Direito Hoje | As liberdades políticas na era digital. Uma leitura conforme a teoria rawlsiana
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Luciana Bauer

Juíza Federal, Doutoranda em Ciência Jurídica no Curso de Doutorado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, em dupla titulação com o Doutorado em Direito da Widener Law School (Delaware/USA)

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 Luciana Dias Bauer 

12 de julho de 2021

“A perspectiva da eternidade não é a perspectiva a partir de um ponto fora do mundo, nem o ponto de vista de um ser transcendente; em vez disso, é uma forma de pensamento e sentimento que as pessoas racionais podem adotar dentro do mundo. E, tendo procedido assim, elas podem, independentemente de sua geração, reunir em um único sistema todas as perspectivas individuais e atingir juntas princípios reguladores que podem ser afirmados por todos, na medida em que vivem de acordo com eles, cada um de seu próprio ponto de vista. A pureza de coração, se pudéssemos atingi-la, consistiria em ver isso claramente e agir com graça e autocontrole em virtude desse entendimento.”

(John Rawls, Uma teoria da justiça)

Resumo

O presente artigo, elaborado de acordo com o método indutivo, pretende elencar vários desafios que a era digital impôs ao exercício das liberdades fundamentais, com enfoque nas liberdades políticas. Serão analisados temas relacionados à ruptura democrática advinda do chamado capitalismo de vigilância e da inteligência artificial, bem como à falta de submissão dos algoritmos às regras de direitos humanos. Por último, serão propostas soluções de acordo com a teoria da justiça de John Rawls.

Palavras-chave: Direito digital. Liberdades políticas. John Rawls.

Abstract

The present article, elaborated according to the inductive method, intends to list several challenges that the digital age has imposed on the exercise of fundamental freedoms, with a focus on political freedoms. Issues related to the democratic rupture arising from the so-called surveillance capitalism and artificial intelligence will be analyzed, as well as the lack of submission of algorithms to the human rights rules. Finally, solutions will be proposed according to John Rawls’s theory of justice.

Keywords: Digital law. Political freedoms. John Rawls.

Introdução

O presente estudo, elaborado a partir do método indutivo, tem como objetivo analisar se as liberdades políticas, como idealizadas e conceituadas por John Rawls, ainda são válidas para a teoria geral da constituição do Estado Democrático. Pretende-se resumir os principais desafios que a era digital e o uso massivo de algoritmos na vida cotidiana provocam na formação do consenso político e quais as possíveis soluções que encontramos dentro da teoria rawlsiana. Com base em tais estudos, tenta-se responder às perguntas essenciais deste trabalho: A liberdade ainda nos importa? Como está a liberdade hoje nas democracias contemporâneas? Como a teoria de John Rawls ajuda a resolver os dilemas das democracias constitucionais?

Primeiramente, será feito um apanhado geral dos conceitos das liberdades fundamentais e seu primado na teoria política de John Rawls. Na segunda parte, serão analisados os desafios contemporâneos das democracias representativas, como o chamado capitalismo de vigilância, a manipulação de dados e algoritmos das redes sociais, o sistema de eleições justas, na formação do consenso democrático. Por último, serão sugeridas soluções conforme a teoria do contrato social rawlsiana.

1 As liberdades democráticas na teoria rawlsiana

1.1 O primado da liberdade

Quais desafios, em sua sociedade do exequível, Rawls encontraria hoje? O que pode colocar fim aos acordos políticos que Rawls tão bem descreveu em sua teoria, e que são a base da justiça como equidade e da própria sobrevivência do Estado como um Estado justo e livre? Como hoje as sociedades estão gerindo seus consensos democráticos?

Rawls tem o conceito do primado da liberdade. É uma certeza para ele que essa liberdade, descrita em Uma teoria da justiça e por ele considerada prioritária, básica ou de primeira ordem, “somente pode ser limitada em nome da própria liberdade”. [1] E, nesse caso, o papel primordial da justiça seria a fundamentação do que seria justo ou não nessas limitações, a fim de que, obtido o consenso sobre o justo, se pudesse enfim colocar a pedra inicial do pacto e fundar a democracia constitucional. Isso seria um conceito-chave imutável para o filósofo.

Rawls sempre teve uma concepção kantiana de liberdade, como podemos ler de sua conferência “A lei moral como a lei da liberdade”, [2] em que ele discorre sobre o acerto com que Kant idealiza a liberdade, como um atributo de espontaneidade absoluta: “(...) para Kant, a questão da liberdade depende da natureza específica da concepção moral aceita como válida. Portanto, a questão não pode ser resolvida apenas no interior da metafisica e da filosofia do espírito”. [3]

Mas, na busca pelos signos da liberdade como os entende John Rawls, é incontornável conhecer sua palestra proferida nas Conferências Tanner de 1981: “As liberdades fundamentais e sua prioridade”. [4] Nela, Rawls responde a vários de seus críticos, como Habermas e Hart, e qualifica essas liberdades como as liberdades fundamentais, geralmente veiculadas por uma carta de direitos ou uma carta constitucional.

Reitera-se que, em Uma teoria da justiça, Rawls imagina que esse acordo hipotético inicial da posição original fixa nos seus conceitos gerais as liberdades fundamentais. Estas condensarão o conceito de justo e assim organizarão a sociedade, com seus dois grandes pilares da justiça: 1) as liberdades fundamentais; e 2) as (des)igualdades econômicas que sejam toleráveis pela maioria e pela minoria e que sejam vantajosas para todos. O dogma inicial rawlsiano de que as liberdades fundamentais são prioritárias e somente podem ser restringidas por outro princípio de liberdade, nos termos em que os filósofos liberais dos séculos XVIII e XIX a entendiam, foi muito influenciado por John Stuart Mill. Esse posicionamento clássico de que o Estado não deve interferir na esfera de vida das pessoas, ou interferir o mínimo possível, foi desenvolvido mais profundamente por Mill em seu livro Sobre a liberdade, que preconizava limites da autoridade da sociedade sobre o indivíduo. Toda interferência no que seja entendido como uma esfera estritamente pessoal do indivíduo, como, por exemplo, sua religião, é uma interferência ilegítima, o que Mill coloca sucintamente como o princípio do dano. [5]

Esse primado da liberdade ou liberdade prioritária se dá porque Rawls é claro ao dizer que, no sistema que ele descreve, as demandas de liberdade têm de ser satisfeitas em primeiro lugar. As liberdades fundamentais são realmente as mais importantes na fundamentação dos pactos social e político. Rawls divide as liberdades, que são aqui o principal foco e que são fundamentais para a igualdade moral dos contratantes do pacto, também em duas vertentes. Para ele, as liberdades formam o primeiro princípio basilar da justiça.

As primeiras seriam as liberdades igualitárias e prioritárias, como a liberdade de consciência e pensamento, as liberdades políticas, a liberdade de associação, e abarcariam todos os direitos concernentes à personalidade. “Rawls justifica esta lista argumentando que estas libertades son especialmente necesarias para ejercitar y desarrollar los poderes morales y perseguir un amplio rango de concepciones razonables del bien. [6] Para ele, estas seriam liberdades absolutas, pois somente podem ser restringidas em favor dessas mesmas liberdades (um exemplo seria uma colisão entre dois direitos de ir e vir, por exemplo). Rawls coloca algumas liberdades políticas no rol dessas liberdades fundamentais prioritárias justamente para que gozem desse status de prioridade. As demais liberdades seriam importantes, mas subsistiriam em segundo plano, como liberdade de contratar, de ter bens privados. São uma segunda categoria, pois não são absolutas, e não gozariam de um primado tão importante como as primeiras.

E como chegamos a essas liberdades fundamentais prioritárias ou não? Rawls imagina essa posição original diante de uma lista de liberdades que a filosofia moral e política nos trouxe, ao longo de anos e de governos sucessivos na história humana. Estas são liberdades básicas e não restringíveis. São restringíveis somente por outra liberdade igual ou semelhante, e a maneira como resolvemos essas colisões é o que forma na sociedade seu conceito de justo. E esse conceito de justo é o que fundamenta a democracia constitucional. É de Rawls a frase:

(...) um entendimento comum da justiça cria uma democracia constitucional. (...) Sem dúvida, as nossas liberdades estão mais firmemente embasadas quando derivam de princípios com os quais as pessoas, situadas equitativamente umas em relação às outras, podem concordar, se é que existe alguma possibilidade de concordância. [7]

Rawls estabelece, em 1981, alguns novos postulados-chave para essas liberdades fundamentais. O primeiro é que cada uma dessas liberdades possui um âmbito principal de aplicação. A assembleia da posição original esboça a forma e o conteúdo gerais e estabelece suas prioridades. Tudo o que vai além seria matéria legislativa e judicial. Elas também são forjadas dentro de tradições muito profundas de concepções de justiça política e social assentadas no Estado Democrático de Direito.

A escolha pelo primado da liberdade teve uma influência muito grande de Isaiah Berlin, que em 1958 publicou o ensaio “Dois conceitos de liberdade”, [8] originado de palestra proferida por ele na Higham Chichele Society. Nele, Berlin faz uma distinção entre liberdades positivas e negativas do ponto de vista do liberalismo tão caro a Rawls. Berlin se faz uma grande pergunta:

Mas se as democracias, sem deixar de ser democráticas, podem suprimir a liberdade, pelo menos como os liberais têm empregado a palavra, o que tornaria verdadeiramente livre uma sociedade? Para Constant, Mill, Tocqueville e a tradição liberal a que pertencem, nenhuma sociedade é livre se não for governada pelo menos por dois princípios inter-relacionados: primeiro, que nenhum poder pode ser considerado absoluto, apenas os direitos o podem, de modo que todos os homens, qualquer que seja o poder que os governa, têm o direito absoluto de se recusarem a ter um comportamento desumano; e, segundo, que há fronteiras, traçadas de modo não artificial, dentro das quais os homens devem ser invioláveis, sendo essas fronteiras definidas em função de regras aceitas há tanto tempo e de forma tão difundida que seu cumprimento já passou a fazer parte da própria concepção do que é um ser humano normal e, portanto, também do que é agir desumanamente ou insanamente; regras das quais seria absurdo dizer, por exemplo, que poderiam ser revogadas por algum procedimento formal da parte de um tribunal ou órgão soberano. [9]

Assim, vimos que um dos principais pilares de uma sociedade ordenada, para Rawls, é uma constituição justa. E essa constituição justa há que respeitar o primeiro princípio da justiça, que é, na teoria rawlsiana, o princípio das liberdades fundamentais e o primado dentro do esquema constitucional.

1.2 Pluralismo político e a liberdade formadora do consenso democrático

A obra que teve por nome Pluralismo político veio reunir as muitas reflexões, críticas e esclarecimentos que o próprio Rawls achou importante fixar para a revisão de sua teoria da justiça. Um dos nós principais que o próprio Rawls percebeu no confronto de suas ideias com as democracias reais dá nome ao próprio livro. Como formar o consenso democrático em sociedades plurais e muitas vezes divididas, a fim de estruturar sua sociedade do desejável e do factível? Rawls fundamenta sua resposta em como as sociedades manejam suas pluralidades políticas.

Já no seu primeiro artigo de respostas às críticas de Uma teoria da justiça, [10] Rawls atenta a que o liberalismo nasce como concepção filosófica para remediar as guerras religiosas dos séculos XVI e seguintes, e o seu contrato social rawlsiano não teria sustentáculo forte se não se defrontasse com a pluralidade de correntes de pensamento dentro da posição original:

Hasta las guerras de religión en los siglos XVI y XVII, estas condiciones habían estado estrictamente establecidas: la colaboración social basada en el mutuo respecto se creía imposible si participaban en ella miembros de otra fe (dicho en los términos que aquí he usado, aquellos que mantenían una concepción del bien fundamentalmente distinta). El liberalismo, en cuanto que doctrina filosófica, tiene su origen en aquellos siglos en que se desarrollaron los distintos argumentos en favor de la tolerancia religiosa. En el siglo XIX, la doctrina liberal fue formulada en su forma esencial por Constant, Tocqueville y Mill pensando en el moderno Estado democrático, cuyo advenimiento veían inminente. Uno de los presupuestos cruciales del liberalismo es que los ciudadanos de pleno derecho tienen ideas distintas – y de hecho inconmensurables – del bien. En una moderna sociedad democrática, la existencia de tales modos de vida distintos se considera una condición normal que sólo puede ser eliminada a través del uso autocrático del poder del Estado. El liberalismo acepta, pues, la pluralidad de las concepciones del bien como un hecho da vida moderna, suponiendo, claro está, que estas ideas respecten los límites especificados en el principio correspondiente a la justicia. Lo que se intenta es mostrar que una pluralidad de ideas del bien es deseable, y cómo un régimen de libertad puede adaptarse a esta pluralidad de modo que se realicen los numerosos beneficios de la diversidad humana. [11]

O cerne da busca de Rawls esteve sempre nessa dualidade entre direitos prioritários – porque inolvidáveis e incontornáveis – e os direitos dessa maioria. Por isso, não temos como apartar os signos que Rawls imprime às suas liberdades e à sua democracia sem que se estude a formação do consenso democrático e da pluralidade de ideias, muitas vezes conflitantes (como Rawls refere).

Rawls, nesse ponto, influencia-se não somente por seus críticos, mas também pelas ideias de pluralismo político de Isaiah Berlin:

O pluralismo, com a dose de liberdade negativa que acarreta, parece-me um ideal mais verdadeiro e mais humano do que as metas daqueles que buscam nas grandes estruturas disciplinadas e autoritárias o ideal do alto domínio positivo por parte de classes, povos ou de toda a humanidade. É mais verdadeiro, pois pelo menos reconhece o fato de que as metas humanas são muitas, nem todas comensuráveis, em perpétua rivalidade umas com as outras. Supor que todos os valores possam ser graduados numa única escala parece-me falsificar nosso conhecimento de que os homens são agentes livres, representar a decisão moral como uma operação que uma regra de cálculo poderia, em princípio, executar. Dizer que em alguma síntese suprema – que a tudo concilia, mas que ainda assim pode ser realizada – o dever é interesse, ou a liberdade individual é pura democracia em um Estado autoritário, equivale a lançar um cobertor metafísico sobre o autoengano ou a hipocrisia deliberada. É mais humano porque não priva os homens (como fazem os construtores de sistema), em nome de igual ideal remoto ou incoerente, de muitos valores que eles têm considerado indispensáveis para a vida como seres humanos que imprevisivelmente se transformam a si mesmos. No final, os homens escolhem entre valores supremos; e assim o fazem porque sua vida e seu pensamento são determinados por categorias e conceitos morais fundamentais que são, pelo menos ao longo de grandes extensões de tempo e espaço, uma parte de seu ser, pensamento e senso de identidade – uma parte que os torna humanos. [12]

Esse pluralismo, o novo amálgama do justo na teoria de Rawls, seria, para ele, o pluralismo do razoável. Assim, os propósitos políticos adviriam agora de um acordo de doutrinas razoáveis (muitas vezes incompatíveis), mas que nada mais são do que resultado normal da razão humana dentro de suas instituições livres de um regime democrático. Para Rawls:

O liberalismo político pressupõe que, para propósitos políticos, uma pluralidade de doutrinas abrangentes e razoáveis, e, ainda assim, incompatíveis, seja o resultado normal do exercício da razão humana dentro da estrutura de instituições livres de um regime democrático constitucional. O liberalismo político pressupõe também que uma doutrina abrangente e razoável não rejeita os princípios fundamentais de um regime democrático. É claro que uma sociedade também pode conter doutrinas abrangentes pouco razoáveis, irracionais ou até mesmo absurdas. Nesses casos, o problema é administrá-las de forma a não permitir que solapem a unidade e a justiça da sociedade. [13]

Rawls faz questão de frisar que não são somente doutrinas diferentes, mas, e principalmente, doutrinas incompatíveis que compõem o pluralismo. Gargarella indica que essa mudança de paradigma gerou um conceito novo e fundamental em Rawls, o de consenso sobreposto, em que este último não se contenta mais com um conceito de justiça hipotético, mas com um conceito de justiça partilhado e que funcione, afastando a maior crítica da teoria, que é a de que ela não se sustenta em um mundo real. Esse consenso sobreposto, ou overlapping consensus, seria destinado a tornar factível que pensamentos razoáveis e opostos resultem em algum acordo:

Segundo Rawls, o consenso sobreposto refere-se a um acordo entre pessoas razoáveis que só aceitam doutrinas abrangentes razoáveis (...) ele é suficientemente profundo para abranger ideias tais como as de que a sociedade constitui um sistema cooperativo equitativo e as pessoas são consideradas livres e iguais, razoáveis e racionais; é suficientemente amplo para estender-se sobre todas aquelas questões vinculadas à estrutura básica da sociedade; e está concentrado em uma específica concepção política da justiça, como pode ser – ou não – a concepção rawlsiana de “justiça como equidade”. [14]

Esse consenso em determinado momento figurará como um consenso constitucional, exprimindo a razão pública que deverá pautar o Estado e seu sistema formal de justiça. A forma e o conteúdo dessa razão – a maneira como é compreendida pelos cidadãos e como ela interpreta sua relação política – são parte da própria ideia de democracia. Isso porque “uma característica básica da democracia é o pluralismo razoável. O fato de que uma pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis e conflitantes, religiosas, filosóficas e morais, é o resultado normal da sua cultura de instituições livres”. [15]

Rawls abandona aos poucos a utopia de seus primeiros pensamentos acerca de um acordo hipotético, ao entender que, para uma teoria da justiça funcionar como pacificadora de um Estado, os cidadãos devem abandonar suas doutrinas irreconciliáveis, em prol de razões razoáveis que possam formar consenso entre os lados opostos. É o exercício da política em si. Nesse sentido, a razão pública tem seu centro nos valores morais e políticos de um povo que, passados pelo crivo da maioria, se corporificam em leis. “Aqueles que rejeitam a democracia constitucional com o seu critério de reciprocidade rejeitarão, naturalmente, a própria ideia de razão pública.” [16] Ou seja, a democracia, para Rawls, é um imperativo da razão pública; e a razão pública, um imperativo da democracia. [17]

Nesse sentido, uma democracia constitucional é, para Rawls, uma visão dualista, [18] com todos os postulados clássicos para seu reconhecimento, como o primado da Constituição e das normas constitucionais como ideal político, a tripartição de poderes, o conteúdo imutável de declaração de direitos e liberdades universais, as normas constitucionais originárias e derivadas.

Outro ponto importante em que a vontade livre se manifesta na teoria rawlsiana – dentro do pacto social – é a ideia de razão pública. John Rawls foi muito enfático ao dizer que sua ideia central é que ela é base do sistema de leis democrático e do sistema judicial. Nesse sentido, a razão pública tem seu centro nos valores morais e políticos passados pelo crivo da maioria e sem ferir direitos de minorias, antes de se corporificarem em leis. Esse é um pensamento muito importante e maduro do filósofo, que, ao rever sua teoria da justiça em seu livro O liberalismo político, colocou uma ênfase muito forte em destacar como o contrato social se perfectibiliza quando as várias matizes de pensamento em um Estado conseguem formar um consenso, que não é de um ou outro em particular, mas um consenso formado por uma pluralidade de entes que compõem a pólis. Este é o verdadeiro embate a formar a democracia pacífica, inclusive com os que não tiveram o seu pensamento contemplado pela maioria, justamente porque percebem que fizeram parte desse debate/consenso por meio da participação efetiva no discurso político. O consenso traz a carga democrática ao Estado com base em uma genuína troca entre forças políticas e ao confeccionar o que ele chama formalmente de consenso constitucional: “No consenso constitucional, uma constituição que satisfaz certos princípios básicos estabelece procedimentos eleitorais democráticos para moderar a rivalidade política no interior da sociedade”. [19]

Nesse ponto, podemos ver similaridade do pensamento de Rawls com a teoria do discurso para a construção democrática de Habermas, quando este último define esfera pública de uma maneira similar, em alguns pontos, à razão pública de Rawls:

A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para comunicação de conteúdo, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. (...) a esfera pública constitui preferencialmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo (...). [20]

Mais adiante, Habermas explicita que a política deliberativa é feita por uma teia de discursos que propicia solução racional para resolver problemas. O processo democrático cria o direito legítimo por meio dessa solução de problemas. Ele considera, assim, que Rawls não resolveu toda a complexidade da criação do direito pela sua teoria da justiça, como se pode depreender deste parágrafo:

Rawls concentra-se em questões da legitimidade do direito, sem tematizar a forma do direito enquanto tal, e com isso a dimensão institucional do direito. O que é específico da validade do direito não entra em seu campo de visão. Por isso, também a dimensão externa entre pretensão de legitimidade do direito e facticidade social é captada de modo reduzido. [21]

Tal concepção responde à grande pergunta que Rawls coloca como fundamental: a democracia e doutrinas abrangentes (religiosas, puramente morais, como incesto) podem ser compatíveis? E, caso positivo, como elas o são? Ele responde que sim, atentando a que o conteúdo dessa razão pública seja uma concepção política de justiça dentro do Estado, e não somente uma doutrina extrajurídica abrangente ditada por uma religião, por exemplo. Em um Estado ditado por uma ditadura ou por uma religião, contrariamente, há a incompatibilidade total com qualquer ideia de razão pública, pois os dogmas superam o consenso com que se constroem as leis. O pensamento puramente moral é um obstáculo a uma tolerância política e mais racional.

1.3 Limites à reconciliação pela razão pública

Nem sempre a razão pública consegue formar seu consenso democrático. Numerosa doutrina atual lembra que a democracia está em risco. Isso ocorre principalmente pela polarização política, o que acaba por tornar o discurso irreconciliável. Rawls lembra que há limites à reconciliação pela razão pública, e eles – infelizmente – estiveram presentes em determinados momentos históricos de ruptura não só constitucional, mas também de ruptura de tolerância e de graves conflitos regionais e mundiais. Para o filósofo, há três tipos principais de conflitos que colocam os cidadãos em desavença. Acrescenta-se aqui que tais desavenças podem beirar a ruptura do pacto social, como vimos numerosas vezes em guerras civis. As principais diferenças apresentadas são as advindas de classes, ocupação, posição no estamento social, etnia, gênero e raça.

Essa polarização política advinda de confronto ideológico, de raça e religião, do discurso de ódio tão comum, que não encontra o seu consenso democrático, é descrita no livro Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que sintetizam os dilemas da democracia americana – e, por que não, de todas as democracias que se deixam levar pela polarização:

Pensar em como resistir aos abusos da administração Trump é sem dúvida importante. Entretanto, o problema fundamental enfrentado pela democracia norte-americana continua a ser a divisão partidária – uma divisão estimulada não só pelas diferenças políticas, mas por fontes mais profundas de ressentimento, inclusive diferenças raciais e religiosas. A maior polarização dos Estados Unidos precede a presidência de Trump e muito provavelmente vai perdurar depois dela.

Líderes políticos têm duas opções diante da polarização extrema. Primeiro, eles podem considerar as divisões da sociedade como naturais, mas tentar se contrapor a elas com cooperação e compromissos no nível das elites. Foi o que os políticos chilenos fizeram. Como vimos no capítulo 5, os intensos conflitos entre socialistas e democratas-cristãos ajudaram a destruir a democracia chilena em 1973. Uma desconfiança profunda entre os dois partidos persistiu durante anos, superando a sua repulsão compartilhada pela ditadura de Pinochet. (...) Finalmente, porém, os políticos começaram a conversar. Em 1978, Lagos retornou ao Chile e foi convidado a jantar com o ex-senador democrata cristão Tomás Reyes. Eles começaram a ter encontros regulares (...). Em agosto de 1985, democratas-cristãos, socialistas e outros dezenove partidos se reuniram no elegante Círculo Español em Santiago e assinaram o Acordo Nacional para a Transição Plena à Democracia. O pacto constituiu a base da coalizão Concertação Democrática, que desenvolveu uma prática de “consenso político”, em cujos termos as principais decisões eram negociadas entre líderes socialistas e democratas-cristãos. [22]

É tão límpida e esclarecedora essa passagem dos autores ao descrever como a falta de consenso político levou a uma absoluta contaminação e paralisação da razão pública no Chile. Mais, conduziu a uma ditadura, que é a área política fora de qualquer razão pública. Afinal, qualquer liberdade imposta não será uma liberdade real.

Hoje as democracias sofrem na sua confecção de razão pública também pela manipulação do discurso político, que a inteligência artificial dos algoritmos traz. Há não só um sério abalo, como uma polarização cada vez mais irreconciliável e artificial, pela desinformação e pelas segmentações ideológicas em redes sociais que muitas vezes manipulam – sem nenhum pudor – eleições inteiras.

2 As liberdades democráticas na era do capitalismo de vigilância

2.1 Os algoritmos e o capitalismo de vigilância

Porém, atualmente, uma inovação que não data de mais do que quinze anos, que se constitui nos algoritmos de regulamentação de redes sociais e demais interações sociais por meio de plataformas de Internet, tem colocado nossas democracias constitucionais em perigo de ruptura. Tais redes são, em sua maioria, geridas por empresas privadas e, como vamos ver, são o novo desafio e o novo perigo para o consenso constitucional e mantenedor do pacto político.

Shoshana Zuboff é muito enfática ao definir o capitalismo de vigilância como esse perigo. Segundo ela, o capitalismo de vigilância se coloca como um mecanismo de destituição da soberania dos indivíduos e expropriação de direitos humanos. É uma funesta mutação do capitalismo marcada por concentrações de riqueza, conhecimento e poder sem precedentes na história da humanidade. [23] Essa professora emérita da Harvard Business School, em seu recente livro A era do capitalismo de vigilância, denuncia o uso da experiência humana como matéria-prima para a extração de dados. Por esse capitalismo de vigilância encontrar nos dados gratuitos uma grata mina de ouro, começou também a manipular as vontades e os desejos dos usuários de redes sociais e Internet. Já em 2015, a professora descrevia a lógica de modelos capitalistas de acumulação na rede (Internet). Seu principal meio de estudo eram as práticas operacionais da Google Inc. e principalmente de seu economista-chefe Hal Varian, que havia estabelecido, segundo ela, os grandes pressupostos para as transações mediadas por computador: 1) extração e análise de dados; 2) novas formas contratuais que implicavam monitoramento; 3) personalização da experiência em rede com conteúdo dirigidos, por exemplo; e 4) experimentos contínuos, dentre eles o de influenciar a vontade e criar necessidades humanas por meio da interação homem-computador. Shoshana Zuboff cria a expressão “grande outro” para esse poder colossal das grandes corporações de Internet, que

é constituído por mecanismos inesperados e muitas vezes ilegíveis de extração, mercantilização e controle que efetivamente exilam pessoas de seu próprio comportamento, enquanto produzem novos mercados de previsão e modificação comportamental. O capitalismo de vigilância desafia as normas democráticas e se afasta de formas fundamentais da evolução secular do capitalismo de mercado. [24]

A autora lembra que, em 2009, o grande público começou a descobrir que o Google retinha dados históricos e personalizados dos usuários e que acumulava esses dados não somente para si, mas para agências de segurança e Estados nacionais. A seguir, começa a se debruçar sobre esses dados, que chamamos genericamente de big data, como o principal mecanismo dessa nova forma de capitalismo, um elemento social e político que os usuários comuns sequer imaginavam:

Meu argumento aqui é que ainda não definimos com sucesso “big data” porque continuamos a vê-lo como um objeto tecnológico, um efeito ou uma capacidade. A inadequação desta visão nos força a voltar ao mesmo terreno. Neste artigo, eu tomo uma abordagem diferente. “Big data”, eu argumento, não é uma tecnologia ou um efeito tecnológico inevitável. Não é um processo autônomo, como Schmidt e outros nos fariam pensar. Ele se origina no social, e é lá que devemos encontrá-lo e conhecê-lo. Neste artigo, exploro a proposta de que o “big data” é, acima de tudo, o componente fundamental em uma nova lógica profundamente intencional e altamente consequente de acumulação que chamo de capitalismo de vigilância. Essa nova forma de capitalismo de informação visa a prever e modificar o comportamento humano como um meio de produzir receita e controle de mercado. (...) É um projeto extrativista fundado na indiferença formal às populações que compõem tanto suas fontes de dados quanto suas metas finais. [25]

O capitalismo é fértil na busca de novos mercados e na invenção deles. E a invenção de tornar o cotidiano das pessoas, não somente o seu trabalho, mas os seus afetos, desejos e frustrações, em capital, um capital lucrativo com o menor esforço, é o objeto desse big data. Shoshana Zuboff nos alerta para o perigo que isso representa não somente para as vidas, mas também para as democracias:

Quase todos os aspectos do mundo são renderizados em uma nova dimensão simbólica à medida que eventos, objetos, processos e pessoas se tornam visíveis, conhecíveis e compartilháveis de uma nova maneira. O mundo renasce como dados, e o texto eletrônico é universal em escala e escopo. Apenas um momento atrás, ainda parecia razoável focar nossas preocupações nos desafios de um local de trabalho de informação ou de uma sociedade da informação. Agora, as questões duradouras de autoridade e poder devem ser dirigidas ao quadro mais amplo possível que é melhor definido como “civilização”, ou, mais especificamente, civilização da informação. Quem aprende com fluxos globais de dados, o quê e como? Quem decide? O que acontece quando a autoridade falha? Que lógica de acumulação moldará as respostas a essas perguntas? Reconhecer sua escala civilizacional dá a essas questões nova força e urgência. Suas respostas moldarão o caráter da civilização da informação no século que está por vir, assim como a lógica do capitalismo industrial e seus sucessores moldaram o caráter da civilização industrial nos últimos dois séculos. [26]

Esse relato de manipulação de liberdades e condução a pensamentos únicos de um número elevado de pessoas submetidas às plataformas (se não de sua totalidade, seja para consumir um produto, seja para eleger um político) aproxima-se muito dos textos de Hannah Arendt ao conceituar o totalitarismo, movimento político caracterizado por cerceamento parcial ou total de liberdades fundamentais e que “objetiva e consegue organizar as massas – e não as classes, como o faziam os partidos de interesses dos Estados nacionais do continente europeu (...). Todos os grupos políticos dependem da força numérica (...)”. [27] A similaridade dos algoritmos usados pelas grandes plataformas e corporações com os regimes totalitários também abarca a opacidade ou ausência de democracia (na confecção e na fiscalização desses algoritmos). Principalmente, veicula-se e se nutre de discursos de ódio e polarizações. Não há dúvida, portanto, de que o capitalismo de vigilância é um fenômeno totalitário de massa, e os algoritmos sem qualquer regulamentação colocam em perigo a democracia constitucional. Isso fica muito patente no documentário O dilema das redes sociais. [28]

Essa degenerescência do contrato social por influência das redes e das plataformas sociais é o principal problema identificado nas democracias hoje.

2.2 Os perigos dos algoritmos das redes sociais para a democracia

Em um contexto no qual a comunicação humana passa por uma revolução com as mídias digitais, que se revelam perigosamente disruptivas, polarizadoras e manipuladoras, há que se analisar o maior escândalo de violação de privacidade de dados e direcionamento político, com manipulação da vontade de vários eleitores, consubstanciado pelo caso Facebook-Cambridge Analytica.

Ele envolveu o uso indiscriminado e não autorizado de informações pessoais e identificáveis de pelo menos 87 milhões de usuários do Facebook ao redor do mundo, principalmente na Europa, que a Cambridge Analytica começou a recolher em 2014. Os dados tiveram por objetivo a venda de “consultoria” que prometia (e cumpriu) influenciar a opinião de eleitores em vários países. A Cambridge ajudou políticos a favor do Brexit a selecionar dados e dirigir sua publicidade política a eleitores indecisos, já que, por meio da análise de dados, os usuários do Facebook e de outras mídias tiveram sua tendência ideológica e eleitoral revelada, decorticada e revendida pelo melhor preço.

A resolução do Parlamento Europeu sobre a Cambridge Analytica resume com perfeição todos os danos que essa singela empresa de análise de dados causou a várias democracias, com a manipulação indiscriminada de dados e algoritmos para favorecimento de candidatos e correntes políticas, em detrimento de um real confronto de ideias. A resolução ressalta o perigo imenso às eleições livres e à democracia advindo das novas tecnologias. [29]

Um artigo do diretor do Center for Civic Media (MIT/EUA), Ethan Zuckerman, debruça-se sobre as bolhas ideológicas e de informação e nos mostra como tal modus operandi foi possível para que a Cambridge Analytica pudesse obter tão ricos dados de uma tamanha quantidade de usuários do Facebook a ponto de influenciar pelo menos quatro decisivos pleitos eleitorais pelo mundo. Ethan analisa como se formam bolsões de informações falsas (desinformação) que manipulam a opinião pública:

A estrutura das plataformas de mídia da Internet contribui para o ensimesmamento ideológico. (...) três gerações diferentes de mídia online tornaram possível selecionar os tópicos e os pontos de vista em que cada usuário está mais interessado. A web anterior ao Google nos permite selecionar pontos de vista mais ou menos como uma banca de jornais: escolhemos uma publicação, e não outra. Diferentemente da TV aberta, que tende a pontos de vista centristas a fim de atrair ampla gama de verbas publicitárias, veículos com foco mais restrito, como sites e revistas, se permitem divisões partidárias mais incisivas. Com a ascensão dos sites de busca, a navegação baseada em interesses passou a nos conduzir à segregação ideológica, seja por causa dos tópicos que selecionamos, seja pela linguagem que usamos. Não espere fazer amigos conservadores em um site de culinária vegetariana, da mesma forma que buscar progressistas em um site sobre caça pode ser frustrante. A linguagem empregada para descrever uma questão – mudança do clima, aquecimento global ou fraude científica – pode isolar a informação que obtemos, com base em critérios ideológicos. O que a mídia social oferece de diferente não é a possibilidade de escolhermos os pontos de vista com os quais entraremos em contato, mas sim o fato de que muitas vezes não estamos cientes das escolhas. [30]

Ethan Zuckerman conclui nesse artigo que chegamos ao que ele qualifica como “diálogo impossível”:

Nosso problema atual é que o diálogo é difícil, senão impossível, porque aquilo que um lado vê como esfera de consenso representa para o outro a esfera do desvio, e vice-versa. Nossos debates se complicam não só porque não conseguimos chegar a acordo sobre um conjunto de fatos compartilhados, mas porque, para começar, não conseguimos nos entender sobre o que merece ser discutido. Não tenho panaceias a oferecer para a polarização e para as câmaras de eco. Ainda assim, vale a pena identificar tais fenômenos – e reconhecer a profundidade de suas raízes – enquanto buscamos soluções para esses problemas. (...)

Acredito que a polarização do diálogo na mídia resulte de novas tecnologias, da maneira pela qual o civismo é praticado hoje e das mudanças profundas nos indicadores de confiança em instituições [muitas pesquisas demonstraram, nas últimas décadas, um decréscimo constante da confiança em todo tipo de instituição – governo, Congresso, religião, mídia, bancos, escolas públicas e assim por diante, um fenômeno que afeta não só os EUA, mas diversos países ocidentais, incluindo o Brasil]. A breitbartosfera é possível não só porque se tornou mais fácil do que nunca criar um veículo de mídia e compartilhar pontos de vista com pessoas que pensam parecido, mas porque a confiança baixa no governo leva as pessoas a buscar novas modalidades de engajamento efetivo – e, mais especificamente, a baixa confiança na mídia as leva a buscar fontes diferentes de informação. Criar e disseminar veículos e conteúdo de mídia parece ser uma das maneiras mais efetivas de engajamento cívico em um mundo em que a confiança desapareceu, e as eleições de 2016 sugerem que essa mídia cívica é uma força poderosa que estamos apenas começando a compreender. [31]

Neste ponto, reitera-se o quanto é importante, na teoria rawlsiana, o conceito de consenso constitucional, o qual veicula o discurso público de nível hierárquico legal maior. Rawls aprimora essa ideia inicial com a figura do consenso sobreposto, já mencionado anteriormente, em que pessoas de diferentes matizes conseguem ajustar suas diferenças em prol de um ponto comum, que seja o justo para ambas. Isso é interessante porque cria estabilidade ao pacto social. Tais pontos nos remetem a uma ideia central para a liberdade e a formação do consenso democrático: que as vontades sejam livres. De uma liberdade palpável, advinda do confronto de ideias, dos pactos de direitos e da troca hodierna, tão humana. Isso demonstra o dano que a manipulação, como a feita pela Cambridge Analytica, pode causar em nossas democracias, quando destrói qualquer conceito de liberdade de voto, de consciência, de privacidade.

E é ainda mais grave porque tais empresas, ao usarem os algoritmos contra seus usuários – e de forma opaca –, fazem-no com clara manipulação de suas vontades e sem qualquer consentimento.

2.3 Algoritmos nas eleições e tentativas de golpes de Estado: quando a polarização inviabiliza o consenso

Pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, as eleições livres em toda a Europa estão sob a influência de forças que não são democráticas. Mas não somente na Europa. As cenas vistas no início deste ano da invasão do Capitólio americano por hordas enraivecidas e insufladas pelo candidato derrotado nas eleições presidenciais americanas de 2020 dão conta da força de manipulação da vontade de poucos, desde que se usem o discurso e as plataformas sociais certas.

Giuliano Da Empoli, em seu livro Os engenheiros do caos, [32] conta detidamente de que forma desinformação, teorias da conspiração e algoritmos estão sendo utilizados para disseminar medo e discursos de ódio e, principalmente, manipular eleições. Sua obra desvenda como o “populismo tradicional se casa com o algoritmo e dá à luz uma temível máquina política”. [33] E, com o surgimento de usuários em redes, temos os novos eleitores-consumidores: uma massa de manobra captada pelo discurso fácil do populismo e das falsas promessas eleitorais (que se retroalimenta dos dados que as próprias pessoas fornecem gratuitamente – vide o referido caso Cambridge Analytica) e que simplesmente vota em quem tiver o maior poder de influência digital.

Na era do narcisismo de massa, a democracia representativa está em risco de se ver mais ou menos na mesma situação que os gatos pretos. De fato, seu princípio fundamental, a intermediação, contrasta de modo radical com o espírito do tempo e com as novas tecnologias que tornam possível a desintermediação em todos os domínios. Assim, seus tempos – forçosamente longos por se basearem na exigência de elaborar e firmar compromissos – suscitam a indignação de consumidores habituados a ver suas exigências satisfeitas em um click até mesmo nos detalhes, a democracia representativa aparece como uma máquina concebida para aferir o ego dos viciados em selfies. Como assim, voto secreto? As novas convenções possibilitam, ou ao menos pretendem, que cada um se fotografe em toda e qualquer ocasião, do show de rock ao enterro. Mas se você tentar fazê-lo na cabine de voto, tudo é anulado? Não é o tratamento ao qual fomos acostumados pela Amazon e pelas redes sociais!

Os novos movimentos populares e nacionalistas nascem também dessa insatisfação. Não é por acaso que eles põem no centro de seu programa a ideia de submeter a democracia representativa ao mesmo destino que o gato preto. [34]

As pessoas se sentem tragadas por algoritmos que as insuflam politicamente a agirem conforme a vontade de uma cúpula partidária, ou uma elite política, empresarial ou de mídia, sem que a verdade real de suas vontades tenha entrado em cena. Isso tudo sob o lustro de um movimento espontâneo de um ou dois cidadãos, mas que esconde um exército de engenheiros de dados e direcionamento de conteúdo, tudo calculado para atingir determinado eleitor, geralmente o eleitor que ainda não se decidiu por um dos lados.

Segundo Da Empoli, as pessoas são sugadas por movimentos nas redes sociais que nascem artificiais, mas elas se sentem autenticamente participando de uma revolução de valores, de uma purgação da velha política ou dos velhos políticos, quando somente são a massa manipulada e manipulável. Nada é real nessa política que perpassa a manipulação digital. Tudo é um simulacro.

Os professores da Universidade de Austin Samuel C. Woolley e Philip N. Howard fizeram uma importante pergunta ao publicar o livro Computational propaganda: political parties, politicians, and political manipulation on social media [35] : a democracia pode sobreviver à propaganda computacional?

É verdade que as mídias sociais são plataformas significativas para o engajamento político, crucial canal para disseminação de conteúdo de notícias e a mídia primária sobre a qual os jovens desenvolvem suas identidades políticas, mas elas também são – e talvez em parte por causa disso – sujeitas a controle. Em alguns países, isso é um problema exacerbado, porque empresas como o Facebook têm efetivamente se tornado plataformas de monopólio para a vida pública. Em várias democracias, a maioria dos eleitores usa as mídias sociais para compartilhar notícias e informações políticas, especialmente durante as eleições (Bakshy, Messing & Adamic, 2015).

Em países onde apenas pequenas proporções do público têm acesso regular às mídias sociais, tais plataformas ainda são infraestrutura fundamental para conversa política entre jornalistas, líderes da sociedade civil e elites políticas (Farhi, 2009; Hermida, 2010). Com essa confluência de comunicação e senso, vêm esforços para cooptar o fluxo de comunicação. As mídias sociais são ativamente usadas como uma ferramenta para manipulação da opinião pública, embora de diversas maneiras e sobre diferentes tópicos. Em países autoritários, as plataformas de mídia social são um meio primário de controle social. Isso é especialmente verdade durante crises políticas e de segurança, mas é geralmente verdade no dia a dia. Nas democracias, as mídias sociais são ativamente usadas para propaganda computacional, seja por meio de esforços amplos em manipulação de opinião, seja de experimentos direcionados em segmentos particulares do público. [36]

O professor da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia Richard Hasen também analisou detidamente a degeneração democrática das novas tecnologias, principalmente dos algoritmos usados nas redes sociais, na penúltima eleição presidencial americana, que elegeu o Presidente Donald Trump. Em Election meltdown, [37] Hasen denomina o primeiro capítulo de “New voting war” (nova guerra pelo voto), analisando casos recentes de fraude eleitoral, de ambos os lados, democrata e republicano, e colocando alguns exemplos de como a fraude se alia à tecnologia digital e ao uso de redes sociais de forma massiva.

Em outro artigo, intitulado “Deep fakes, bots and siloed justices: American election law in a post-truth world”, o Professor Hasen conclui que a legislação e a jurisprudência americanas ainda não resolveram o grande problema das campanhas políticas que ocorrem cada vez mais sob condições de desconfiança e com potencial de interferência estrangeira e manipulação política interna por meio de novas e cada vez mais sofisticadas ferramentas tecnológicas. Tais mudanças dramáticas levantam questões profundas sobre as condições de legitimidade eleitoral e ameaçam abalar a fundação da governança democrática, pois se antes os problemas eleitorais mais comuns vinham de financiamento de eleições, hoje são muito mais complexos e são produto do uso irregular de dados e tecnologia dos algoritmos:

O que pode ser feito de acordo com a Primeira Emenda e sem aumentar o risco de censura para garantir que os eleitores possam tomar decisões eleitorais informadas, apesar de uma enxurrada de discursos, áudios e imagens falsas e enganosas viralmente espalhados? Como os Estados Unidos podem minimizar campanhas de desinformação estrangeiras destinadas às eleições americanas e tentativas de semear discórdia social por meio de exércitos de robôs? Como os eleitores podem obter informações precisas sobre quem está tentando influenciá-los pelas mídias sociais e por outras novas formas de tecnologia? Como podemos esperar que os juízes avaliem as reivindicações contestadas de direitos de voto quando, como outros, podem viver em casulos de informação nos quais a mídia enviesada que consomem afeta seus antecedentes factuais? Os eleitores do lado perdedor de uma eleição encerrada vão confiar no total de votos e nos resultados eleitorais anunciados pelos funcionários eleitorais quando são bombardeados com teorias conspiratórias sobre a confiabilidade da tecnologia de votação e quando adversários estrangeiros visam sistemas de votação para minar a confiança? [38]

Hoje há o dia das eleições e o dia após as eleições, em que estas serão contestadas, com base em uma campanha anterior de desinformação em massa – prévia e profissionalmente idealizada. Hasen propõe uma nova lei que exija que as mídias sociais rotulem como “alterada” a mídia sintética, incluindo as chamadas deep fakes. Ele defende essa nova lei como necessária para apoiar o forte interesse do governo em garantir que os eleitores tenham acesso a informações políticas verdadeiras. Essa lei consideraria não só o impacto do uso de tais algoritmos no financiamento de campanha, mas exigiria que aqueles que usam mídia online e social para influenciar os eleitores, incluindo aqueles que usam bots e outras novas tecnologias, divulguem suas verdadeiras identidades e as fontes e a quantidade de seus gastos. Em resumo, uma transparência dos algoritmos.

Recentemente, os Estados Unidos da América pretendem regular os algoritmos das redes sociais, conforme projeto de lei dos Senadores Cory Booker e Ron Wyden (Algorithmic Accountability Act of 2019). Uma das principais alegações da necessidade da lei é a quebra de liberdades e o risco à democracia que os americanos sofrem com a falta de regulação das mídias sociais.

O projeto de lei se baseia em um extenso relatório sobre Investigação de Competição em Mercados Digitais, [39] iniciado em junho de 2019 pelo Comitê Judiciário do Senado Americano, que foi uma investigação bipartidária sobre o estado da concorrência online, liderada pelo Subcomitê de Direito Antitruste, Comercial e Administrativo. Como parte de uma revisão de ponta a ponta do mercado, o subcomitê analisou o domínio da Amazon, da Apple, do Facebook e do Google. E constatou que suas práticas comerciais afetam não somente nossa economia, mas, principalmente, nossa democracia.

2.4 A privacidade ainda importa?

Na vida cotidiana, as pessoas renunciam a seus direitos às liberdades diante da era digital, seja para participar de uma brincadeira de fotos na Internet, seja simplesmente para obter um bom desconto. Como lidar com essa nova geração e suas liberdades (liberdades fundamentais tão caras a Rawls), diante do tão pouco apreço que ela tem ao conceito de privacidade digital?

O filósofo político Firmin DeBrabander, professor de Filosofia do Maryland Institute College of Art, nos Estados Unidos, em seu livro sobre privacidade no mundo digital Life after privacy: reclaiming democracy in a surveillance society (em livre tradução: Vida após a privacidade: reivindicando a democracia em uma sociedade vigiada), [40] fala sobre como percebeu que, para nossa era, a privacidade não é mais um valor tão elevado. Ele, como bom aluno de Isaiah Berlin, deparou-se com o fenômeno cada vez maior de as pessoas renunciarem à sua privacidade no mundo digital, pois, nas suas palavras, as pessoas estão dispostas a ceder seus dados na Internet em troca de um desconto no mercado. Ele conclui na sua obra que a privacidade é um conceito vago e difícil de defender na era digital. Em uma recente entrevista à BBC, ele assim define seus achados sobre a privacidade na era digital:

Sou um filósofo político. Comecei na posição de defender a privacidade, ia escrever um livro em defesa da privacidade. O projeto começou com um diálogo com meus alunos, após o caso Edward Snowden, quando ele revelou que a Agência de Segurança Nacional dos EUA realizava espionagem em massa de cidadãos americanos. Eu dizia aos meus alunos: “Isso é horrível, né?”. Mas eles não viam dessa forma. Então pensei: tenho que escrever um livro para explicar por que isso é importante. Porém, quanto mais eu olhava para as pesquisas disponíveis, mais me dava conta de que isso era impossível.

Não há como salvar a privacidade. Por isso fui tentar entender como a democracia pode sobreviver sem ela. E depois olhei um pouco mais além e percebi que a democracia nunca precisou da privacidade.

E isso ficou claro para mim em dois aspectos. Por um lado, como filósofo, estudei a noção de privacidade: podemos sequer defini-la e defendê-la? E concluí que não, graças sobretudo ao filósofo britânico Isaiah Berlin, que me ajudou muito a entender que não se pode definir a privacidade, ela é indefinível.

(...) O direito à privacidade se articula com frequência como o direito a não ser julgado pelos olhos dos outros, de ser livre de sua coerção. Mas, quando você caminha sozinho, ainda carrega consigo a memória desses julgamentos. Então, o que acabei determinando é que a privacidade depende muito de nós mesmos, do indivíduo, se você sente ou não o julgamento de outras pessoas. Por isso, algo objetivo se torna subjetivo, varia. E pensando em termos da era digital, nos anunciantes, que nos seguem online, a preocupação é que vão nos manipular. Bem, algumas pessoas vão resistir a essa manipulação muito facilmente, e outras não.

E onde fica a fronteira entre os esforços extremos para nos manipular e aqueles que são mais modestos? Parece impossível dizer. Se você é manipulado ou não, tem pouco a ver com os esforços de manipulação e mais a ver com você mesmo.

Isaiah Berlin chamava isso de área de não interferência. E quem permite essa interferência? Sobretudo, eu mesmo. O que me leva a outro ponto: uma das coisas com que me deparei no livro é que a privacidade é um valor muito estranho porque as pessoas parecem saber o que é, parecem respeitá-lo, mas seu comportamento é totalmente contrário. O que me faz chegar à conclusão de que não acredito que as pessoas se importem muito com a privacidade, para nada. O que é interessante nesta era digital é que nossos espiões não precisam se esforçar muito para descobrir sobre nós. Estamos dando tudo a eles. Vivemos nossas vidas como um livro aberto. [41]

É uma certeza para DeBrabander que, ao aceitar o marketing personalizado, promoções, descontos ou cupons, há o perdão individual das escapadas de privacidade que essas empresas farão com meus dados. Mas como fica a autonomia, já que o próprio Stuart Mills, um teórico que influenciou muito Rawls e sua teoria da justiça, defendia que a privacidade era essencial para o exercício das liberdades?

DeBrabander reconhece que, ironicamente, em vez de a privacidade ser uma das bases da democracia, ela é na verdade o seu resultado. A principal pergunta que o autor faz no seu livro é: a liberdade de pensamento é um produto da privacidade?

O autor menciona que, embora os Estados Unidos, como exemplo, tenham se formado enquanto nação com uma noção forte de privacidade (religiosa, a qual teria trazido outras privacidades), [42] a nossa cultura neste início do século XXI teria se tornado confessional, “onde as pessoas instintivamente compartilham os comentários, as imagens e as opiniões mais íntimos, às vezes embaraçosos, ou até mesmo ofensivos. Essa é praticamente a norma, e é facilitada – e incentivada – pela tecnologia digital, para a qual o compartilhamento público é a ação padrão”. [43]

Ele sustenta que, ao participar da economia digital, os detentores dos algoritmos exigem uma exposição maciça de muitos dados e de forma contínua:

Ou seus dados são simplesmente colhidos por entidades corporativas e governamentais, ansiosas para aprender cada nota de informações sobre você; elas estão ocupadas inventando maneiras engenhosas de extrair esses dados e inferir detalhes-chave sobre sua vida – que elas então usam de maneiras que mal podemos entender. Há uma boa razão para se preocupar com aqueles que coletam nossos dados. Há razões para se preocupar com o que eles podem fazer com tudo isso. Muitos desses agentes são imensamente poderosos. Eles incluem algumas das maiores corporações do mundo, e alguns dos maiores governos. Suas intenções para essa vigilância são muitas vezes preocupantes, se não totalmente sinistras. No entanto, é uma característica marcante da economia digital que nós, sujeitos de um ataque maciço de vigilância, também somos agentes centrais da referida vigilância. Ou seja: nós alegremente permitimos isso. [44]

Outras três obras, produzidas, coincidentemente ou não, por jovens dissidentes dessa indústria dos algoritmos, contam como eles são construídos com foco no vício e com a consequente outorga ao livre acesso a todas as suas informações, em troca de postar fotos fofas em uma rede e se sentir conectado e amado, num círculo de amigos que cada vez mais migra para o virtual.

Irresistível é o adjetivo que Adam Alter [45] atribui aos algoritmos e às suas plataformas, sejam de comércio, sejam de buscas ou redes sociais. Esse professor adjunto da Escola de Marketing e Psicologia da Universidade de Nova York explica, com teorias de análise do vício comportamental, como as redes são moldadas para nos viciar. Ele nos alerta sobre as experiências cada vez mais viciantes da tecnologia, que por si só não é boa nem ruim, até o momento do controle, por parte de corporações, que enriquecem com isso. O vício comportamental que essas corporações insuflam – conforme Alter – tem seis componentes principais:

1) metas atrativas que estejam só um pouco além do alcance; 2) feedback positivo irresistível e imprevisível; 3) uma sensação de progresso e melhoria que aumenta lentamente; 4) tarefas que se tornam pouco a pouco mais difíceis com o tempo; 5) tensões não resolvidas que exigem solução; e 6) ligações sociais fortes. [46]

Adam Alter se surpreende com como o vício em tecnologia é aceito, ao contrário de outros vícios, sendo que ele pode inviabilizar bem mais uma vida que o próprio uso de drogas ou álcool. Ele lembra que, ao contrário desses vícios, para alguém produtivo, é impossível ficar – por exemplo – sem e-mail ou sem celular. Isso é impensável numa sociedade moderna. Como então se desintoxicar?

Esses empreendedores admitem que as ferramentas que promovem – projetadas para serem irresistíveis – vão capturar usuários de maneira indiscriminada. Não existe uma linha nítida separando viciados do restante de nós. Estamos todos a um passo – seja um produto, seja uma experiência – de desenvolver nossos próprios vícios. [47]

Cathy O’Neil escreve um livro com o sugestivo nome de Algoritmos de destruição em massa. [48] Nessa obra, ela lembra que os algoritmos tinham muitos atributos que deveriam tornar a vida mais fácil e justa para as pessoas. Mas o que efetivamente acontece na maioria das vezes é que tais modelos matemáticos acabam por perpetuar preconceitos, equívocos e vieses humanos:

Como deuses, esses modelos matemáticos eram opacos, seus mecanismos invisíveis a todos, exceto os altos sacerdotes de seus domínios: os matemáticos e cientistas da computação. Suas decisões, mesmo quando erradas ou danosas, estavam para além de qualquer contestação. E elas tendiam a punir os pobres e oprimidos da sociedade enquanto enriqueciam ainda mais os ricos. [49]

Seria esta a era de uma nova barbárie em termos de direitos fundamentais? Sem dúvida, responderiam Marie David e Cédric Sauviat, militantes na área de inteligência artificial. Juntos lançaram o livro Intelligence artificielle: la nouvelle barbarie, [50] em que denunciam os mesmos pontos: posição de monopólio das economias de plataforma, impacto sobre o emprego, com a criação da figura que chamam “os novos servos do século XXI”, e várias outras ilegalidades dos algoritmos a impactar de forma muito negativa a vida das pessoas e a economia de bem-estar da Europa, recorte que realizam. Eles situam esse impacto muito profundo também no aspecto da justiça e da política, pois “a política repousa sobre a possibilidade de se fazer coexistir as tensões antagônicas que atravessam o corpo social, dentro de um equilíbrio por vezes instável. A utilização crescente da inteligência artificial dentro dos domínios, em realidade, faz fluir o conflito”. [51]

Marie David e Cédric Sauviat defendem como remédio o estabelecimento de novas ágoras de debate e de convívio social direto, e a criação não de algoritmos neutros, mas de algoritmos benéficos, pois a neutralidade levou ao caos em termos de direitos civis. Eles defendem a implantação de uma ética dos algoritmos, consubstanciada nos Princípios de Asilomar, [52] baseados em segurança, transparência (de falha e judicial), responsabilidade, valores humanos, controle humano, benefícios compartilhados e respeito às liberdades humanas.

Todos os textos mencionados acima denunciam, como Shoshana Zuboff e DeBrabander, que a indústria molda a vontade dos seus usuários, a ponto de a sua persona digital ser uma persona manipulada. E, pelo próprio mecanismo de autorrecompensa psicológica que há inserto nos algoritmos (likes, ofertas tentadoras do produto que você deseja, etc.), as pessoas se deixam seduzir e entregam todos os dados que, em outras épocas, seriam de uma esfera considerada muito íntima.

Afinal, a privacidade é muito importante para a manutenção da democracia. Para DeBrabander, a privacidade ainda é o último reduto da democracia:

Devemos fazer o que pudermos para ajudar os cidadãos a defender a privacidade, e apreciá-la, porque esse é o último reduto da liberdade. A privacidade é necessária, argumentam seus defensores, para produzir cidadãos legítimos e autodeterminantes. Quando não temos privacidade e tudo se sabe sobre nós, podemos ser manipulados por espiões – a tal ponto, talvez, que estamos finalmente reduzidos a autômatos que podem ser facilmente intimidados, coagidos e dirigidos por agentes poderosos. Regimes totalitários do século XX se engajaram em tais esforços e produziram cidadãos paranoicos que não eram mais reconhecíveis como humanos, alertaram os teóricos políticos – cidadãos que cumpririam ou realizariam atrocidades. Democracia – liberdade – é impensável sem privacidade. [53]

Essas são as perguntas que ele traz e que aqui analisamos com a teoria da justiça de Rawls. A cultura confessional e o pouco cuidado que o cidadão comum confere a seus dados e sua privacidade (embora DeBrabander esteja correto em referir que o conceito de privacidade é um pouco confuso ao longo da história da teoria política desde o Iluminismo) não são obstáculos para que a liberdade política seja reforçada. Os vários exemplos acima sintetizam com clareza a imensa ruptura do pacto social que as mídias sociais trouxeram. Eles provêm de diversas fontes e, embora à primeira vista não tenham muita sintonia, identificam estágios de degenerescência provável, real, da coesão social e da falta de empatia que hoje cultivamos.

Como salvaguardar as liberdades democráticas diante dos tempos atuais é o que uma releitura dos conceitos de John Rawls enseja.

3 A validade da teoria da justiça de Rawls para a democracia atual

3.1 Por que Rawls?

Se alguma vez as democracias estiveram em risco e as liberdades foram ameaçadas, nunca o foram com mais eficácia e dissimulação do que na era digital. Desinformação em massa, roubo de dados por meio de manipulação de algoritmos, mesmo manipulação de eleições, com microdirecionamento de publicidade e regulações fracas e opacas de plataformas e redes sociais. Todos esses problemas enfraquecem mais e mais o pacto social e as democracias constitucionais, que, em razão da polarização (a real e a artificial do algoritmo usado política ou comercialmente), retiram o atributo de diálogo das relações micropolíticas que compõem o todo do contrato social de um Estado.

Não estamos diante do que Rawls qualificava de sociedades justas e estáveis de cidadãos profundamente divididos por razões morais, filosóficas e religiosas. Estamos simplesmente divididos por razões de marketing e da forma mais artificial, pois as interações das diferenças, que, em um passado, foram reais e autênticas, hoje carecem desses atributos. [54] Em um discurso artificial, nenhum cimento há de ser igualmente real.

Mas é justamente com os mecanismos do pacto rawlsiano que há soluções.

3.2 A paz perpétua de Kant e o direito dos povos de Rawls

Rawls estava em seu primeiro ano em Princeton quando Hitler invadiu a Polônia. Por numerosas vezes ao longo de entrevistas concedidas, referiu que a experiência da guerra e do serviço militar prestado no Pacífico marcou não somente a si mesmo, mas também profundamente a sua teoria da justiça. [55] Talvez por isso, ao escolher a filosofia por ofício e ter um interesse acentuado por como se forma o pacto social, tenha tido uma influência acentuada de Kant, a ponto de identificarmos nos seus postulados ou pilares da justiça uma tentativa de colocar em prática os imperativos categóricos kantianos de justiça, formados por e para um ser humano racional, igual e livre.

Ao contrário de Kant, que vê a existência de uma lei moral independente dos homens, Rawls cada vez mais se afasta dessas concepções teóricas, para que sua tese tenha um valor pragmático e seja factível enquanto teoria de uma justiça para Estados em regime de democracia constitucional. Quando, em Uma teoria da justiça, Rawls apela para a racionalidade dos que estão na posição original, utiliza-se de uma noção muito kantiana, que ele desenvolve com um conceito rawlsiano de personalidade moral. Ao estabelecer as bases da igualdade [56] em sua teoria, Rawls tem em mente todas as qualidades racionais e humanas sobre as quais Kant discorreu ao longo de sua obra.

Rawls, ao delinear seu pacto, permeia conceitos de filosofia do direito da obra de Kant: “Qualquer ação é conforme o direito quando, por meio dela ou segundo ela ou segundo sua máxima, a liberdade do arbítrio de cada um puder coexistir com a liberdade de todos os outros, segundo uma lei universal”. [57] Não por acaso, Rawls coloca o subtítulo “A lei moral como a lei de liberdade” [58] em seu capítulo dedicado aos seminários kantianos na sua obra História da filosofia moral, ao analisar a doutrina de Kant como uma forma de construtivismo moral. Se a racionalidade humana em Kant é um atributo universal, dela há de advir uma lei igualmente universal e racional. É isso que Rawls desenvolve. Essa é sua crença primária que se constitui no fio condutor de sua obra.

Mas o que seria para Rawls essa lei universal? Onde se constroem na teoria rawlsiana os conceitos de cooperação social e o dever natural de auxílio mútuo que são imperativos kantianos? Para Rawls, no pacto social, damos um pouco de nossa liberdade ao Estado. A contraprestação do Estado somente pode ser a pacificação pelo contrato social. Ele elabora esse conceito muito bem ao longo de seus livros, até culminar na sua obra Direito dos povos. Esse texto, pronunciado como conferência em 12 de fevereiro de 1993 [59] e depois apresentado como livro autônomo em 1999 (uma elaboração mais sofisticada do capítulo VI do livro Liberalismo político, como ele mesmo refere), traz um aprofundamento desse conceito paradigma. O próprio Rawls esclarece no prefácio da obra que o termo People é bem sugestivo e se refere a um direito dos povos em si, e não um direito das nações ou dos Estados a que se filiam os cidadãos. Nele, Rawls refaz com suas palavras a utopia de Kant de uma paz perpétua. Em Rumo à paz perpétua, Kant afirma que:

Os povos, como Estados que são, podem considerar-se como indivíduos em estado de natureza – isto é, independentes de toda lei externa –, cuja convivência, nesse estado natural, constitui já grave prejuízo para todos e para cada um. Todo Estado pode e deve afirmar a sua própria estabilidade, sugerindo aos demais que formem com ele uma espécie de constituição, semelhante à constituição política, que garanta o direito de cada um. Isso seria uma sociedade de nações, a qual, contudo, não deverá ser um Estado de nações. Nisso tudo se notaria uma contradição, porque todo Estado implica a relação de um superior – o que legisla – para com um inferior – o que obedece, o povo – muitos povos, reunidos em um Estado, teriam que ser um só povo, o que contradiz essa hipótese. Com efeito, devemos considerar aqui o direito dos povos, uns em relação a outros precisamente, enquanto constituem diferentes Estados, não devendo fundir-se num só. [60]

Em Direito dos povos, Rawls reafirma quase os mesmos preceitos, ao dar validade ao direito internacional público e a organismos internacionais. Há uma exaltação de instrumentos internacionais que auxiliam os povos bem ordenados para que tenham cooperação política, econômica e social.

Nessa obra, John Rawls já atenta para problemas contemporâneos como “a guerra injusta, a imigração e as armas nucleares e outras armas de destruição em massa”. [61] Em uma perspectiva de povos essencialmente justos dentro de sua concepção liberal, para ele,

A ideia básica é seguir o plano de Kant tal como esboçado por ele em A paz perpétua (1795) e a sua ideia de foedus pacificum. Interpreto-a no sentido de que devemos começar com a ideia de contrato social, pertencente à concepção política liberal de regime constitucionalmente democrático, e depois estendê-la, introduzindo uma segunda posição original, no segundo nível, por assim dizer, no qual os representantes de povos liberais fazem um acordo com outros povos liberais. (...) Cada um desses acordos é compreendido como hipotético e não histórico, e neles entram povos iguais simetricamente situados, na posição original, por detrás de um adequado véu de ignorância. Portanto, o empreendimento entre povos é justo. Tudo isso também está em concordância com a ideia de Kant de que um regime constitucional deve estabelecer um direito dos povos eficaz para concretizar plenamente a liberdade dos seus cidadãos. [62]

Rawls tem uma clara preferência pelos acordos internacionais, pois traduzem um consenso maior. A ideia de pluralismo razoável que ele tanto defende pode ser replicada também entre povos e se traduz por uma democracia constitucional que leva eficazmente aos seus cidadãos um sentido adequado de justiça. Existe um pluralismo possível entre povos que Rawls exalta e que – implementado – se revela um forte cimento (e remédio) para as democracias, tanto internamente quanto em sua convivência internacional. Nesse sentido, sua teoria do pluralismo político adquire uma nova extensão.

3.3 A tolerância como atributo da liberdade

A tolerância como conceito central rawlsiano também é uma forma de superar os modernos problemas nas liberdades. Para Rawls, a tolerância tem uma conceituação que se confunde com as pessoas razoáveis que ele elege para sua posição inicial. Isso forma o pluralismo razoável, resumido aqui por Samuel Freeman, seu principal compilador e biógrafo:

Es la diversidad de doctrinas integrales razonables afirmadas por personas razonables en sociedades liberales, incluso cuando están bien ordenadas. Es característica permanente de una sociedad democrática debido a las cargas del juicio. Como resultado, incluso personas plenamente razonables y racionales frecuentemente pueden no estar de acuerdo sobre principios filosóficos, morales y religiosos. [63]

Já para o filósofo Norberto Bobbio, é a tolerância um conceito pragmático em si:

Começo pela razão mais vil, meramente prática ou de prudência política, e que, não obstante, foi a que terminou por fazer admitir, no terreno da prática política, o respeito pelas diversas crenças religiosas, inclusive por parte dos que, em princípio, deveriam ser intolerantes (porque convencidos de possuir a verdade e por considerarem errados todos os que pensam diferente): a tolerância como mal menor, ou como mal necessário. Entendida desse modo, a tolerância não implica pura e simplesmente a opinião (a ser eventualmente revista em cada oportunidade concreta, de acordo com as circunstâncias e as situações) de que a verdade tem tudo a ganhar quando suporta o erro alheio, já que a perseguição, como a experiência histórica o demonstrou com frequência, ao invés de esmagá-lo, reforça-o. (...)

Se eu sou mais forte, aceitar o erro alheio pode ser um ato de astúcia (...). Se sou o mais fraco, suportar o erro alheio é um estado de necessidade (...). Se somos iguais, entra em jogo o princípio da reciprocidade, sobre o qual se fundam todas as transações, todos os compromissos, todos os acordos, que estão na base de qualquer convivência pacífica (toda convivência se baseia ou sobre o compromisso, ou sobre a imposição): a tolerância, nesse caso, é o efeito de uma troca (...). É bastante evidente que, se me atribui o direito de perseguir os outros, atribua a eles o direito de me perseguirem. Hoje é você, amanhã sou eu. Em todos os casos, a tolerância é, evidentemente, conscientemente, utilitaristamente, o resultado de um cálculo e, como tal, nada tem a ver com o problema da verdade. [64]

Para Bobbio assim como para Rawls, a tolerância é um método racional para estabilizar o pacto social, em substituição à violência e à imposição de ideias. Para os dois filósofos, é um signo de liberdade e democracia a substituição das técnicas de força pelas de persuasão. Resume Bobbio que:

O núcleo da ideia de tolerância é o reconhecimento do igual direito de conviver, que é reconhecido a doutrinas opostas, bem como o reconhecimento, por parte de quem se considere depositário da verdade, do direito ao erro, pelo menos do direito ao erro de boa-fé. A exigência da tolerância nasce no momento em que se toma consciência da irredutibilidade das opiniões e da necessidade de encontrar um modus vivendi (uma regra puramente formal, uma regra do jogo), que permita que todas as opiniões se expressem. [65]

Assim como na ideia de consenso de Rawls, há a mescla de ideias muitas vezes inconciliáveis, mas que se sobrepõem em busca da pacificação. Em Bobbio, há a ideia da tolerância como método de persuasão, em que:

Há uma atitude ativa de confiança na razão e na razoabilidade do outro, uma concepção do homem como capaz de seguir não só os seus próprios interesses, mas também de considerar seu próprio interesse à luz do interesse dos outros, bem como a recusa consciente da violência como único meio de obter o triunfo das próprias ideias. [66]

Rawls foi bem mais enfático ao prever a tolerância como uma necessidade em O direito dos povos, teorizando:

Dado o fato do pluralismo, os cidadãos de uma sociedade liberal afirmam uma família de concepções políticas razoáveis de justiça e divergirão quanto a qual concepção é mais razoável. Eles concordam que as sociedades não liberais deixam de tratar pessoas com razão, intelecto e sentimentos morais como verdadeiramente iguais e livres, e, portanto, dizem eles, as sociedades não liberais estão sempre sujeitas a uma forma de sanção – política, econômica ou mesmo militar – dependendo do caso. (...)

Tolerância de povos decentes. Como vimos, não se pode exigir razoavelmente que todos os povos sejam liberais. Isso decorre, na verdade, do princípio de tolerância de um direito dos povos liberal e da sua ideia de razão pública tal como elaborada a partir de uma família de concepções liberais. Que concepções de tolerância de outras sociedades o direito dos povos expressa? E como ela está ligada ao liberalismo político? Se perguntássemos se as sociedades liberais são, moralmente falando, melhores que as sociedades hierárquicas decentes e outras sociedades decentes, e, portanto, se o mundo seria um lugar melhor se exigíssemos que todas as sociedades fossem liberais, aqueles que sustentam uma visão liberal poderiam achar que a resposta é sim. Mas essa resposta negligencia a grande importância de manter o respeito mútuo entre os povos e de cada povo manter o seu respeito próprio, não incorrendo no desprezo pelo outro, por um lado, nem na amargura e no ressentimento, por outro (7.3). Essas relações não são uma questão da estrutura interna básica (liberal e decente) de cada povo visto separadamente. Antes, concernem a relações de respeito mútuo entre os povos e constituem, portanto, uma parte essencial da estrutura básica e do clima político da sociedade dos povos. Por essas razões, o direito dos povos reconhece os povos decentes como membros dessa sociedade maior. Com a confiança nos ideais do pensamento democrático liberal e constitucional, ele respeita os povos decentes, permitindo que encontrem a sua própria maneira de honrar esses ideais.[67]

Mais adiante, Rawls conclui ao dizer que tal pluralismo tolerante nas nações é a base da coesão social, interna e externamente:

As doutrinas abrangentes desempenham apenas um papel restrito na política democrática liberal. Questões de elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica devem ser solucionadas por uma concepção pública de justiça e pela razão pública, embora todos os cidadãos também atentem para as suas doutrinas abrangentes. Dado o pluralismo das sociedades democráticas liberais – um pluralismo que é mais bem percebido como resultado do exercício da razão humana em instituições livres –, afirmar tal concepção política como base da justificativa pública, juntamente com as instituições políticas básicas que a concretizam, é a base mais razoável e profunda de que dispomos para a unidade social. [68]

Assim, ao legislar sobre problemas das democracias por meio de tratados, os países obtêm um consenso mais duradouro, mais eficaz, pois objeto de várias pluralidades constitucionais que, por meio de suas instituições livres, legislam de modo transnacional. Essa é uma solução óbvia para o ataque às liberdades por meio das mídias e das plataformas digitais, pois, sendo os ataques também transnacionais (roubo de dados de uma determinada população específica para dirigir conteúdo e influenciar compras e eleições, por exemplo), consegue-se uma eficácia maior na coibição de tal comportamento.

3.4 Cooperação como objetivo racional no pacto político

A cooperação é, para Rawls, um atributo imanente ao pacto, afinal, pessoas que cooperam entre si são as que formam o contrato. A teoria rawlsiana tem essa conotação de nascimento pela cooperação e, para ele, a filosofia política liberal tem na existência da teoria do contrato social a sua maior contribuição.

Tanto para Hobbes, que defende que, na falta de cooperação para um pacto, não existiriam construções confortáveis, artes, literaturas, e a vida do homem seria uma viagem solitária, miserável, sórdida, brutal e curta; quanto para Locke, que propõe que a natureza livre, igual e independente dos homens confere ao pacto abdicar um pouco dessa liberdade, sempre há uma parcela de liberdades abocanhada pelo contrato social. Essa é uma tradição acolhida por Rawls e da qual ele faz nascer seus princípios de justiça.

Tanto é assim que Uma teoria da justiça começa com o compromisso de “apresentar uma concepção de justiça que generalize e leve a um nível mais alto de abstração a conhecida teoria do contrato social conforme encontrada em, digamos, Locke, Rousseau e Kant”. [69] Rainer Forst, em seu livro Contextos da justiça, lembra que a justiça, para Rawls, é um valor da comunidade:

Rawls distingue seu ideal da sociedade bem ordenada, como união social de uniões sociais, de uma simples sociedade privada. Nesta – Rawls refere-se, aqui, ao conceito de sociedade civil de Hegel – os cidadãos não têm fins comuns e julgam as regulamentações sociais somente sob o ponto de vista de suas vantagens pessoais. Em uma sociedade bem ordenada, pelo contrário, mostra-se a natureza social dos homens na existência de fins comuns. Com isso, segundo Rawls, não se quer expressar o “truísmo de que a vida social é uma condição para o desenvolvimento da capacidade de falar e pensar e para tomar parte nas atividades comuns da cultura e da sociedade” (1971, p. 522), mais sim a ideia – emprestada de Humboldt – de uma multiplicidade de comunidades no interior de uma sociedade que tem como fim comum a cooperação social no quadro de uma concepção da justiça publicamente compartilhada. “A realização pública da justiça é um valor da comunidade” (ibidem, p. 529). Com isso, a cooperação social não deve ser entendida de modo instrumental, mas assim como o sistema de complementaridade e realização mútuas, semelhante a uma orquestra na qual as capacidades individuais produzem uma obra comum. Visto que isso ocorre no âmbito da justiça, esta é um elemento como constitutivo dessa realização comunitária. [70]

Então, a cooperação é também uma solução apresentada por Rawls para os problemas das liberdades. E ela pode se dar tanto em um nível mais internacional de nações como em um nível mais próximo, dentro do pluralismo a ser respeitado no interior das comunidades.

Peter Häberle tem um significativo estudo em constitucionalismo cooperativo que vai ao encontro do que Rawls expressou em seu Direito dos povos. O primeiro autor defende um direito comum de cooperação e a consequente integração entre direito constitucional e direito internacional:

A cooperação dos Estados constitucionais nas organizações internacionais, o desenvolvimento conjunto de obras amplas de codificação que regulam forma e procedimento de sua cooperação e a extensão de sua jurisdição internacional, de cujo material jurídico fazem parte, entre outros, “os princípios jurídicos gerais reconhecidos pelos Estados civilizados”, formam o fundamento de uma influência recíproca da ordem jurídica nacional e internacional: estruturas jurídicas e ideias de justiça dos diversos Estados da comunidade jurídica internacional influem no processo de formação do direito internacional; princípios e regras isoladas do direito internacional colocam, por sua vez, medidas para o desenvolvimento jurídico interno do Estado. O direito comparado é, aqui, o meio típico. O direito do estrangeiro, tanto no direito internacional quanto no interno, e o desenvolvimento da proteção dos direitos humanos servem de exemplo. Ao lado dessa penetração das diversas ordens jurídicas em sentido substancial, o elemento pessoal, a “questão dos partícipes”, tem importância decisiva. A composição internacional dos grêmios competentes para a redação dos projetos de codificação, declaração e resolução bem como do IGH garante que se considerem as diversas concepções jurídicas também em sentido institucional. A forma intensificada de cooperação internacional quando da criação e da interpretação jurídicas na Comunidade Europeia indica a direção de um possível avanço continuado também a nível global. A “sociedade aberta dos intérpretes constitucionais” torna-se internacional. [71]

Mas essa cooperação mútua, que encontra seu ápice na teoria rawlsiana, não é pacífica. Embora haja um consenso em como ela pode ser feita, não há um consenso em quem realmente integra esse pacto e o que cada um pode trazer de contribuição dependendo de sua condição. Por várias vezes, Rawls enfrentou o dilema do contrato e do Estado frente a uma situação não de ganho, mas que seja eticamente recomendável para o próprio bem comum. Isso estaria na necessária igualdade que Rawls reconhece nos homens e que Nussbaum nos lembra:

A tese da igualdade (em poderes e capacidades) supostamente nos mostra algo verdadeiro importante sobre os seres humanos, o que nos conduziria à crítica das hierarquias existentes. Mas também atua de modo crucial dentro de cada teoria do contrato social, explicando como princípios políticos surgem do jeito que são. A igualdade aproximada entre as partes é essencial para entender como elas estabelecem contrato umas com as outras, porque elas devem, antes de mais nada, realizar um contrato, e o que esperam ganhar do contrato. (...) as partes do contrato social são consideradas independentes, não estão sob a dominação ou assimetricamente dependentes de qualquer outro indivíduo. Em algumas versões, essa premissa inclui a ideia de que elas estão interessadas somente em promover suas próprias concepções de felicidade, não as dos outros. Em outras, elas assumem ter interesses benevolentes, ou mesmo deveres naturais de benevolência. Mas o ponto central é que cada qual é imaginada no que diz respeito à independência, e cada qual é uma fonte separada de reivindicações e projetos.

Vantagem mútua como propósito da cooperação social, as partes são concebidas cooperando socialmente umas com as outras a fim de assegurar o benefício mútuo, algo que não alcançariam de outro modo. Rawls evita qualquer pressuposição de benevolência ou altruísmo com respeito às partes do contrato social. [72]

É notório ver então que essa cooperação é um elemento agregador, estando presente de forma consciente ou em potencialidade nas partes. O fato de ser humano já valida o acordo. O certo é que, qualquer que seja o pacto social, ele resulta em um ganho civilizatório ao menos.

A isso chamamos também fraternidade. Ela é parte da revolução que nos trouxe os Estados nacionais. Se por ela e para que os homens sejam livres e iguais renunciamos a um soberano e instituímos democracias constitucionais, como manter acesa a sua chama? Como revigorar os mecanismos de cooperação que originaram o pacto em nossas democracias? Justamente pelo respeito aos direitos humanos, que é a condição primeira para a cooperação social e a corporificação da fraternidade e da igualdades revolucionárias:

La centralidad de la cooperación social para la explicación de la justicia de Rawls se manifiesta una vez más en su definición de los derechos humanos en términos de las condiciones que son necesarias para participar en la cooperación social de cualquier tipo. (...)

Debido al papel especial que Rawls asigna a los derechos humanos al permitir la cooperación social dentro de la ley de los pueblos, no incluye entre ellos todos los derechos morales de las personas como tales. Los pueblos e los gobiernos que ofrecen sólo derechos humanos pero no todos los derechos liberales alcanzan un umbral de decencia, non son justos desde las concepciones liberales. [73]

Então, esses problemas de disfunção dos algoritmos em nossas sociedades revelam que se está, no pensamento de Rawls, em um umbral de direitos, mesmo dentro de governos constitucionais e democráticos. Resolver tais dilemas constitui, acima de tudo, uma questão de direitos humanos. [74] Sendo os direitos humanos a matéria mais codificada em direito internacional, ele novamente se volta ao direito dos povos e sua regulação transnacional como uma solução, principalmente no que tange ao primeiro pensamento de Rawls, na concepção do funcionamento da posição original com racionalidade, igualdade e educação para a democracia depois de retirado o “véu da ignorância” que permitia ganhos tão extensos ao pacto.

3.5 Racionalidade, igualdade e educação para a democracia

Jean Jacques Rousseau, ao aderir a um concurso da academia de Dijon (mais por brincadeira, como ele conta no início da referida obra), concurso que versava sobre as desigualdades entre os homens, acabou escrevendo, em 1753, seu célebre Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, [75] e com ele foi fundador de uma das correntes principais de pensamento em filosofia política que temos atualmente: o igualitarismo moral. Essa obra Rousseau dedicou à República de Genebra, na época já um ícone de igualitarismo entre as modernas repúblicas.

Nesse livro, Rousseau assenta a ideia de desigualdade vinda de duas grandes vertentes de experiência humana: a instituição da propriedade privada e o próprio progresso da civilização, que deixa assimétricas sociedades com tecnologias diferentes (o que ainda hoje observamos). Pensamentos que serão aprofundados por autores que influenciaram Rawls, como Marx e Stuart Mills. Nessa obra seminal rousseauniana encontra-se a célebre frase: “o primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer isso é meu, e encontrou gente bastante simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”. [76] Essa frase resumirá alguns séculos de estudos em filosofia política que Rawls tentará enviar a uma modernidade: como, dentro das diferenças, cria-se um sistema de justiça e um sistema equânime de justiça, e por que, ao criá-lo, eu fundamento com solidez uma democracia constitucional?

Liberdade, igualdade e educação para a democracia nunca foram conceitos díspares, basta lembrar o conceito grego de Paideia:

Paideia, a palavra que serve de título a esta obra, não é apenas um nome simbólico; é a única designação exata do tema histórico nela estudado. Esse tema é, de fato, difícil de definir: como outros conceitos de grande amplitude (por exemplo, os de filosofia ou cultura), resiste a deixar-se encerrar numa fórmula abstrata. O seu conteúdo e significado só se revelam plenamente quando lemos a sua história e lhes seguimos o esforço para conseguirem plasmar-se na realidade. Ao empregar um termo grego para exprimir uma coisa grega, quero dar a entender que essa coisa se contempla não com os olhos do homem moderno, mas sim com os do homem grego. Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os gregos entendiam por Paideia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez. E, no entanto, a verdadeira essência da aplicação ao estudo e das atividades do estudioso baseia-se na unidade originária de todos aqueles aspectos – unidade vincada na palavra grega –, e não na diversidade sublinhada e consumada pelas locuções modernas. Os antigos estavam convencidos de que a educação e a cultura não constituem uma arte formal ou uma teoria abstrata, distintas da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação; para eles, tais valores concretizavam-se na literatura, que é a expressão real de toda cultura superior. E é desse modo que devemos interpretar a definição do homem culto apresentada por Frínico (cf. ϕιλο´λογος, p. 483 Rutherford): Φιλο´´λογος ο¸ ϕιλωªν λο´ γους κα`ι σπουδα´ ζων περ`ι παιδε´ιαν. [77]

Embora a ideia de educação para a democracia não seja profunda em Rawls, ela é um consectário lógico de várias de suas conclusões de como nascem os postulados da justiça. Afinal, Rawls tem na racionalidade humana o elemento essencial para que o pacto inicial logre êxito e se perfectibilize em sua justiça distributiva. Na posição original há somente seres racionais e empenhados na ideia dos ganhos que terão com o contrato, que entre si ajustam sob o véu da ignorância, véu esse que garantirá somente as melhores soluções a serem adotadas na constituição desse pacto. Ao contrário de Hobbes, Rawls não coloca os homens de seu pacto em estado de natureza, mas num estado em que sabem (e festejam) as conquistas humanas (não sabem originalmente somente o seu lugar nelas). Essas conquistas são as advindas da racionalidade, e, principalmente, de uma racionalidade perpetuada pela educação.

Dois outros filósofos, contemporâneos de Rawls, propuseram abordagens educacionais da democracia que podem ser aproveitadas aqui: John Dewey e Jürgen Habermas, como cita o educador Guilherme Perez Cabral. O primeiro propõe uma teoria do pensar reflexivo, em que a democracia realiza o projeto emancipatório do coletivo humano. Já o segundo nos fala da emancipação humana pela educação para a democracia. Ambas as teorias têm em comum a concepção de que a experiência humana da democracia nasce de uma experiência comunicativa e em sociedade:

A educação para a democracia, por sua vez, aparece como processo de desenvolvimento cognitivo moral em que a individualidade, constituindo-se socialmente, pode-se afirmar autonomamente como eu na participação peculiar e imprescindível nas experiências sociais em seus processos discursivos e hermenêuticos de formação da opinião e da vontade e de tomada de decisões coletivas. É, enfim, educação para a emancipação, na democracia apreendida como lugar em que se vislumbra a extensão da aprendizagem, do crescimento, a todos os membros da sociedade. (...) Trata-se, de qualquer forma, de experiências – a educação e a democracia – (...) não têm meta, garantias de êxito e são realizadas comunicativamente pelos próprios sujeitos históricos que se educam. Em sua incompletude dinâmica, são potencialmente transformadoras. [78]

Assim, ao se analisar a democracia antiga e a moderna, não há como se dissociar de um conceito de educação para a democracia, pois as pessoas serão razoáveis e encontrarão seu consenso apenas com a educação e o estado de democracia introjetado em seu modo de ser. A Paideia grega é também a Paideia da modernidade, pois, se pesamos o ganho da democracia constitucional – este modo de riqueza que traz o pluralismo pactuado politicamente –, deve-se, enquanto sociedade, preservar e incentivar a educação das crianças que, adultas, irão preservar o pacto político.

Mesmo hodiernamente, ao lembrar o livro de Paulo Freire Educação como prática da liberdade, [79] vislumbra-se que o axioma pedagógico se amalgama à própria ideia de homem livre, e livre em uma democracia:

Não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio. O esforço educativo que desenvolveu o autor e que pretende expor neste ensaio, ainda que tenha validade em outros espaços em outro tempo, foi todo marcado pelas condições especiais da sociedade brasileira. Sociedade intensamente cambiante e dramaticamente contraditória. [80]

Philippe Perrenoud, na obra Escola e cidadania, [81] cujo subtítulo sugestivo é “o papel da escola na formação da democracia”, apresenta esses mesmos desafios que Rawls encontra para a consolidação do pacto democrático: para o primeiro, a educação para a complexidade e para a solidariedade é um fundamento da democracia.

A escola desempenhou um papel fundamental na criação dos Estados democráticos. Em todo o mundo, pode-se observar uma forte correlação entre o nível global de instrução e a forma mais ou menos democrática do sistema político. Simplesmente porque a democracia supõe uma capacidade de compreender os desafios e de exercer um julgamento autônomo, o que não ocorre sem um mínimo de escolarização. Mesmo assim, sejamos prudentes: assim como ética das pessoas, a instrução não garante a democracia política no interior de uma sociedade; nem a liberdade, nem a igualdade, nem a fraternidade decorrem automaticamente de um nível elevado de escolarização; os países do Leste desenvolveram uma escolarização paralelamente ao Gulag, a forma escolar pode ser distorcida em proveito de um pensamento único, refazendo sua ligação com o catolicismo e outras formas de imposição de uma doxa. (...) certamente, uma parte dos eleitores não vota em partidos adversários da democracia, não porque eles sejam fascistas ou trotskistas, mas porque se sentem excluídos do crescimento, cada vez mais pobres – em termos relativos e, às vezes, absolutos – em sociedades cada vez mais ricas, ludibriados por uma classe política que não mantém as promessas a seu respeito. Seria errado pensar que a expansão do voto “de protesto” ou a perda de confiança em toda a classe política não ameaça a democracia. [82]

Logo, percebemos o fosso em que as democracias e as liberdades se encontram. Ao mesmo tempo que se precisa do consenso democrático para viver uma democracia, menospreza-se a atividade partidária ou eleitoral como um mal menor. Não se tem uma cultura de educação para a política, o que seria necessário para uma preservação saudável e uma perpetuação do viver democrático. Talvez a obra que mais tenha analisado esse descompasso entre a importância da política e a displicência com que as sociedades democráticas tratam suas eleições (ou mesmo a irracionalidade dos eleitores, muitas vezes incapazes de individualmente ponderar sobre economia e outros tópicos) seja o livro ainda não traduzido no Brasil El mito del votante racional, de Bryan Caplan, em que o autor descreve esse fenômeno como o paradoxo da democracia:

Concedamos entonces que los votantes son irracionales. ¿Podemos detenernos ahí? Los votantes son personas; si el día de las elecciones se comportan de una forma extremadamente irracional, lo que cabe considerar probable es que esa conducta persista durante el resto del año. ¿O es que las personas degeneran como por arte de magia en una forma de vida intelectualmente inferior ante la mesa electoral para retornar a su estado normal tras haber emitido el voto?

La tesis que mantiene que los hombres son universalmente racionales tiene consistencia interna, al igual que su contraria, la que afirma que son completamente irracionales. ¿Puede adoptarse con coherencia una postura intermedia? Si no es así, la relevancia práctica de la insensatez de los votantes disminuye o desaparece. Si las personas son racionales los lunes e irracionales los jueves, entonces lo mejor será dejar la toma de decisiones para los lunes. Pero si la gente es irracional a tiempo completo, habrá que irse acostumbrando al hecho de que ninguna decisión alcanzará su grado potencial de excelencia. Aplicando el mismo razonamiento, si los individuos son racionales al actuar como consumidores, pero irracionales como votantes, será buena idea confiar más en los mercados y menos en la política. Pero si son irracionales en todos los ámbitos, entonces tendremos que enfriar nuestras expectativas acerca de cualquier forma de organización social humana. Los méritos relativos entre sistemas alternativos serán más o menos los mismos. [83]

Essa irracionalidade, potencializada por uma eleição extremamente polarizada, como as últimas eleições brasileiras em 2018 e americanas em 2020, pela manipulação dos algoritmos e, mesmo, da vontade genuína dos eleitores, contrasta em muito com a racionalidade ideal que Rawls atribui aos votantes de sua posição original. Mas isso não é somente um paradoxo, pois traduz também a beleza da democracia. Ótimas leis e leis justas podem nascer de um caldo também de irracionalidade, pois, como Rawls teorizou, há sistemas de pesos e contrapesos na democracia que acrescentam um ganho ao pacto político. O irracional terá sempre a racionalidade por amiga, a conduzir a um consenso optimizado.

Esse mesmo paradoxo, encontrado em numerosas outras obras que foram mencionadas ao longo desta exposição, aponta o quanto a democracia é frágil diante de uma educação para a democracia também frágil. Assim como os gregos educavam em um cosmo que tornava indissociável ser ateniense, democrata e filósofo, também a modernidade, ao identificar na democracia constitucional um ganho, deveria educar desde a tenra idade para a sua prática.

Ao indicar que “a igualdade que a democracia implica e exige refere-se à possibilidade de alcançar (e manter) o poder político exercido nos órgãos e nos cargos estatais” [84] ou, no mesmo parágrafo, que “esse princípio fundamental é o de assegurar a igualdade de oportunidades para exercer o poder político”, [85] Ernest Wolfgang Böckenförde, respeitado juiz da Corte Constitucional alemã, está citando o constitucionalista mais criticado por sua vinculação política ao nazifascismo, o alemão Carl Schmitt, mais precisamente seu livro Legalität und Legitimität. Não obstante, essa citação poderia ser tranquilamente atribuída a Rawls, tão próximas ambas estão de postulados kantianos. O que distingue ambas as citações é que Rawls pretende uma democracia real, e não seu simulacro, como Carl Schmitt aceitava. Para Rawls, a constituição não vem da boca do Führer (Schmitt), mas da boca de uma nação politicamente constituída e ordenada, plural, cuja justiça se assenta em dois tripés: liberdades e igualdade. A constituição é legislada pelos mecanismos de representação política que contemplam um maior respeito aos direitos humanos e a maior sorte de respeito às gerações futuras. Legislar, para Rawls, não é só um ato político estático, é um ato político reiterado, matizado pelas várias gerações que vão aceitar e continuar o pacto. Assim, tal ensinamento democrático não é apenas uma questão de como se exerce o poder político, mas também de como ensinar as gerações futuras a lidarem com a democracia. A Suíça é citada como um exemplo dessa democracia que se ensina, adotando votação direta e referendo para uma quantidade de questões fundamentais para a sociedade suíça. [86] Talvez a teoria de Rawls fosse um pouco mais assertiva se teorizasse sobre a Suíça, e não sobre o presidencialismo norte-americano.

No entanto, o certo é que esse grande filósofo político legou preceitos basilares para uma boa democracia, para uma sadia democracia pluralista. Com seus ensinamentos, é possível seguir em frente, acreditando que democracias constitucionais são a melhor forma de assegurar as liberdades públicas, esse ganho civilizatório e universal.

Considerações finais

O signo da liberdade em John Rawls mostra o quanto sua teoria depende de que no pacto se garantam liberdades fundamentais. Elas – juntamente com o princípio da diferença e do livre acesso a cargos públicos – constituirão uma pólis autossustentável, democrática e pluralista. Foi objetivo desta pesquisa responder se a teoria da justiça de John Rawls ainda é válida para as democracias atuais, principalmente no que tange às liberdades que o autor apregoa como fundamentais e inalienáveis. Além disso, pretendeu-se analisar se essas liberdades ainda ensejam um acordo democrático válido e pacificador. Nesse contexto, afirmou-se que a obra do autor bem como seu livro Uma teoria da justiça, que ora completa 50 anos de sua primeira edição, mantêm sua absoluta atualidade. Rawls construiu sua teoria para responder à pergunta fundamental de qual concepção de justiça cria o justo em uma sociedade democrática. E seus fundamentos de filosofia liberal distributiva ainda hoje possuem validade.

Com a doutrina do professor mais famoso de Harvard em Filosofia Política, ainda se resolvem problemas cruciais da democracia atual. Exemplo disso são os casos do abuso das liberdades pelo capitalismo de vigilância, em que se poderiam empregar mecanismos já propostos por Rawls, como o respeito aos pluralismos, a tolerância, o overlapping consensus e a própria teoria da diferença rawlsiana, que prevê que as diferenças são validadas em uma sociedade se representam um ganho coletivo maior. Seu último livro, quase um legado e resumo de toda sua obra, de sugestivo título Direito dos povos, lembra o quanto as democracias ganharam ao se agregarem a outras em uma comunidade organizada por entidades representativas de nações.

Portanto, valida-se a hipótese deste trabalho, a de que o signo da liberdade em John Rawls permite uma leitura renovada, com suas consequentes respostas conformes ao ideal de contrato rawlsiano e perfeitamente atuais para o desafio das eleições e das democracias no contexto do capitalismo de vigilância.

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[3] RAWLS, John. História da filosofia moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 323.

[4] Ciclo Tanner de Conferências sobre os Valores Humanos, pronunciado na Universidade de Michigan em 10 de abril de 1981. Disponível em: https://tannerlectures.utah.edu/_documents/a-to-z/r/rawls82.pdf.

[5] MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Lisboa: Edições 70, 2019. p. 39-40.

[6] FREEMAN, Samuel. Rawls. México: Fondo de Cultura Económica, 2016. p. 421.

[7] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 266 e 267.

[9] BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 267.

[10] Ciclo Tanner de conferências de 1981, em que Rawls proferiu a palestra “A liberdade e sua prioridade”.

[11] RAWLS, John. Libertad, igualdad y derecho. Barcelona: Ariel, 1988. p. 23-24.

[12] BERLIN, Isaiah. Estudos sobre a humanidade: uma antologia de ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 272.

[13] RAWLS, John. O liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000. p. 24.

[14] GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2020. p. 231-233.

[15] RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 173-174.

[18] GARGARELLA, Roberto. Rawls post Rawls. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2006. p. 12.

[20] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 92.

[21] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 92-93.

[23] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021. p. 7.

[24] ZUBOFF, Shoshana. Big other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization. Journal of Information Technology, n. 30, p. 75, 2015.

[26] ZUBOFF, Shoshana. Big other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization. Journal of Information Technology, n. 30, p. 79-84, 2015.

[28] O DILEMA das redes sociais. Diretor Jeff Orlowski, 2020. Disponível na Netflix.

[29] EUROPEAN UNION. European Parliament resolution on the use of Facebook users’ data by Cambridge Analytica and the impact on data protection (2018/2855(RSP). Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/B-8-2018-0480_EN.html.

[30] ZUCKERMAN, Ethan. Mistrust, efficacy and the new civics: understanding the deep roots of the crisis of faith in journalism. Knight Commission Workshop on Trust, Media and American Democracy, Aspen Institute, 2017. Disponível em: https://dspace.mit.edu/bitstream/handle/1721.1/110987/deeprootsofmistrust.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 4 mar. 2021. Tradução nossa.

[31] ZUCKERMAN, Ethan. Mistrust, efficacy and the new civics: understanding the deep roots of the crisis of faith in journalism. Knight Commission Workshop on Trust, Media and American Democracy, Aspen Institute, 2017. Tradução nossa.

[32] DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo: Autêntica, 2019.

[34] DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo: Autêntica, 2019. p. 167.

[36] WOOLLEY, Samuel C.; HOWARD, Philip N. Computational propaganda: political parties, politicians, and political manipulation on social media. Nova York: Oxford, 2019. p. 241. Tradução nossa.

[37]HASEN, Richard. Election meltdown: dirty tricks, distrust, and the threat to American democracy. New Haven: Yale University Press, 2020. p. 7-10.

[39] SENADO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Investigation of competition in digital markets. Disponível em: https://judiciary.house.gov/uploadedfiles/competition_in_digital_markets.pdf?utm_campaign=4493-519. Acesso em: 21 fev. 2021.

[40] DEBRABANDER, Firmin. Life after privacy: reclaiming democracy in a surveillance society. Cambridge: Cambridge University Press, 2020.

[41] CASTERO, Antia. “Não podemos salvar nossa privacidade, mas a democracia nunca precisou dela”, diz filósofo político Firmin DeBrabander. BBC News Mundo, 6 jan. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-55238831. Acesso em: 3 jun. 2021.

[42] Para uma leitura adicional sobre o direito à privacidade, sugiro a leitura do artigo: WARREN, Samuel; BRANDEIS, Louis D. The right to privacy. Disponível em: http://goups.csail.mit.edu/mac/classes/6.805/articles/privacy.html. Acesso em: 3 jun. 2021.

[43] DEBRABANDER, Firmin. Life after privacy: reclaiming democracy in a surveillance society. Cambridge: Cambridge University Press, 2020. p. 7-9. Tradução nossa.

[44] DEBRABANDER, Firmin. Life after privacy: reclaiming democracy in a surveillance society. Cambridge: Cambridge University Press, 2020. p. 9.

[47] ALTER, Adam. Irresistível. Rio de Janeiro: Objetiva, 2018. p. 11.

[49] O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa. Santo André: Rua do Sabão, 2020. p. 8.

[50] DAVID, Marie ; SAUVIAT, Cédric. Intelligence artificielle: la nouvelle barbarie. Mônaco: Éditions du Rocher, 2019. Tradução livre do original.

[51] DAVID, Marie ; SAUVIAT, Cédric. Intelligence artificielle: la nouvelle barbarie. Mônaco: Éditions du Rocher, 2019. p. 248. Tradução livre do original.

[52] ASILOMAR PRINCIPLES. Disponível em: https://futureoflife.org/ai-principles/. Acesso em: 21 fev. 2021. Os principais tópicos a que nos atemos dos Princípios de Asilomar são os a seguir transcritos: “Ética e valores. 6) Segurança: os sistemas com IA devem ser seguros e protegidos durante toda a sua vida útil operacional, e verificáveis, quando aplicável e viável. 7) Transparência de falha: se um sistema com IA causar dano, deve ser possível determinar o motivo. 8) Transparência judicial: qualquer envolvimento de um sistema autônomo na tomada de decisões judiciais deve fornecer uma explicação satisfatória passível de auditoria por uma autoridade humana competente. 9) Responsabilidade: designers e construtores de sistemas avançados com IA são partes interessadas nas implicações morais de seu uso, abuso e ações, com responsabilidade e oportunidade de moldar essas implicações. 10) Alinhamento de valor: sistemas com IA altamente autônomos devem ser projetados de modo que seja assegurado que seus objetivos e comportamentos serão alinhados com os valores humanos durante toda a operação. 11) Valores humanos: os sistemas com IA devem ser projetados e operados de modo a serem compatíveis com os ideais de dignidade humana, direitos, liberdades e diversidade cultural. 12) Privacidade pessoal: as pessoas devem ter o direito de acessar, gerenciar e controlar os dados que geram, dado o poder dos sistemas com IA de analisar e utilizar esses dados. 13) Liberdade e privacidade: a aplicação de IA aos dados pessoais não deve restringir de forma injustificável a liberdade real ou percebida das pessoas. 14) Benefício compartilhado: tecnologias com IA devem beneficiar e capacitar o maior número de pessoas possível. 15) Prosperidade compartilhada: a prosperidade econômica criada pela IA deve ser compartilhada amplamente, para beneficiar toda a humanidade. 16) Controle humano: os seres humanos devem escolher como e se devem delegar decisões aos sistemas com IA, para realizar os objetivos escolhidos pelo homem. 17) Não subversão: o poder conferido pelo controle de sistemas com IA altamente avançada deve respeitar e melhorar, ao invés de subverter, os processos sociais e cívicos dos quais depende a saúde da sociedade. 18) Corrida armada com IA: deve ser evitada uma corrida armamentista com armas autônomas letais”.

[53] DeBrabander, Firmin. Life after privacy: reclaiming democracy in a surveillance society. Cambridge: Cambridge University Press, 2020. p. 25.

[55] RAWLS, John. For the record. Entrevista concedida a Samuel R. Aybar, Joshua D. Harlan e Won J. Lee. The Harvard Review of Philosophy. Nova York: Routledge, 2002. p. 1-13.

[56] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 560.

[57] KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003. p. 407.

[58] RAWLS, John. História da filosofia moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 312.

[59] SHULE, Stephen; HURLEY, Susan (org.). On human rights: the Oxford Amnesty Lectures. New York: Basic Books, 1993.

[60] KANT, Immanuel. Rumo à paz perpétua. São Paulo: Ícone, 2010. p. 49.

[62] RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 12-13.

[63] FREEMAN, Samuel. Rawls. México: Fondo de Cultura Económica, 2007. p. 423.

[64] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 206-207.

[65] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 213.

[66] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 207.

[67] RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 78 e 159.

[68] RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 161.

[69] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 22.

[71] HÄBERLE, Peter. Estado constitucional cooperativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 62-63.

[72] NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. 40-42.

[73] FREEMAN. Samuel. Rawls. México: Fondo de Cultura Económica, 2007. p. 388-399.

[74] Sobre a tentativa de se confeccionar um tratado internacional intermediado pela ONU sobre algoritmos e lisura das eleições, faz-se referência ao excelente relatório capitaneado pelo professor de Stanford Nate Persily para a Kofi Annan Foundation, intitulado Protecting electoral integrity in the digital age: the report of the Kofi Annan Commission on Elections and Democracy in the Digital Age. Disponível em: https://fsi.stanford.edu/publication/protecting-electoral-integrity-digital-age. Acesso em: 7 jun. 2021.

[75] ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Porto Alegre: L&PM, 2008.

[76] ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 80.

[77] JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013. p. XXI.

[78] CABRAL, Guilherme Perez. Educação para a democracia no Brasil. São Paulo: Alameda, 2017. p. 331.

[80] FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2020. p. 52.

[82] PERRENOUD, Philippe. Escola e cidadania: o papel da escola na formação da democracia. São Paulo: Artmed, 2005. p. 155-157.

[83] CAPLAN, Bryan. El mito del votante racional. Londres: Innisfree, 2016. p. 115.

[84] BÖCKENFÖRDE, Ernest Wolfgang. Estado de direito e democracia. Curitiba: Instituto Atuação, 2017. p. 93.

[85] BÖCKENFÖRDE, Ernest Wolfgang. Estado de direito e democracia. Curitiba: Instituto Atuação, 2017. p. 93.

[86] Sobre o ensino da democracia direta na Suíça, ver a página oficial do Conselho Federal suíço: https://www.eda.admin.ch/aboutswitzerland/pt/home/politik/uebersicht/direkte-demokratie.html. Acesso em: 16 maio 2021.

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