Dados abertos, publicidade processual e proteção de dados pessoais nos processos judiciais
16 de agosto de 2023
Oscar Valente Cardoso
Juiz Federal, Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Coordenador do Comitê Gestor de Proteção de Dados do TRF4, Diretor-Geral da Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, Professor de cursos de pós-graduação.
Resumo
A digitalização crescente dos sistemas judiciais, aliada ao uso de tecnologias emergentes, gerou o debate sobre a necessidade de garantir a publicidade processual e promover a inovação por meio dos dados abertos, ao mesmo tempo em que se protegem os direitos fundamentais dos titulares dos dados pessoais. A aceleração no uso da tecnologia no contexto jurídico leva ao dilema entre dados abertos e proteção de dados, isto é, de permitir ou não o acesso aos dados existentes nos processos judiciais. Este artigo examina os dilemas e os desafios enfrentados na busca por um equilíbrio entre esses interesses.
Palavras-chave: Princípio da publicidade processual. Dados abertos. Inovação e tecnologia. Proteção de dados pessoais. Segredo de justiça.
Abstract
The growing digitization of judicial systems, combined with the use of emerging technologies, has generated a debate on the need to guarantee the public procedure principle and promote innovation through open data, while protecting the fundamental rights of personal data holders. The acceleration in the use of technology in the legal context leads to the dilemma between open data and data protection, that is, whether or not to allow access to existing data on lawsuits. This article examines the dilemmas and challenges faced in finding a balance between these interests.
Keywords: Public procedure principle. Open data. Innovation and technology. Personal data protection. Secret procedure.
Sumário: Introdução. 1 Programa Justiça 4.0 e dados abertos no Judiciário. 2 Princípio da publicidade processual: aspectos conceituais. 3 A proteção de dados pessoais nos processos judiciais. 4 Proteção de dados pessoais, dados abertos e publicidade processual. Considerações finais. Referências.
Introdução
O Judiciário brasileiro passou por diversas mudanças e inserções no meio digital no século XXI, com a informatização dos processos judiciais e de outros serviços.
A aceleração no uso da tecnologia no contexto jurídico leva ao dilema entre dados abertos e proteção de dados, isto é, de permitir ou não o acesso aos dados existentes nos processos judiciais.
A publicidade processual é um princípio fundamental no Estado de Direito, no Direito Constitucional e no Direito Processual, que busca garantir a transparência, a responsabilização e a fiscalização das decisões judiciais.
Nesse contexto, os dados abertos, que se referem à disponibilização de informações governamentais em formatos acessíveis e interoperáveis, têm o potencial de fomentar a inovação e o desenvolvimento de soluções tecnológicas para melhorar a eficiência e a eficácia do sistema judicial.
Contudo, a abertura de dados nos processos judiciais também levanta preocupações sobre a proteção dos dados pessoais e a privacidade dos indivíduos envolvidos.
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais estabelece regras e princípios para o tratamento de dados pessoais, incluindo aqueles presentes nos processos judiciais, a fim de proteger os direitos fundamentais de liberdade, privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade.
O desafio central nesse contexto é encontrar um equilíbrio entre a necessidade de promover a transparência e a inovação por meio dos dados abertos e a obrigação de proteger os direitos dos titulares dos dados, o que é desenvolvido no artigo.
Para esse fim, o artigo examina, na sequência, o Programa Justiça 4.0 e os dados abertos no Judiciário, a definição e o alcance do princípio da publicidade processual, a proteção de dados pessoais nos processos judiciais e, por fim, as relações existentes entre os dados abertos e a proteção de dados pessoais nos atos processuais.
1 Programa Justiça 4.0 e dados abertos no Judiciário
O Programa Justiça 4.0, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), tem o objetivo principal de desenvolver ações e projetos com o uso colaborativo de produtos e serviços que contenham novas tecnologias e inteligência artificial, para aprimorar o acesso à Justiça.
A partir dessas ações e projetos, o programa busca aprimorar a eficiência, a transparência e a acessibilidade do sistema judiciário, além de garantir a segurança e a proteção dos direitos discutidos nos processos judiciais.
Ao agilizar o andamento dos processos e aumentar a eficiência do sistema, a justiça torna-se mais acessível aos cidadãos.
A análise de dados e a utilização de inteligência artificial também são importantes componentes do Programa Justiça 4.0. Essas tecnologias são utilizadas para ajudar na análise de informações e na tomada de decisões no contexto jurídico, como na identificação de padrões e tendências em casos similares, o que pode melhorar a eficiência e a precisão do sistema.
Ainda, o Programa Justiça 4.0 inclui a implementação de novos modelos (informatizados) de gestão, visando aprimorar a eficiência e a transparência do sistema judiciário. Isso inclui a promoção de práticas de gestão baseadas em indicadores de desempenho, a criação de mecanismos de avaliação e monitoramento da atividade judiciária e a implantação de sistemas de gestão de qualidade, com o objetivo de aperfeiçoar o desempenho do sistema judiciário e garantir a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos.
Para isso, o CNJ implementa progressivamente diversas iniciativas, como a regulamentação de audiências e sessões de julgamento remotas, a análise de dados dos processos judiciais e a utilização de tecnologias, como inteligência artificial e blockchain.
Dessa forma, o CNJ visa modernizar e aperfeiçoar o sistema judiciário a partir da utilização de tecnologias avançadas e da implementação de novos modelos de gestão, para garantir a eficiência, a transparência e a acessibilidade do sistema.
Nesse contexto, a análise de dados e a utilização de inteligência artificial são importantes ferramentas para melhorar a eficiência e a precisão do Judiciário. No entanto, para que essas tecnologias possam ser aplicadas de forma eficiente, é necessário que exista um fluxo constante e confiável de informações.
Os dados abertos são importantes nesse contexto porque fornecem acesso a informações que podem ser utilizadas para a análise de dados e a utilização de IA no Judiciário. A disponibilização de dados abertos permite que os sistemas de análise de dados e IA sejam alimentados com informações precisas e atualizadas, o que é fundamental para aprimorar a eficiência e a precisão dessas tecnologias.
Os dados abertos são dados (e as informações extraídas deles) que estão disponíveis para acesso, uso e distribuição pública sem restrições, visando à transparência, à participação cidadã e à melhoria da gestão pública.[1]
O art. 2º, III, do Decreto nº 8.777/2016, que institui a Política de Dados Abertos do Poder Executivo Federal, define os dados abertos como
dados acessíveis ao público, representados em meio digital, estruturados em formato aberto, processáveis por máquina, referenciados na Internet e disponibilizados sob licença aberta que permita sua livre utilização, consumo ou cruzamento, limitando-se a creditar a autoria ou a fonte.
A Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), especialmente em suas normas de transparência ativa, contém regras sobre a utilização de sistemas e aplicações em formato aberto, para facilitar o acesso às informações públicas (art. 8º, § 3º, II e III).
No Judiciário, a Portaria nº 209/2019 do CNJ, que institui a sua política interna de dados abertos, define os dados abertos em seu art. 3º, V, com a reprodução do texto citado do Decreto nº 8.777/2016.
Ainda, nas diretrizes definidas no art. 5º, a Portaria nº 209/2019 do CNJ estabelece como regra a observância da publicidade das suas bases de dados, sendo o sigilo a exceção, e prevê a utilização de padrões de interoperabilidade na divulgação de dados abertos.
Nos tribunais brasileiros, os dados abertos incluem dados e informações sobre processos judiciais, como sentenças, acórdãos e outras decisões, petições, pareceres, laudos e outros documentos produzidos na tramitação processual.
O art. 2º, I, da Resolução nº 333/2020 do CNJ estabelece que os dados abertos relacionados à atividade-fim dos tribunais (ou seja, a prestação jurisdicional) compreendem os
dados processuais produzidos ou acumulados pelo Poder Judiciário, não sigilosos, cadastrados segundo as Tabelas Processuais Unificadas – TPUs, criadas pela Resolução CNJ nº 46/2007, representados em meio digital, estruturados em formato aberto, processáveis por máquina, referenciados na Internet e disponibilizados sob licença aberta que permite sua livre utilização, consumo ou cruzamento.
Ainda, a Resolução nº 774/2022, da Presidência do STF, criou o Programa Corte Aberta do Supremo Tribunal Federal, que é apoiado em uma política de dados abertos e define quais dados existentes nos processos judiciais podem ser livremente acessados, por qualquer pessoa, inclusive no meio digital. A partir dessa delimitação, são definidos os dados e as informações que podem estar disponíveis para consulta pública no portal do STF na Internet.
A disponibilização de dados abertos é fundamental para a utilização eficiente da análise de dados e da inteligência artificial no Judiciário, pois fornece acesso a informações precisas e atualizadas, que são fundamentais para o funcionamento dessas tecnologias. Além disso, a disponibilização de dados abertos incentiva a transparência e a participação cidadã no processo de tomada de decisões no Judiciário.
Embora o acesso aos dados abertos possa trazer muitos benefícios para o sistema judiciário, ele também pode gerar riscos para as partes envolvidas em um processo judicial, tais como:
– vulnerabilidade de dados pessoais: algumas informações produzidas nos processos judiciais podem conter dados pessoais (inclusive sensíveis), como os financeiros e aqueles relacionados à saúde ou à segurança. Se esses dados forem divulgados sem a devida proteção, podem ser mal utilizados ou expor as partes (e outros participantes dos processos) a riscos;
– violação ao direito à privacidade: a disponibilização pública dos dados e das informações produzidos em processos judiciais pode prejudicar o direito à privacidade das partes envolvidas, especialmente se contiverem dados pessoais sensíveis (como uma doença estigmatizante, a preferência religiosa ou política etc.);
– riscos à segurança jurídica: o acesso aberto a dados e informações produzidos em processos judiciais pode levar a interpretações equivocadas ou a uma perda de confiança na integridade do sistema judiciário, inclusive por meio da associação equivocada de casos diferentes;
– prejuízos à confidencialidade: alguns dados produzidos em processos judiciais são confidenciais e não devem ser divulgados, para proteger os direitos e os interesses das partes envolvidas. Se houver alguma forma de acesso a eles sem a devida proteção (ainda que o processo tramite em segredo de justiça), isso pode causar danos irreparáveis às partes e prejudicar a confidencialidade do processo.
Por essas razões, é importante que o acesso aos dados abertos em processos judiciais seja regulamentado de forma adequada, a fim de garantir a proteção dos dados pessoais, da privacidade e da confidencialidade, além da integridade do sistema judiciário.
Isso pode ser feito por meio de medidas de segurança, como a criptografia de dados e o acesso restrito a dados e informações confidenciais, além de regulamentações que garantam a proteção dos direitos e dos interesses envolvidos nos processos judiciais.
2 Princípio da publicidade processual: aspectos conceituais
O termo publicidade deriva do verbo publicar, que se origina de duas expressões latinas: publicus, relacionado às pessoas (ao público), e publicare, que significa tornar acessível às pessoas ou ao público.
Para Norberto Bobbio (1997, p. 103), a publicidade dos atos de poder público “(...) representa o verdadeiro momento de reviravolta na transformação do estado moderno que passa do estado absoluto a estado de direito”.
Por meio da observância da publicidade, a Administração Pública torna-se impessoal e visível (ou transparente).[2]
Segundo J. J. Canotilho (1993, p. 171 e 191), a publicidade exerce uma função positiva sobre os atos da Administração Pública, ao atribuir eficácia externa e segurança jurídica, bem como proteger os cidadãos contra tais atos.
Levando-se em conta que a prestação jurisdicional é uma função pública e que o Judiciário é organizado e administrado pela Administração Pública, por meio da observância da publicidade se busca a transparência e a divulgação dos atos praticados no processo (MELLO, 1999, p. 44-45).
Nesse sentido, Michele Taruffo (1975, p. 407) destaca que a publicidade e o dever de fundamentação das decisões possibilitam uma relação direta entre a sociedade e a Administração da Justiça, ao permitir o controle externo dos atos judiciais.
Da mesma forma, Joan Picó i Junoy (2012, p. 139) afirma que a publicidade confere uma projeção genérica às decisões judiciais, para que não se limitem apenas ao conhecimento das partes.
Na diferenciação que importa aos objetivos deste artigo, a publicidade pode ser:
(a) interna ou endoprocessual, que possui como destinatárias as partes do processo e seus representantes;
(b) e externa ou extraprocessual, destinada a qualquer pessoa fora do processo, interessada juridicamente nele ou não.[3]
A publicidade também é doutrinariamente classificada como:
(c) geral, ao permitir o acesso de qualquer pessoa aos atos processuais;
(d) restrita, que a limita às partes processuais;
(e) imediata, na qual todas as pessoas podem acompanhar a execução dos atos processuais;
(f) e mediata, em que qualquer pessoa tem acesso ao conteúdo do ato após a sua prática.[4]
Além dessas distinções, atribui-se uma dupla consequência à publicidade:
(a) a proibição de atos processuais e (especialmente de) julgamentos secretos;
(b) e a exigência de que todas as decisões judiciais sejam acessíveis ao público externo ao processo.
A publicidade externa (ao lado do princípio da fundamentação das decisões) possibilita o controle dos atos judiciais, ao permitir que as partes e todas as pessoas que não participaram do processo exerçam democraticamente a verificação dos atos nele praticados.
Em síntese, a publicidade consiste na prática pública ou na divulgação oficial dos atos processuais, a fim de permitir o início de seus efeitos e o controle dos atos por meio do conhecimento público.
Essa definição compreende a transparência e a informação, utilizadas para o controle interno e externo dos atos processuais. Com isso, assegura a transparência de todos os atos praticados pela Administração Pública e a permissão de acesso a todos eles, independentemente da demonstração de interesse. Contudo, a publicidade não se confunde com a publicação dos atos.
O fundamento constitucional do princípio da publicidade está no art. 93, IX, com a redação modificada pela EC nº 45/2004:
Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
Além disso, o art. 5º, LX, da Constituição efetiva a ponderação entre a publicidade e o interesse social e a intimidade: “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Portanto, há uma autorização constitucional para a limitação da publicidade diante de um desses valores (interesse social e intimidade).
No Código de Processo Civil, o princípio da publicidade é assegurado pela parte inicial do art. 11, segundo o qual “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”.[5]
Em complemento, o parágrafo único do art. 11 do CPC prevê que, “nos casos de segredo de justiça, pode ser autorizada a presença somente das partes, de seus advogados, de defensores públicos ou do Ministério Público”.
Logo, o CPC esclarece que a publicidade endoprocessual deve ser sempre assegurada e que é permitida a restrição apenas da publicidade extraprocessual.
De forma específica, o art. 189 do CPC indica os atos processuais que podem ser excepcionados pelo sigilo processual. Em resumo, o dispositivo restringe a publicidade em situações de interesse público (inciso I) ou privado (incisos II a IV), isto é, de proteção do interesse público ou social e da intimidade, nos termos referidos da Constituição.
Ao atribuir prevalência ao princípio da publicidade e prever o sigilo como exceção, a Constituição brasileira priorizou a informação, a transparência e o interesse público no acesso aos atos praticados por agentes públicos.
Desse modo, as eventuais limitações legais à publicidade devem privilegiar o interesse público à informação sobre a preservação do direito à intimidade do interessado.
Logo, a publicidade dos atos processuais é a regra e, de forma excepcional, a Constituição restringe a publicidade externa ou extraprocessual. Em outras palavras, permite-se o sigilo extraprocessual para preservar o direito à intimidade do interessado, quando isso não prejudicar o interesse público à informação.
Assim, não há processo sigiloso para as partes. O segredo de justiça só pode ser aplicado em relação a terceiros, ou seja, permite-se o sigilo extraprocessual, mas não o endoprocessual.
As partes têm o direito fundamental de acesso e conhecimento a todos os atos do processo, sem exceção. De acordo com o § 1º do art. 189 do CPC, o sigilo é extraprocessual, isto é, apenas as partes e seus advogados têm acesso aos atos processuais, além de, excepcionalmente, o terceiro juridicamente interessado.
Nos processos eletrônicos, existe uma proteção a priori da intimidade das partes e de todos os outros eventuais participantes do processo (terceiros, testemunhas, peritos etc.).[6]
O art. 11, § 6º, da Lei nº 11.419/2006 (Lei do Processo Eletrônico) previa, no seu texto original, que os documentos digitalizados anexados ao processo eletrônico estariam disponíveis apenas para acesso por meio da rede externa para as respectivas partes processuais e para o Ministério Público (sem prejuízo das hipóteses legais de segredo de justiça).[7]
Com essa medida, pretendia-se evitar a exposição de dados pessoais (como número no CPF, endereço, e-mail, número de telefone, conteúdo dos depoimentos das partes e das testemunhas etc.) na rede mundial de computadores.[8]
Por outro lado, sustenta-se que os advogados devem ter livre acesso a todos os processos eletrônicos, com base no art. 7º, XIII, da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), segundo o qual o advogado tem o direito de obter cópias e de examinar, mesmo sem procuração, os autos de qualquer processo (findos ou em andamento) que não esteja protegido pelo sigilo extraprocessual, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo.
A fim de harmonizar os dispositivos citados, em regra os tribunais limitam o acesso ao processo eletrônico apenas aos sujeitos processuais (especialmente partes, terceiros, advogados e Ministério Público) e, mediante requerimento, pode ser fornecida a chave de acesso ao processo para terceiros, caso não haja restrição imposta pelo sigilo extraprocessual.
Ressalta-se a existência de decisões contrárias, como, por exemplo, no Procedimento de Controle Administrativo nº 0000547-84.2011.2.00.0000, do Conselho Nacional de Justiça, no qual se analisou o Provimento nº 89/2010, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, e a Resolução nº 16/2009, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. No julgamento, o CNJ concluiu que “aos advogados não vinculados ao processo, mas que já estejam credenciados no tribunal para acessarem processos eletrônicos (art. 2º da Lei 11.419/06), deve ser permitida a livre e automática consulta a quaisquer autos eletrônicos, salvo os casos de processos em sigilo ou segredo de justiça”.
Para resolver essa questão, a Lei nº 13.793/2019, em vigor a partir de 4 de janeiro de 2019, inseriu dispositivos no Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), na Lei do Processo Eletrônico (Lei nº 11.419/2006) e no Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015), para, de modo padronizado, regular o acesso dos advogados aos processos eletrônicos, com fundamento na norma fundamental da publicidade dos atos processuais (art. 93, IX, da Constituição e art. 11 do CPC).
Em primeiro lugar, a Lei nº 13.793/2019 alterou o § 6º do art. 11 da Lei nº 11.419/2006, para permitir expressamente o acesso de qualquer advogado aos atos do processo eletrônico (mesmo que não represente nenhum dos sujeitos processuais), ressalvado aqueles protegidos pelo segredo de justiça, que só podem ser consultados por advogado com procuração nos autos. Conforme o dispositivo legal:
Os documentos digitalizados juntados em processo eletrônico estarão disponíveis para acesso por meio da rede externa pelas respectivas partes processuais, pelos advogados, independentemente de procuração nos autos, pelos membros do Ministério Público e pelos magistrados, sem prejuízo da possibilidade de visualização nas secretarias dos órgãos julgadores, à exceção daqueles que tramitarem em segredo de justiça.
Ainda, a lei referida adicionou o § 7º ao art. 11 da Lei nº 11.419/2006, para prever:
Os sistemas de informações pertinentes a processos eletrônicos devem possibilitar que advogados, procuradores e membros do Ministério Público cadastrados, mas não vinculados a processo previamente identificado, acessem automaticamente todos os atos e documentos processuais armazenados em meio eletrônico, desde que demonstrado interesse para fins apenas de registro, salvo nos casos de processos em segredo de justiça.
O dispositivo regula o cumprimento do § 6º do art. 11, ao determinar a viabilização do acesso aos atos processuais eletrônicos públicos pelos advogados (públicos ou privados) e integrantes do Ministério Público já cadastrados no sistema eletrônico do tribunal, independentemente de autorização prévia, mesmo que não atuem especificamente no processo que pretendem examinar.
De modo similar, a Lei nº 13.793/2019 inseriu o § 13 ao art. 7º da Lei nº 8.906/94, para esclarecer que “o disposto nos incisos XIII e XIV do caput deste artigo aplica-se integralmente a processos e a procedimentos eletrônicos, ressalvado o disposto nos §§ 10 e 11 deste artigo”. Isso significa que, em decorrência do princípio da publicidade, qualquer advogado tem o direito de examinar quaisquer autos de processo administrativo ou judicial (inclusive de prisão em flagrante, investigações e inquéritos policiais), encerrado ou em andamento, ainda que não tenha procuração, salvo nos casos de segredo de justiça (situação em que o seu acesso depende de procuração, de acordo com a publicidade endoprocessual).
Por fim, a Lei nº 13.793/2019 adicionou o § 5º ao art. 107 do Código de Processo Civil, para especificar que “o disposto no inciso I do caput deste artigo aplica-se integralmente a processos eletrônicos”. O art. 107, I, do CPC, de forma semelhante ao art. 7º, XIII, da Lei nº 8.906/94, assegura o direito do advogado a examinar e extrair cópias, mesmo sem procuração, dos autos de qualquer processo, com exceção dos atos sob sigilo, que só podem ser consultados por advogado constituído por um dos sujeitos processuais. Logo, a alteração legal sobre o CPC também busca deixar claro que a norma fundamental da publicidade extraprocessual incide sobre todos os processos, inclusive os eletrônicos. Apesar da ausência de menção expressa, a regra se aplica aos advogados públicos e privados, aos defensores públicos e aos integrantes do Ministério Público.
Portanto, quem não for representante da parte, terceiro, ou de qualquer forma não participar do processo, deve ter acesso imediato aos atos processuais públicos, inclusive no processo eletrônico, desde que não estejam protegidos pelo sigilo extraprocessual.
Assim, a Lei nº 13.793/2019 determina a observância do art. 93, IX, da Constituição e do art. 11 do CPC, ao deixar claro que, inclusive no processo eletrônico, a publicidade (endo e extraprocessual) deve ser observada como regra, ressalvada apenas a limitação à publicidade endoprocessual com fundamento em uma das hipóteses legais de segredo de justiça (para um, alguns ou todos os atos processuais, excetuado o julgamento, que deve ser sempre público).
3 A Proteção de dados pessoais nos processos judiciais
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD – Lei nº 13.709/2018), como o seu próprio nome indica, tem como objeto principal a regulação da tutela jurídica de dados pessoais.
A LGPD é uma lei geral, ou seja, regula as atividades de tratamento de dados pessoais de modo não setorial e incide sobre todas as áreas e a qualquer pessoa (natural ou jurídica, de direito público ou privado) que desenvolver tais operações.
Assim, independentemente de o agente de tratamento ser empresa ou não, ter objetivo de lucro ou não, tratar dados como atividade-meio ou como atividade-fim, ser uma organização de tecnologia ou não, deve observar as normas legais no desempenho das atividades realizadas com dados pessoais (ressalvadas as exceções legais).
Em consequência, os titulares de dados pessoais podem exercer os direitos assegurados nela, independentemente da relação jurídica específica que fundamenta o tratamento de seus dados pessoais e independentemente do setor de atividade do agente de tratamento (público ou privado, empresarial ou não, de saúde, crédito, turismo, construção civil, entre outros).
Ao incidir nas atividades de tratamento de dados realizadas por pessoas jurídicas de direito público, a LGPD também incide nos processos judiciais, por cinco fundamentos:
(a) o art. 3º, I, da LGPD, que adota o princípio da territorialidade, em virtude do qual a lei se aplica a qualquer tratamento de dados pessoais realizado no território nacional (por pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado);
(b) o art. 4º da LGPD, que contém as hipóteses de não incidência da lei, que compreendem em seu inciso III o tratamento de dados para os fins exclusivos de segurança pública, defesa nacional e segurança do Estado (o que, em regra, não abrange litígios judiciais), além das atividades de investigação e repressão de infrações penais. Assim, a LGPD afasta expressamente a sua observância nos inquéritos policiais e nos processos criminais, o que significa que incide nos processos judiciais cíveis, isto é, em todos os processos sobre matéria não penal);
(c) o art. 7º da LGPD, que contém as bases legais para o tratamento de dados pessoais (com ou sem o consentimento do titular) e prevê, no inciso VI, o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral (portanto, o tratamento de dados nos processos judiciais cíveis independe do consentimento do titular);
(d) o art. 11 da LGPD, que lista as bases legais para o tratamento de dados pessoais sensíveis (com ou sem o consentimento do titular) e prevê, na alínea d do inciso II, o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral (logo, o tratamento de dados pessoais sensíveis nos processos judiciais cíveis também não depende do consentimento do titular);
(e) por fim, mesmo que não existisse previsão legal expressa, os atos processuais são, via de regra, públicos (art. 93, IX, da Constituição, e arts. 11 e 189 do Código de Processo Civil), portanto, os dados pessoais fornecidos nos processos e referidos nas decisões judiciais e em outros atos processuais podem ser livremente capturados na Internet e utilizados por terceiros, com fins econômicos ou não.
Em razão da incidência da LGPD e do princípio da publicidade inerente aos processos judiciais, é necessária a regulamentação específica do assunto pelo Judiciário, a fim de evitar a coleta e o tratamento ilícito dos dados pessoais, o que pode gerar consequências e sanções decorrentes da publicização indevida de determinados dados.
Portanto, desde a entrada em vigor da LGPD, os tribunais brasileiros devem estar adaptados para a sua observância nos processos judiciais e em outras atividades (tais como a consulta processual, a publicação de decisões na movimentação processual e em Diário Eletrônico e a pesquisa de jurisprudência), o que será examinado no próximo item.
4 Proteção de dados pessoais, dados abertos e publicidade processual
Tendo em vista que a LGPD contém normas que regem o tratamento dos dados pessoais e que incide sobre os processos judiciais, é imprescindível definir os limites de sua aplicação, em conjunto com o princípio da publicidade dos atos processuais e a política de dados abertos inerentes ao Programa Justiça 4.0.
Do mesmo modo que a proteção da intimidade (um dos fundamentos da proteção de dados, prevista no art. 5º, X, da Constituição), a publicidade dos atos processuais tem fundamento constitucional.
Em consequência, a aplicação da LGPD aos processos judiciais e a mudança da forma de tratamento e divulgação dos dados nos atos processuais não decorre de uma revogação de determinados dispositivos de leis processuais.
A questão deve ser examinada a partir do postulado da ponderação de princípios, com a análise em cada caso sobre a prevalência do direito à intimidade ou da publicidade dos atos processuais.
Como visto acima, o art. 5º, LX, da Constituição impõe uma limitação expressa à restrição da publicidade, entre as quais está a defesa da intimidade.
Ainda, o § 1º do art. 189 do CPC estabelece o sigilo extraprocessual, isto é, apenas as partes e seus advogados têm acesso aos atos processuais, além de, excepcionalmente, o terceiro juridicamente interessado.
Por isso, nos processos com segredo de justiça total, há uma pseudoanonimização dos dados (isto é, uma anonimização reversível), tendo em vista que, no julgamento, na movimentação processual e nos atos processuais, as partes são identificadas apenas por suas iniciais, a fim de impedir a identificação dos titulares dos dados e, ao mesmo tempo, respeitar o princípio da publicidade processual.
Entretanto, as normas legais sobre o princípio da publicidade processual pouco mudaram desde o art. 5º do CPC de 1939, que definia a publicidade como regra dos atos processuais, “(...) salvo quando o contrário for exigido pelo decoro ou interesse social”. Antes disso, o Regulamento nº 737, de 1850, não previa a publicidade como regra geral dos atos processuais, mas incluía a publicação da sentença entre as “fórmulas e termos essenciais” do processo (art. 673, § 6º).
Da mesma forma, o art. 155 do Código de Processo Civil de 1973 previa a publicidade como regra dos atos processuais e o sigilo como exceção, em situações de interesse público (genericamente) ou privado (processos sobre casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de crianças ou adolescentes).
Portanto, em uma sociedade da informação e digital, ainda são utilizadas regras elaboradas para ser aplicadas em processos de papel, com decisões redigidas com caneta ou máquina de escrever manual, e que precisam de atualização (especialmente para a proteção dos dados pessoais fornecidos nos processos).
Em regra, no processo em que se determinar o segredo de justiça, a exceção à publicidade processual pode ocorrer de duas formas:
(a) sigilo integral dos autos: a proteção do interesse público, do interesse social ou da intimidade proíbe inclusive a divulgação da existência do processo, da identificação das partes e de quaisquer atos nele praticados. Isso ocorre, por exemplo, nas ações de divórcio, de alimentos e de declaração de paternidade;
(b) sigilo parcial dos autos: afasta a publicidade externa apenas para um ou alguns determinados atos do processo. Por exemplo, se o juiz determina à parte autora a apresentação de sua declaração de imposto de renda mais recente (para verificar se tem – ou não – direito ao benefício da justiça gratuita), somente o arquivo que contém esses dados deverá ser anexado como sigiloso, para impedir o acesso imediato a ele de pessoas que não participam do processo.
A Lei Geral de Proteção de Dados vai além e, na sua incidência sobre os processos judiciais, cria uma terceira forma de segredo de justiça:
(c) sigilo parcial do ato processual: ainda que um determinado ato seja público (por exemplo, a sessão de julgamento), ou que não exista a decretação de segredo de justiça total ou parcial, determinados dados pessoais das partes (como os dados pessoais sensíveis e outros que vierem a ser definidos em ato do CNJ ou do próprio tribunal) não podem ser divulgados.
Por exemplo, em um processo previdenciário de auxílio por incapacidade temporária, a versão pública da sentença (na movimentação processual, no site do tribunal ou em outro mecanismo de pesquisa) deve ocultar qualquer menção às doenças alegadas pela parte autora, referência ou eventual citação da perícia judicial (e suas conclusões), entre outros dados relacionados à saúde da parte.
Além da proteção dos dados pessoais na publicação das decisões judiciais (na movimentação processual no site do tribunal ou no Diário Eletrônico), também é preciso atualizar as regras de consulta processual (especialmente com a limitação ou a proibição de pesquisa pelo nome da parte, regra prevista na Resolução nº 121/2010 do CNJ), de pesquisa de jurisprudência, de expedição de certidões negativas e de outras formas de busca de informações sobre processos judiciais.
Como não existem na LGPD e no CPC regras específicas sobre a definição de todos os dados pessoais que devem ser considerados sigilosos nos atos processuais, a sua definição deverá ocorrer na prática das decisões judiciais e na regulamentação da aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados pelo Judiciário.
Da mesma forma que na divulgação de atos na movimentação processual, a LGPD produz reflexos nos meios de consulta processual e de pesquisa de acórdãos nas páginas dos tribunais na Internet.
Sobre o assunto, a Resolução nº 121/2010 do CNJ regulamenta a divulgação de dados processuais eletrônicos ao público na Internet e lista como dados básicos de livre acesso do processo (art. 2º):
(a) número, classe e assuntos do processo;
(b) nome das partes e de seus advogados;
(c) movimentação processual; e
(d) inteiro teor de decisões, sentenças, votos e acórdãos.
Em complemento, o art. 4º da Resolução nº 121/2010 lista os dados que devem ser disponibilizados na página de cada tribunal na Internet, para permitir a localização e a identificação dos processos judiciais:
(a) número atual e/ou anterior do processo (inclusive em outro juízo ou em outras instâncias);
(b) nomes das partes;
(c) número de cadastro das partes no cadastro de contribuintes do Ministério da Fazenda (CPF);
(d) nomes dos advogados; e
(e) número de registro do advogado na OAB.
Por isso, a busca por um processo judicial é possível apenas com o nome de qualquer pessoa, o que, associado aos dados pessoais mencionados nas decisões judiciais, pode levar a incidentes, como, por exemplo, em processos sobre benefícios previdenciários por incapacidade, pedidos de fornecimento de medicamentos (com a menção à doença – estigmatizante ou não – e às suas consequências), valores recebidos, conflitos particulares que não se enquadrarem no segredo de justiça, entre outras situações.
Quanto à pesquisa de acórdãos (a denominada “pesquisa de jurisprudência”), o art. 5º da Resolução nº 121/2010 prevê que “a disponibilização de consultas às bases de decisões judiciais impedirá, quando possível, a busca pelo nome das partes”.
Assim, não há sequer um dever de impedir ou dificultar o acesso aos acórdãos na aba de pesquisa de jurisprudência a partir do uso do nome da parte como único critério de pesquisa. O dispositivo regulamentador apenas recomenda, “quando possível”, a exclusão dos nomes das partes como critérios de busca.
Ressalta-se que dados públicos não se confundem com dados de acesso público. Os dados pessoais dos titulares – partes nos processos judiciais – não são públicos. Logo, ainda que se extraia de um banco de dados público, a criação de um banco de dados privado exige o consentimento expresso dos titulares dos dados ou a indicação de outra das demais bases legais de tratamento.
Em regra, a base legal utilizada para o tratamento de dados nos processos judiciais é o exercício regular de direitos (art. 7º, VI, da LGPD, para os dados pessoais propriamente ditos, e art. 11, II, d, para os dados pessoais sensíveis). Por isso, as atividades de tratamento dos dados pessoais fornecidos nos processos judiciais devem observar esse fundamento e, consequentemente, a finalidade, a adequação e a necessidade dele derivadas.
Além disso, mesmo nas situações em que os dados pessoais são tornados manifestamente públicos pelo titular, a dispensa do consentimento não prescinde da indicação de uma base legal para o tratamento desses dados, e a LGPD exige de forma expressa a observância dos princípios de tratamento previstos no art. 6º e o respeito aos direitos do titular (art. 7º, § 4º).
Por isso, é preciso, por exemplo, existir necessidade para a coleta dos dados pessoais referidos em decisões judiciais, ser indicada a finalidade do tratamento, adequar as operações à finalidade, entre outras ações decorrentes dos princípios de tratamento.
Não é possível coletar livremente os dados pessoais referidos em decisões judiciais e em outros atos processuais públicos, o que compreende aqueles divulgados na consulta processual, na pesquisa de jurisprudência e em outros meios.
Dessa forma, a Resolução nº 121/2010 do CNJ precisa ser revisada para se adequar à LGPD e garantir a proteção de dados pessoais, sem limitar a abertura de dados necessária para o desenvolvimento das inovações nos processos judiciais eletrônicos.
Assim, é necessária a definição dos limites entre a publicidade processual e a proteção dos dados pessoais, a ser realizada por lei (por exemplo, na alteração da regulação da publicidade no Código de Processo Civil) ou por precedentes judiciais (especialmente nos recursos repetitivos do Superior Tribunal de Justiça ou no controle de constitucionalidade, difuso e concentrado, pelo Supremo Tribunal Federal) ou pela atualização da Resolução nº 121/2010 do CNJ (que possui como vantagem as maiores possibilidades de detalhamento e de padronização pelos tribunais).
Considerações finais
Em um mundo hiperconectado e digital, e em uma sociedade de vigilância e da informação, os dados pessoais são coletados de forma automática e concomitante à sua produção, por meio não apenas de dispositivos eletrônicos, mas também de objetos ligados à Internet (Internet das coisas).
Da mesma forma, todos os dados divulgados pelos órgãos públicos estão sujeitos ao risco de captura e tratamento por terceiros, especialmente com a prestação dos serviços online.
Por sua vez, o princípio da publicidade (ao lado do princípio da fundamentação) permite o controle público do processo, realizado por qualquer pessoa (interessada ou não na sua resolução), em decorrência da publicidade geral de todos os atos processuais (em regra) e da divulgação pública dos processos que cada juiz e relator possui conclusos para sentença.
Contudo, não se pode utilizar o princípio da publicidade como um fundamento para justificar a existência de um direito de bisbilhotar a vida alheia e de buscar dados pessoais a partir de buscas pelos nomes das partes.
Conforme ressaltado acima, as regras elaboradas em uma época de processos físicos (em sua maioria) e de pouco uso de ferramentas tecnológicas precisam ser atualizadas, para levar em consideração a existência de uma sociedade de informação, de vigilância e online, em que o Judiciário trabalha com um grande volume de dados (big data), que precisam ser tratados de forma adequada.
Ainda, devem ser levadas em consideração as normas da Lei Geral de Proteção de Dados, razão pela qual não se pode manter a mesma interpretação à publicidade processual delimitada por normas legais elaboradas antes mesmo da produção de máquinas de escrever no Brasil (o que teve início apenas em 1941, ano posterior à entrada em vigor do CPC/39).
Entre os reflexos da LGPD, a sua aplicação sobre o Judiciário deve compreender a análise das mudanças causadas sobre a forma de regulação infraconstitucional do princípio da publicidade processual, especialmente sobre a consulta processual, a publicação das decisões judiciais (e outros atos) e a pesquisa de jurisprudência nas páginas dos tribunais na Internet.
O desafio central nesse contexto é encontrar um equilíbrio entre a necessidade de promover a transparência e a inovação por meio dos dados abertos e a obrigação de proteger os direitos dos titulares dos dados. Algumas das possíveis soluções para esse dilema incluem:
– anonimização e pseudonimização de dados: a fim de conciliar a publicidade processual e a proteção de dados pessoais, uma abordagem possível é a utilização de técnicas de anonimização ou pseudoanimização (ou pseudoanonimização), que permitem a ocultação da identidade dos titulares de dados pessoais. No entanto, essa medida deve ser efetiva e garantir que os dados não possam ser facilmente identificados, especialmente no meio digital;
– controle de acesso: uma alternativa é o estabelecimento de mecanismos de controle de acesso aos dados processuais, de modo a garantir que apenas as pessoas autorizadas possam acessar determinados dados pessoais (como, por exemplo, os dados pessoais sensíveis). Isso pode ser feito por meio da criação de perfis de acesso diferenciados, de acordo com a natureza das informações e o papel desempenhado pelos usuários no processo judicial;
– educação e conscientização: é essencial que os profissionais do Direito e os responsáveis pelo tratamento de dados nos processos judiciais estejam cientes das disposições da LGPD e garantam a sua aplicação adequada. A promoção de uma cultura de proteção de dados e o desenvolvimento de boas práticas nesse sentido são essenciais para o equilíbrio entre os dados abertos, a publicidade processual e a proteção de dados pessoais;
– regulamentação específica: é necessária a elaboração de normas específicas para o tratamento de dados pessoais nos processos judiciais (especialmente a atualização da Resolução nº 121/2010 do CNJ), levando em consideração as particularidades desse contexto. A regulamentação deve abordar aspectos como os limites e as condições para a divulgação de dados processuais, os procedimentos para anonimização e pseudonimização, além das responsabilidades das diversas pessoas envolvidas no tratamento desses dados nos processos judiciais;
– relatório de impacto à proteção de dados: a elaboração de relatório de impacto à proteção de dados pessoais pelos tribunais pode ser uma ferramenta útil para identificar e mitigar os riscos associados à abertura de dados processuais. O relatório permite analisar as operações de tratamento de dados pessoais e avaliar sua conformidade com a legislação de proteção de dados pessoais, bem como identificar medidas para minimizar os riscos identificados, especialmente quando o tratamento puder gerar riscos às liberdades civis e aos direitos fundamentais dos titulares;
– cooperação entre as partes interessadas: a cooperação entre as partes interessadas, especialmente os órgãos do Poder Judiciário, os profissionais do Direito e as empresas de tecnologia, é fundamental para o desenvolvimento de soluções equilibradas e eficientes que conciliem a publicidade processual, os dados abertos e a proteção de dados pessoais.
Em conclusão, a busca por um equilíbrio entre a abertura de dados, a publicidade processual e a proteção de dados pessoais nos processos judiciais apresenta diversos dilemas e desafios.
No entanto, é possível conciliar esses interesses por meio de uma combinação de medidas técnicas, legais e organizacionais, a fim de garantir que os sistemas judiciais possam se beneficiar das inovações tecnológicas sem comprometer os direitos fundamentais dos titulares dos dados pessoais.
A adoção de boas práticas, a cooperação entre as partes interessadas e a conscientização dos profissionais do Direito são elementos-chave para alcançar esse equilíbrio e garantir a conformidade dos dados abertos com os princípios e fundamentos estabelecidos pela LGPD.
Referências
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CARDOSO, Oscar Valente. Proteção de dados pessoais e princípio da publicidade: pesquisa de acórdãos e consulta processual. Revista da ESDM, n. 13, Porto Alegre, p. 78-94, jan./jun. 2021.
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TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: Cedam, 1975.
Notas
[1] Sobre o conceito de dados abertos: FERREIRA, SOUZA, 2021, p. 21-42.
[2] Nesse sentido: FINGER, 2006, p. 78.
[3] Com classificação similar, mas com o uso das expressões “restrita” e “irrestrita” para qualificar a publicidade: ALBERTON, 2000, p. 49.
[4] Acerca das classificações referidas: SARLET, MARINONI, MITIDIERO, 2012, p. 663. A diferenciação entre publicidade mediata e imediata pode ser encontrada em: CARNELUTTI, 1955, p. 4.
[5] Sobre o princípio da publicidade no Direito Processual: CARDOSO, 2021, p. 78-94.
[6] Sobre o assunto: CARDOSO, 2013, p. 60-66.
[7] De acordo com o texto original: “Art. 11. Os documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos com garantia da origem e de seu signatário, na forma estabelecida nesta lei, serão considerados originais para todos os efeitos legais. (...) § 6o Os documentos digitalizados juntados em processo eletrônico somente estarão disponíveis para acesso por meio da rede externa para suas respectivas partes processuais e para o Ministério Público, respeitado o disposto em lei para as situações de sigilo e de segredo de justiça”.
[8] Nesse sentido: “12. Sigilo e processo eletrônico. Por certo, o sigilo é tão relevante no processo eletrônico quanto no convencional. Sendo assim, também deverão ser adotadas tecnologias que permitam o acesso ao conteúdo do processo eletrônico apenas ao advogado constituído (p. ex., mediante senha), justamente em razão da ampla publicidade conferida pela Internet, que, mesmo em situações supostamente protegidas, extravasa seus conteúdos a quem não convém (p. ex., hackers). (...)” (NERY JUNIOR, NERY, 2015, p. 220).
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