precedente vinculante, cuja transcendência dos motivos seus determinantes autoriza que sejam considerados em todos os processos previdenciários. Nesse emblemático precedente, o STJ consagrou a natureza especial do processo previdenciário, admitindo que nele há uma relativa mitigação ou “flexibilização dos rígidos institutos processuais”, admitindo-se maior maleabilidade procedimental, consoante a ementa do Tema 629/STJ, que é do pleno conhecimento de todos.

A partir dessa relativa autonomia procedimental, que confere ao processo previdenciário um sentido voltado a ampliar o acesso dos presumidamente hipossuficientes à justiça previdenciária, é que se pode colocar em discussão a gratuidade da justiça apenas nos processos previdenciários, sem qualquer comprometimento de uma perspectiva mais ampla e que pode não atender adequadamente às suas peculiaridades e idiossincrasias.

No processo previdenciário, não é possível estabelecer critérios, legais ou jurisprudenciais, demasiado apertados, muito menos absolutos. Os critérios sempre devem ser normas de abertura, e não de fechamento. Os segurados do INSS e aqueles que aspiram a benefícios previdenciários na via judicial raramente ostentam boas condições financeiras, ou, melhor dizendo, possibilidade de pagar as custas e as despesas processuais sem prejuízo da sua subsistência. Mesmo com a possibilidade legal de concessão parcial da AJG, considero que não é útil nem produtivo ao Poder Judiciário passar a investigar eventuais sinais de riqueza dos autores dessas ações. O custo-benefício seria negativo. Seria mais producente tornar gratuita a justiça previdenciária como regra geral. Vai-se gastar dinheiro e tempo precioso com uma questão periférica. Hoje, uma enxurrada de agravos de instrumento assoberba os tribunais discutindo justamente os limites para a concessão da AJG, enquanto o mérito dessas ações fica para um segundo plano.

O processo previdenciário, em razão da sua marcada conotação social, não pode ser um processo de risco, em que o fantasma da condenação honorária paire sobre as cabeças dos segurados e de seus dependentes. Sempre foi assente a presunção de hipossuficiência dos segurados do INSS em juízo (ver precedente vinculante do STJ, o conhecido Tema 629, em que essa condição ficou expressa). Daí já se vê que a gratuidade da justiça é um direito a eles intrínseco. Negar esse direito me parece violar, além do princípio do acesso à justiça, o princípio constitucional da máxima proteção social.

Veja-se que, nesses processos, sobretudo quando aumentam exponencialmente as ações cujo objeto são benefícios por incapacidade, em razão do adoecimento da população, a perícia médica se faz essencial. Como exigir que o segurado, sem o benefício da AJG, adiante os honorários periciais?

Deve-se lembrar, se a preocupação é com os honorários agora devidos aos procuradores públicos, que, conforme o disposto no § 2º do art. 98 do CPC/15, a concessão de gratuidade não afasta a responsabilidade do beneficiário pelas despesas processuais e pelos honorários advocatícios decorrentes da sucumbência, podendo o vencido beneficiário ser executado no prazo de 5 (cinco) anos após o trânsito em julgado da decisão, caso haja alteração na sua situação financeira.

5 Possíveis parâmetros e suas inconsistências

A partir dessas premissas epistemológicas, gostaria de analisar, mais de perto e criticamente, alguns critérios que são comumente utilizados na práxis judicial. Uns aviltantes, outros demasiadamente elevados.

Em primeiro lugar, o limite de isenção do imposto de renda – um dos parâmetros que ainda se vê em decisões no primeiro grau de jurisdição. Embora adequado, revela-se insuficiente como ponto de partida. Isso porque o limite atual de R$ 1.903,98 por mês encontra-se absolutamente defasado. A evolução do salário mínimo de 1994 até 2021 foi de R$ 70,00 (setenta reais – 09/1994) a R$ 1.100,00 (um mil e cem reais – 01/2021). Ressalvado o arredondamento realizado para fins de facilitar a comparação, temos que o salário mínimo atual é 15,71 vezes maior que o salário mínimo de 1994. Ao transpor essa mesma analogia para a tabela do IRPF, o limite de isenção atual é 1,9 vezes maior que o salário mínimo. Proporcionalmente, em 09/1994 o limite de isenção da tabela do IRPF era de R$ 620,71 (seiscentos e vinte reais e setenta e um centavos), ou seja, 8,9 vezes maior que o salário mínimo à época. O paralelo traçado demonstrou, ainda que de forma rápida e simplória, o quanto a tabela do IRPF está defasada se comparada ao salário mínimo, uma vez que, se fosse buscada a mesma proporção de evolução que existia em 09/1994, para os dias de hoje, o limite de isenção deveria estar em R$ 9.266,31 (nove mil, duzentos e sessenta e seis reais e trinta e um centavos), o que evidencia a imprestabilidade do critério do limite de isenção do IR para a finalidade pretendida. Segundo estudo elaborado pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (SINDIFISCO NACIONAL), a defasagem da tabela do imposto de renda em relação à inflação alcança 103,87% desde 1996. Logo, o limite atual de isenção do imposto de renda não se mostra, sob qualquer ângulo, um critério válido para aferir condições de elegibilidade para a gratuidade da justiça.[4]

Em segundo lugar, o parâmetro fixado pelo § 3º do art. 790 da CLT (na redação dada pela Lei nº 13.467/17), que prevê a concessão da justiça gratuita ao reclamante que perceba salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do RGPS, o que corresponde a R$ 2.573,42 (para o ano de 2021), embora adequado, é igualmente insuficiente. Não se pode afirmar que a parte que perceba pouco mais do que 2,3 salários mínimos possua condições de arcar com o ônus do processo sem comprometer o sustento próprio ou de sua família. Segundo estimativa do DIEESE, em contrapartida ao salário mínimo nominal (R$ 1.100,00, em 2021),[5] o salário mínimo necessário para sustentar uma família de quatro pessoas – formada, em média, por dois adultos e duas crianças – com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, na média entre janeiro e julho de 2020, deveria representar o valor líquido de R$ 4.511,52.[6]

Vale lembrar que custear o processo sem prejuízo do sustento próprio ou da família não significa apenas ter de pagar as custas, e sim também assumir financeiramente o risco de litigar e perder a demanda em face da Fazenda Pública, sofrendo a condenação aos honorários de sucumbência (segundo o texto do art. 98, caput, do CPC/15, a gratuidade pressupõe “insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios”).

Nesse sentido, o custo mínimo que o particular poderá ter de suportar litigando no juízo comum da Justiça Federal (1% sobre o valor da causa para ações cíveis em geral – Lei 9.289/96 – mais 10% de honorários advocatícios sobre o valor da causa – art. 85, § 2º, do CPC/15), considerando o valor da causa de, no mínimo, 60 salários mínimos (valor aquém estará na alçada dos juizados especiais federais), equivale aproximadamente a R$ 6.600,00. Portanto, a percepção de salário pouco acima de R$ 2.573,42 não poderá, à evidência, fazer frente ao custo mínimo do processo judicial.

Em terceiro lugar, o critério de renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo ou de renda familiar mensal de até 3 (três) salários mínimos, que consta do Projeto de Lei 6.160/19 e que vem sendo adotado por alguns magistrados na Justiça Federal da 4ª Região, também se revela insuficiente para a finalidade ora proposta. Lembre-se que a gratuidade da justiça requer a presença de hipossuficiência econômico-financeira do interessado, e não a condição de miserabilidade social. Esse parâmetro que se pretende implantar pela via legislativa é deveras aviltante e, como disse antes, fere de morte o núcleo essencial do direito fundamental à gratuidade de justiça. Portanto, mostra-se um critério inconstitucional.

Em quarto lugar, considero que o parâmetro de 10 (dez) salários mínimos (atualmente representa R$ 11.000,00) se mostra relativamente elevado e, portanto, inadequado para ser adotado como ponto de partida. É um valor que se afasta do custo mínimo do processo judicial. Com efeito, não identifico base de realidade para lastrear a afirmação de que esse seja um limite salarial inicial até o qual não se permita ilidir a presunção de pobreza da declaração. Além do mais, se fosse definido um ponto de partida tão alto, o que se observaria, na prática, é que esse acabaria se tornando um verdadeiro ponto de chegada. Isto é, um critério objetivo totalizante a impedir a comprovação da insuficiência econômica para quem percebesse rendimentos acima de dez salários mínimos, exatamente aquilo que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e a tese firmada pela Corte Especial deste Regional rechaçaram.

O teto do Regime Geral da Previdência Social – RGPS, ao que penso, além de guardar consonância temática com a matéria previdenciária, é o que mais se aproxima do custo mínimo do processo no juízo comum. Adotar o teto do RGPS como parâmetro hermenêutico inicial não significa afirmar que a percepção de rendimentos acima desse patamar implique o automático indeferimento da justiça gratuita. A presunção de veracidade, em tal hipótese, apenas terá menor força, e poderá ser complementada por outros meios, conforme a situação econômica específica da parte no caso concreto.[7] Para citar um exemplo, imagine-se a situação em que a parte interessada obtenha rendimentos superiores ao teto do RGPS, porém, esteja custeando tratamento dispendioso de uma enfermidade sua ou de um familiar, circunstância que o impossibilitará, apesar da renda, de fazer frente às despesas do processo judicial. A ficção jamais deverá se sobrepor à realidade e à faticidade do caso concreto em análise.

É importante ressaltar que, nesses casos, o indeferimento só se revelaria possível se, por iniciativa do juiz ou da parte contrária, o interessado, devidamente intimado, não demonstrasse a efetiva hipossuficiência econômico-financeira (art. 99, § 2º, do CPC).

Conclusões

O que me leva a sugerir um mínimo de objetividade, com início de interpretação, meio a contragosto, porque isso pode ser confundido com uma postura lastreada no superado e indesejado positivismo, é justamente a forma mais grave de positivismo que contamina os nossos tribunais, que é o subjetivismo e o solipsismo na apreciação dos pedidos de AJG. Concretamente, é o comportamento hermenêutico de alguns juízes no processo previdenciário. Preocupados com a judicialização, a partir de critérios sem racionalidade, sacrificam o direito ao acesso à justiça dos segurados presumidamente hipossuficientes. Resumindo: estão mais empenhados em debelar a crise dos números (quantitativa) do que solucionar os conflitos das pessoas e suas circunstâncias (crise qualitativa).

Essas razões me levam a sustentar que a vedação jurisprudencial do estabelecimento de critérios objetivos únicos para a concessão de justiça gratuita não impede que se defina, no processo previdenciário, que: (i) o parâmetro objetivo mais racional e adequado à realidade do processo previdenciário é o limite teto dos benefícios do RGPS; (ii) a percepção de rendimentos brutos até o limite teto dos benefícios do RGPS não afasta, por si só, a presunção de veracidade da afirmação de hipossuficiência econômica; (iii) a percepção de renda bruta acima desse limite não acarreta o automático indeferimento da gratuidade da justiça.

 


Referências

BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 6.160/2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1837797. Acesso em: 30 mar. 2021.

BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria Especial de Previdência e Trabalho. Portaria SPRT/ME nº 477, de 12 de janeiro de 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-seprt/me-n-477-de-12-de-janeiro-de-2021-298858991. Acesso em: 30 mar. 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). 1ª Turma. AgInt no REsp nº 1.463.237. Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. 16 fev. 2017.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). 2ª Turma. REsp nº 1.706.497. Relator Ministro Og Fernandes. Julg. 06 fev. 2018.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). 3ª Turma. AgInt no REsp nº 1.703.327. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julg. 06 mar. 2018.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). 4ª Turma. AgInt nos EDcl no RMS 59.185/RJ. Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti. Julgado em 17 dez. 2019. DJe, 19 dez. 2019.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). Corte Especial. Incidente de Uniformização de Jurisprudência na Apelação Cível nº 5008804- 40.2012.4.04.7100. Relator Desembargador Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz. Relator para o acórdão Desembargador Federal Néfi Cordeiro. Maioria. Julgado em 22 nov. 2012.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988.

CASTELANI, Clayton. Benefícios negados pelo INSS superam concessões pela primeira vez em dez anos. Folha de S. Paulo, 7 jun. 2020. Disponível em: https://agora.folha.uol.com.br/grana/2020/06/beneficios-negados-pelo-inss-superam-concessoes-pela-1a-vez-em-dez-anos.shtml. Acesso em: 25 mar. 2021.

DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (DIEESE). Pesquisa nacional da cesta básica de alimentos. Salário mínimo nominal e necessário. Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html. Acesso em: 26 mar. 2021.

 

[1] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Traduzido por Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 20.

[2] BRASIL. Câmara dos Deputados. PL 6.160/2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1837797. Acesso em: 30 mar. 2021.

[3] CASTELANI, Clayton. Benefícios negados pelo INSS superam concessões pela primeira vez em dez anos. Folha de S. Paulo, 7 jun. 2020. Disponível em: https://agora.folha.uol.com.br/grana/2020/06/beneficios-negados-pelo-inss-superam-concessoes-pela-1a-vez-em-dez-anos.shtml. Acesso em: 25 mar. 2021.

[4] DALL’AGNOL, Laísa. Defasagem do Imposto de Renda chega a 104%, dizem auditores. Folha de S. Paulo, 11 jan. 2020. Disponível em: https://agora.folha.uol.com.br/grana/2020/01/defasagem-do-imposto-de-renda-chega-a-103-dizem-auditores.shtml. Acesso em: 30 mar. 2021.

[5] BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria Especial de Previdência e Trabalho. Portaria SPRT/ME nº 477, de 12 de janeiro de 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-seprt/me-n-477-de-12-de-janeiro-de-2021-298858991. Acesso em: 30 mar. 2021.

[6] DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS (DIEESE). Pesquisa nacional da cesta básica de alimentos. Salário mínimo nominal e necessário. Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html. Acesso em: 26 mar. 2021.

[7] O limite teto do RGPS funcionaria como uma espécie de topos hermenêutico. Os topoi são argumentos que, por se encontrarem em uma zona de consenso, tornam possível a invocação de outros argumentos. Constituem pontos de vista ou opiniões comumente aceitas, e a sua força é mais a força da persuasão do que a força da verdade. São, assim, pontos de partida da argumentação tal como o são os fatos e as verdades, os valores e as presunções, com a diferença de que os topoi dizem respeito a auditórios específicos, no caso, os atores do processo previdenciário.

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