Direito Hoje | Júri e absolvição contra a prova dos autos: clemência absoluta ou arbítrio?
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Douglas FischerDouglas Fischer
Procurador Regional da República na 4ª Região, Mestre em Instituições de Direito e do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS

 

Carlos Gustavo Coelho de AndradeCarlos Gustavo Coelho de Andrade
Promotor de Justiça no Rio de Janeiro, Mestre em Direito Penal pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ

 

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 Douglas Fischer e Carlos Gustavo Coelho de Andrade 

23 de setembro de 2020

Sumário: Introdução. 1 O caráter dúplice dos direitos humanos, vedação de proteção deficiente, mandados implícitos de criminalização e obrigações processuais penais positivas. 2 A tutela penal para proteção de direitos fundamentais na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 3 A tutela penal como meio de proteção dos direitos humanos na jurisprudência das Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos. 4 Mandados implícitos de criminalização, obrigações processuais penais positivas e a imposição de controle sobre a clemência arbitrária (manifestamente contrária à prova dos autos). 5 Da arbitrariedade da clemência e de sua vedação constitucional para crimes hediondos. 6 Considerações finais. Conclusões. Referências bibliográficas.

Introdução

O Supremo Tribunal Federal, em acórdão de 07.05.2020, à unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral sobre a possibilidade ou não de interposição de recurso em face de sentença absolutória proferida no âmbito do Tribunal do Júri em resposta ao quesito genérico defensivo (art. 483, III e § 2º, do CPP), por manifesta contrariedade à prova dos autos (art. 593, III, d, do CPP), diante do princípio constitucional da soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, c, da CRFB), em acórdão assim ementado:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PENAL E PROCESSUAL PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI E SOBERANIA DOS VEREDICTOS (ART. 5º, XXXVIII, C, CF). IMPUGNABILIDADE DE ABSOLVIÇÃO A PARTIR DE QUESITO GENÉRICO (ART. 483, III, C/C § 2º, CPP) POR HIPÓTESE DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS (ART. 593, III, D, CPP). ABSOLVIÇÃO POR CLEMÊNCIA E SOBERANIA DOS VEREDICTOS. MANIFESTAÇÃO PELA EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

A questão passou a ser controvertida na jurisprudência após a reformulação da quesitação defensiva no Tribunal do Júri pela Lei 11.689/08, que unificou a votação de todas as teses defensivas (antes articuladas em quesitos independentes para cada assertiva de cada tese) no quesito único do art. 483, III e § 2º, do CPP: “O jurado absolve o acusado?”. Anteriormente, era possível que uma maioria pró-absolvição fosse desconsiderada porque diversos os fundamentos absolutórios (e.g., três jurados votavam pela legítima defesa e dois pelo estado de necessidade: como nenhuma tese atingira quatro votos, o réu era condenado, mesmo que cinco jurados considerassem que ele deveria ser absolvido). Para sanar tal problemática, evitar frequentes nulidades na enunciação de quesitos e ampliar as chances defensivas, a reforma unificou a quesitação das teses de defesa. Parte da doutrina passou a defender que o inciso III encerrava, ainda, uma faculdade de clemência ao jurado, não sendo necessária a motivação do porquê da vontade absolutória, ainda que houvessem sido reconhecidos a materialidade, o dolo e a autoria e que a única tese defensiva fosse negativa de autoria. E, ademais, que tal direito potestativo de clemência era soberano, não podendo o veredicto absolutório ser objeto de cotejo com a prova dos autos, tornando privativo da defesa o recurso de mérito do art. 593, III, d, do CPP.

A tese teve adeptos no Superior Tribunal de Justiça, mas ficou vencida, por maioria, no julgamento do HC 313.251-RJ, pela 3ª Seção do STJ, assim ementado:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. DESCABIMENTO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. TRIBUNAL DO JÚRI. ABSOLVIÇÃO. APELAÇÃO DA ACUSAÇÃO PROVIDA. ART. 593, III, D, DO CPP. SUBMISSÃO DO RÉU A NOVO JULGAMENTO. O JUÍZO ABSOLUTÓRIO PREVISTO NO ART. 483, III, DO CPP NÃO É ABSOLUTO. POSSIBILIDADE DE CASSAÇÃO PELO TRIBUNAL DE APELAÇÃO. EXIGÊNCIA DA DEMONSTRAÇÃO CONCRETA DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA ÀS PROVAS. SOBERANIA DOS VEREDICTOS PRESERVADA. DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO. MANIFESTA CONTRARIEDADE À PROVA DOS AUTOS RECONHECIDA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. REVISÃO QUE DEMANDA REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE EM HABEAS CORPUS. PRECEDENTES. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO VERIFICADO. WRIT NÃO CONHECIDO.

1. Diante da hipótese de habeas corpus substitutivo de recurso próprio, a impetração não deve ser conhecida, segundo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal – STF e do próprio Superior Tribunal de Justiça – STJ. Contudo, considerando as alegações expostas na inicial, é razoável a análise do feito para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal.

2. As decisões proferidas pelo conselho de sentença não são irrecorríveis ou imutáveis, podendo o tribunal ad quem, nos termos do art. 593, III, d, do CPP, quando verificar a existência de decisão manifestamente contrária às provas dos autos, cassar a decisão proferida, uma única vez, determinando a realização de novo julgamento, sendo vedada, todavia, a análise do mérito da demanda.

3. A absolvição do réu pelos jurados com base no art. 483, III, do CPP, ainda que por clemência, não constitui decisão absoluta e irrevogável, podendo o tribunal cassar tal decisão quando ficar demonstrada a total dissociação da conclusão dos jurados com as provas apresentadas em plenário. Assim, resta plenamente possível o controle excepcional da decisão absolutória do júri, com o fim de evitar arbitrariedades e em observância ao duplo grau de jurisdição. Entender em sentido contrário exigiria a aceitação de que o conselho de sentença disporia de poder absoluto e peremptório quanto à absolvição do acusado, o que, a meu ver, não foi o objetivo do legislador ao introduzir a obrigatoriedade do quesito absolutório genérico previsto no art. 483, III, do CPP.

4. O Tribunal de Justiça local, eximindo-se de emitir qualquer juízo de valor quanto ao mérito da acusação, demonstrou a existência de julgamento manifestamente contrário à prova dos autos amparado por depoimento de testemunha e exame de corpo de delito. Verifica-se que a decisão do conselho de sentença foi cassada com fundamento em que as provas dos autos não deram respaldo para a absolvição, ante a inexistência de causas excludentes de ilicitude ou culpabilidade, não prevalecendo a tese defensiva da acidentalidade, tendo em vista a demonstração de que o acusado continuou a desferir golpes à vítima já caída ao chão, sendo a causa da sua morte traumatismos no crânio, no pescoço e no tórax.

5. Havendo o acórdão impugnado afirmado, com base em elementos concretos demonstrados nos autos, que a decisão dos jurados proferida em primeiro julgamento se encontra manifestamente contrária à prova dos autos, é defeso a esta Corte Superior manifestar-se de forma diversa, sob pena de proceder a indevido revolvimento fático-probatório, incabível na via estreita do writ. Habeas corpus não conhecido. (STJ, 3ª Seção, HC 313.251-RJ, rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 28.02.2018)

Na ocasião, o Exmo. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca apresentou voto vencido, sintetizando da seguinte forma seus fundamentos:

PENAL. HABEAS CORPUS. 1. IMPETRAÇÃO SUBSTITUTIVA DO RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. 2. TRIBUNAL DO JÚRI. LEI Nº 11.689/2008. ART. 483, III, DO CPP. “O JURADO ABSOLVE O ACUSADO?”. QUESITO OBRIGATÓRIO. 3. ABSOLVIÇÃO POR CLEMÊNCIA. POSSIBILIDADE. SISTEMA DA ÍNTIMA CONVICÇÃO. SOBERANIA DOS VEREDICTOS E PLENITUDE DE DEFESA. 4. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. ART. 593, III, d, DO CPP. RECURSO DE APELAÇÃO. NÃO CABIMENTO. 5. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO DUPLO GRAU. PRINCÍPIO DA UNIDADE DA CONSTITUIÇÃO. COMPATIBILIZAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS RECURSAIS E DO JÚRI. 6. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.

1. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade.

2. Após a inovação legislativa trazida pela Lei nº 11.689/2008, todas as teses defensivas que não estejam relacionadas à materialidade e à autoria delitivas passaram a ser objeto de um único quesito genérico obrigatório, previsto no art. 483, inciso III, do CPP. Sua formulação é obrigatória independentemente das teses defensivas expostas durante todo o procedimento bifásico do júri, sob pena de nulidade absoluta. Precedentes do STJ.

3. Diante dessa unificação, é possível a absolvição do réu por qualquer tese defensiva, ainda que não amparada em substratos fáticos nos autos, dentre elas, a clemência, porquanto é possível que os jurados, a despeito de formar sua convicção pelo reconhecimento da materialidade e da autoria delitivas, estejam convencidos da desnecessidade ou da injustiça de eventual pena a ser imposta, resolvendo, pois, absolver o acusado. A quesitação genérica potencializou o sistema da íntima convicção e da plenitude de defesa no Tribunal do Júri diante da possibilidade de absolvição por qualquer fundamento, pouco importando a razão que motivou os jurados, até mesmo porque estes não se encontram adstritos a qualquer tese defensiva articulada. Com isso, os jurados podem proferir decreto absolutório de acordo com o senso de justiça, por causas supralegais de exclusão da culpabilidade, por razões humanitárias e por clemência – perdão –, ainda que tenham, anteriormente, reconhecido a materialidade e a autoria delitivas.

4. O édito absolutório proferido pelo Conselho de Sentença com fundamento na resposta ao quesito do art. 483, inciso III, do CPP não está atrelado aos elementos probatórios constantes dos autos, mas sim a razões de convicção íntima, subjetiva, de equidade, justiça, clemência, e, não se referindo a fatos, não se refere, consequentemente, a provas, e, não se referindo a provas, não há que se falar em julgamento contrário às provas dos autos. Portanto, é inviável a interposição do recurso de apelação previsto no art. 593, III, d, do CPP.

5. Não sendo possível perquirir-se acerca da contrariedade manifesta às provas dos autos, a decisão absolutória dos jurados fundada no quesito genérico previsto no art. 483, inciso III, do CPP não está sujeita ao recurso de apelação descrito no art. 593, III, d, do CPP, ocorrendo, portanto, uma limitação, mas não exclusão, do direito de recurso nesse pormenor, compatibilizando-se as garantias do júri popular previstas na Constituição Federal com o direito de recurso – art. 5º, LV, da CF –, em observância aos princípios da unidade da Constituição e da convivência das liberdades públicas.

6. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para cassar o acórdão impugnado e restabelecer a sentença absolutória proferida pelo Tribunal do Júri.

No Supremo Tribunal Federal, o tema vinha sendo objeto de decisões conflitantes entre as duas turmas: no âmbito da 2ª Turma, o Min. Celso de Mello, em decisão monocrática de 01.08.2019 no HC 117.076-PR, decidiu que o recurso do art. 593, III, d, passou a ser privativo da defesa após a Lei 11.689/08:

Recurso ordinário em habeas corpus. Tribunal do Júri. Quesito genérico de absolvição (art. 483, inciso III e respectivo § 2º, do CPP). Interposição, pelo Ministério Público, do recurso de apelação previsto no art. 593, inciso III, alínea d, do CPP. Descabimento. Doutrina. Jurisprudência. Recurso ordinário provido.

– A previsão normativa do quesito genérico de absolvição no procedimento penal do júri (CPP, art. 483, III e respectivo § 2º), formulada com o objetivo de conferir preeminência à plenitude de defesa, à soberania do pronunciamento do Conselho de Sentença e ao postulado da liberdade de íntima convicção dos jurados, legitima a possibilidade de os jurados – que não estão vinculados a critérios de legalidade estrita – absolverem o réu segundo razões de índole eminentemente subjetiva ou de natureza destacadamente metajurídica, como, p. ex., o juízo de clemência, ou de equidade, ou de caráter humanitário, uma vez que o sistema de íntima convicção dos jurados não os submete ao acervo probatório produzido ao longo do processo penal de conhecimento, inclusive à prova testemunhal realizada perante o próprio plenário do júri. Doutrina e jurisprudência.

– Isso significa, portanto, que a apelação do Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com a prova dos autos (CPP, art. 593, III, d), caso admitida fosse, implicaria frontal transgressão aos princípios constitucionais da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados, que não estão obrigados – ao contrário do que se impõe aos magistrados togados (CF, art. 93, IX) – a decidir de forma necessariamente motivada, mesmo porque lhes é assegurado, como expressiva garantia de ordem constitucional, “o sigilo das votações” (CF, art. 5º, XXXVIII, b), daí resultando a incognoscibilidade da apelação interposta pelo Parquet. Magistério doutrinário e jurisprudencial.

Recentemente, reiterou entendimento no seguinte sentido, dizendo que

a apelação do Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com a prova dos autos (CPP, art. 593, III, d), caso admitida fosse, implicaria frontal transgressão aos princípios constitucionais da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença, da plenitude de defesa do acusado e do modelo de íntima convicção dos jurados, que não estão obrigados – ao contrário do que se impõe aos magistrados togados (CF, art. 93, IX) – a decidir de forma necessariamente motivada, mesmo porque lhes é assegurado, como expressiva garantia de ordem constitucional, “o sigilo das votações” (CF, art. 5º, XXXVIII, b), daí resultando a incognoscibilidade da apelação interposta pelo Parquet. (Habeas Corpus nº 185.068-SP, decisão de 07.07.2020)

Por sua vez, a 1ª Turma, nos julgamentos dos RHC 146.672-DF e 170.559-MT, votou pela possibilidade de anulação de sentença decorrente de veredicto absolutório manifestamente contrário à prova dos autos, nos termos do art. 593, III, d e § 2º, do CPP, conforme noticiado no sítio oficial do STF.[1]

Diante da divergência e da relevância do tema, ele foi afetado ao Plenário para julgamento do tema nº 1.087 de repercussão geral:

Possibilidade de tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos.

Posteriormente, a 1ª Turma reafirmou que

o princípio da soberania dos vereditos resta incólume diante da manifestação do tribunal ad quem que reconhece decisão manifestamente contrária à prova dos autos proferida pelo Conselho de Sentença. Precedentes: HC 134.412, Segunda Turma, rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 16.06.2016; RHC 170.426, rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 24.05.2019; HC 173.582, rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 07.08.2019; e RHC 135.784, rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 25.06.2018 [...]. (Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 172.636-SP, rel. Min. Luiz Fux, julgamento encerrado em 15.06.2020, publicado no DJ em 14.07.2020)

Passamos a analisar a controvérsia à luz sobretudo da doutrina dos mandados implícitos de criminalização e das obrigações processuais positivas em matéria penal, que sustentam o caráter dúplice dos direitos fundamentais, reconhecido pela jurisprudência do c. Supremo Tribunal Federal e pela jurisprudência de tribunais internacionais de direitos humanos, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e o Tribunal Europeu de Direitos do Homem (TEDH).

1 O caráter dúplice dos direitos humanos, vedação de proteção deficiente, mandados implícitos de criminalização e obrigações processuais penais positivas

Diante da viragem do paradigma do Estado Liberal de Direito para aquele do Estado Social e Democrático de Direito e da consolidação da superioridade hierárquico-normativa das regras e dos princípios constitucionais, os direitos fundamentais passaram a ser vistos não apenas como direitos de defesa do indivíduo contra o Estado, mas também como direitos a serem assegurados e concretizados por intermédio do Estado. [2]

Percebeu-se, pois, que “a visão dos direitos fundamentais enquanto direitos de defesa (Abwehrrecht) se revela insuficiente para assegurar a pretensão de eficácia que dimana do texto constitucional”, sendo necessário também que o indivíduo possa desfrutar dessa liberdade mediante atuação do Estado, [3] evoluindo da posição de adversário para uma função de guardião desses direitos. [4]

Transposta a questão para a seara penal, na qual os bens jurídicos protegidos constituem concretizações de valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e aos deveres fundamentais, constata-se ser preciso superar a contraposição maniqueísta entre Estado mau e sociedade boa. Reconhece-se, pois, que o Estado atua não apenas como potencial opressor, mas também como guardião dos direitos humanos, e que, se de um lado há a proibição de excesso (Übermassverbot), de outro existe a vedação de proteção deficiente (Untermassverbot), devendo ser buscada a defesa de um garantismo penal integral, [5] positivo e negativo, levando em consideração direitos fundamentais dos acusados e das vítimas.

Com base nesses pressupostos, passou-se a reconhecer a existência de obrigações, cláusulas, deveres ou mandados constitucionais (e internacionais) de proteção – inclusive pela via penal – dos direitos fundamentais: o jus puniendi volta a ser, pois, reconhecido como instrumento necessário para a proteção daqueles direitos, nascendo um dever estatal de criminalização e de efetiva investigação e persecução penal de graves ataques contra os direitos fundamentais à vida e à integridade física e graves violações de direitos humanos. [6]

Percebe-se, pois, que o Estado pode violar a Constituição também por não resguardar adequadamente determinados bens, valores ou direitos, conferindo a eles proteção deficiente, “seja pela não tipificação de determinada conduta, seja pela pouca severidade da pena prevista. Nesse caso, a violação do princípio da razoabilidade-proporcionalidade ocorrerá na modalidade da vedação da insuficiência”, [7] violando mandados implícitos de criminalização decorrentes da proteção constitucional aos valores e aos direitos fundamentais.

De forma semelhante, no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, construiu-se sólida jurisprudência na Corte Interamericana de Direitos Humanos e na Corte Europeia de Direitos do Homem reconhecendo a existência de obrigações processuais positivas em matéria penal por parte dos Estados, a determinarem a necessidade de proteção, inclusive penal, de direitos humanos assegurados nas respectivas convenções. Assim, além da edição de norma penal criminalizante (da tortura, do homicídio, do trabalho escravo etc.), a necessidade de proteção dos direitos humanos exige a promoção de atividades investigativas e persecutórias adequadas diante de sua violação, de ordem a que o Estado cumpra o dever de tratar os atos lesivos dos direitos fundamentais como ilícitos e a eles responder no modo exigido pelas convenções, assegurando efeito útil à norma convencional assecuratória de direitos humanos. [8]

Ainda que as normas internacionais de proteção dos direitos humanos, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (e seu corpus iuris, incluída a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos), gozem de status supralegal em nosso ordenamento jurídico, [9] as normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos paulatinamente passaram a permear o ordenamento constitucional e vice-versa, numa constitucionalização do Direito Internacional simultânea a uma internacionalização do Direito Constitucional. [10] Nesse processo, acolhido pela Constituição de 1988 (conforme cláusulas abertas do inciso II do art. 4º, dos §§ 1º e 2º do art. 5º da CRFB e do art. 7º do ADCT), o Direito Constitucional abre-se ao processo de internacionalização dos direitos básicos da pessoa humana, numa interpretação constitucional cosmopolita, típica do Estado Constitucional Cooperativo, passando a levar em consideração a jurisprudência das cortes internacionais de direitos humanos. [11]

Assim, a partir do direito à proteção judicial e ao recurso efetivo contra violações de direitos humanos (art. 25 da CADH), do devido processo legal (art. 8.1 da CADH) e do dever de os Estados garantirem o livre e pleno exercício dos direitos convencionais, além de meramente respeitá-los (art. 1.1 da CADH), a Corte Interamericana de Direitos Humanos (e, de forma análoga, a europeia) consolidou firme jurisprudência reconhecendo a existência de obrigações positivas por parte dos Estados, inclusive em matéria penal. Dessa maneira, têm os Estados signatários, por todos os seus órgãos, o dever de realizar diligente investigação, persecução e processamento penal de violações de direitos humanos e, em sendo o caso, de impor sanção proporcional aos responsáveis. [12]

Em síntese, não se pode olvidar que a justiça criminal tem dupla função: de servir como escudo e, igualmente, como espada dos direitos fundamentais. Conforme se colhe em doutrina,

as expressões são mencionadas, por ex., por TULKENS, Françoise. The paradoxical relationship between criminal law and human rights. Journal of International Criminal Justice, Oxford, v. 9, n. 3, p. 578, jul. 2011, a qual atribui a origem da locução “the dual ‘shield’ and ‘sword’ function of criminal justice” a uma exposição feita pela ex-juíza da Corte Penal Internacional Christine Van den Wyngaert em 1995. Com senso diverso, apenas pela ótica da pessoa ofendida, ou seja, no sentido de que o processo opera como fundamental instrumento de proteção e mecanismo destinado a satisfazer o anseio de justiça, mas que pode também reproduzir uma experiência traumática a vítimas vulneráveis, a exigir, assim, que a vítima seja protegida “pelo” e “do” processo, funcionando, portanto, como “lo scudo e la spada”, é o título da obra de ALLEGREZZA, Silvia et al. Lo scudo e la spada, esigenze di protezione e poteri delle vittime nel processo penale tra Europa e Italia. Torino: G. Giappichelli, 2012. [13]

Efetivamente, e

tendo por inspiração principal a jurisprudência mais desenvolvida do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, trata-se já de verdadeira obrigação imposta aos Estados-membros de conduzir mecanismo penal apto ao esclarecimento dos fatos lesivos aos interesses das vítimas, o que inclui os parentes da vítima direta, e que seja idôneo à identificação dos autores, como uma projeção necessária da defesa penalmente conferida aos direitos individuais e à coletividade na qual estão inseridas as pessoas atingidas pelos delitos. A preocupação com os interesses das vítimas e de seus familiares apresenta-se com a mesma intensidade nos julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos. E nem poderia ser diferente, pois os direitos fundamentais a serem observados não estão, exclusivamente, na esfera daqueles relacionados com os autores de infrações que atinjam interesses dos demais em sociedade. [14]

Dessa forma,

a visão não pode ser parcial, unicamente pelo prisma de direitos fundamentais do processado, como normalmente alguns se limitam a defender. Em razão disso, para assegurar o objetivo de uma tutela penal efetiva dos direitos humanos, é fundamental levar em consideração a maneira como foi conduzido o procedimento penal, principalmente para verificar a qualidade do mecanismo de acertamento dos fatos posto em prática pelas autoridades investigativas e judiciais. [15]

2 A tutela penal para proteção de direitos fundamentais na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

Passa-se, então, ao breve exame dos principais julgados do Supremo Tribunal Federal nos quais se reconheceu ou discutiu a vedação da denominada proteção penal deficiente . [16]

No julgamento do HC 82.424-RS (Caso Ellwanger), o STF reconheceu que a imprescritibilidade constitucionalmente estabelecida para racismo (art. 5º, XLII, da CRFB) abrangia os crimes decorrentes de discriminação religiosa praticados em detrimento dos judeus.

No julgamento do RE 418.376, o voto concorrente do Min. Gilmar Mendes aduziu expressamente que a vetusta causa de extinção de punibilidade pelo casamento de vítima de crime sexual (antigo art. 107, VII, do CP) caracterizaria “típica hipótese de proteção insuficiente”, violando dever de proteção penal de direitos fundamentais. Em seguida, no julgamento da ADI 3.112, considerando constitucionais as restrições do Estatuto do Desarmamento para a concessão de fiança, o voto vencido do Min. Gilmar Mendes fundamentou-se expressamente nos mandados implícitos de criminalização e na vedação da proteção insuficiente (Untermassverbot):

É inequívoco, porém, que a Constituição brasileira de 1988 adotou, muito provavelmente, um dos mais amplos, senão o mais amplo, “catálogo” de mandatos de criminalização expressos de que se tem notícia.

Ao lado dessa ideia de mandatos de criminalização expressos, convém observar que configura prática corriqueira na ordem jurídica a concretização de deveres de proteção mediante a criminalização de condutas.

Outras vezes, cogita-se mesmo de mandatos de criminalização implícitos, tendo em vista uma ordem de valores estabelecida pela Constituição. Assim, levando-se em conta o dever de proteção e a proibição de uma proteção deficiente ou insuficiente (Untermassverbot), cumpriria ao legislador estatuir o sistema de proteção constitucional-penal adequado.

Em muitos casos, a eleição da forma penal pode conter-se no âmbito daquilo que se costuma chamar de discrição legislativa, tendo em vista desenvolvimentos históricos, circunstâncias específicas ou opções ligadas a um certo experimentalismo institucional. A ordem constitucional confere ao legislador margens de ação para decidir sobre quais medidas devem ser adotadas para a proteção penal eficiente dos bens jurídicos fundamentais. É certo, por outro lado, que a atuação do legislador sempre estará limitada pelo princípio da proporcionalidade.

Assim, na dogmática alemã, é conhecida a diferenciação entre o princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). No primeiro caso, o princípio da proporcionalidade funciona como parâmetro de aferição da constitucionalidade das intervenções nos direitos fundamentais como proibições de intervenção. No segundo, a consideração dos direitos fundamentais como imperativos de tutela (Canaris) impõe ao princípio da proporcionalidade uma estrutura diferenciada. O ato não será adequado quando não proteja o direito fundamental de maneira ótima; não será necessário na hipótese de existirem medidas alternativas que favoreçam ainda mais a realização do direito fundamental; e violará o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito se o grau de satisfação do fim legislativo for inferior ao grau em que não se realiza o direito fundamental de proteção. (...)

Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. A ideia é a de que a intervenção estatal por meio do Direito Penal, como ultima ratio, deve ser sempre guiada pelo princípio da proporcionalidade.

A reserva de lei penal configura-se como reserva legal proporcional (Vorbehalt des verhältnismässigen Gesetzes): a proibição de excesso (Übermassverbot) funciona como limite máximo, e a proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot), como limite mínimo da intervenção legislativa penal. Abre-se, com isso, a possibilidade de controle da constitucionalidade da atividade legislativa em matéria penal.

Sua posição foi acompanhada pelos Ministros Carlos Britto e Sepúlveda Pertence e, quanto ao crime de disparo de arma de fogo, pelo Ministro Marco Aurélio. Ainda com relação à Lei 10.826/03, os mandados implícitos de criminalização e a vedação de proteção penal insuficiente fundamentaram decisão unânime da 2ª Turma no HC 104.410-RS, considerando constitucional a criminalização do porte de arma de fogo desmuniciada.

No julgamento da ADI 3.096, considerou o STF que o teor literal da norma do art. 94 do Estatuto do Idoso era desproporcional e feria a isonomia ao tutelar os idosos vítimas de crimes de forma insuficiente, declarando sua inconstitucionalidade parcial para excluir a aplicação de medidas despenalizadoras e de interpretação benéfica a autores de crimes praticados contra idosos.

No julgamento do HC 106.212, considerou constitucional a vedação de aplicação de institutos despenalizadores aos crimes praticados com violência doméstica contra a mulher. Em seguida, analisando a ADI 4.424 e a ADC 19, sobre a mesma lei, declarou sua constitucionalidade, afirmando o Ministro Luiz Fux a existência de “deveres de proteção (Schutzpflichten) dos direitos fundamentais” “também por medidas de caráter criminal”, consignando que, “como o Direito Penal é o guardião dos bens jurídicos mais caros ao ordenamento, a sua efetividade constitui condição para o adequado desenvolvimento da dignidade humana, enquanto a sua ausência demonstra uma proteção deficiente dos valores”. E concluiu: “a impunidade dos agressores acabava por deixar ao desalento os mais básicos direitos das mulheres, submetendo-as a todo tipo de sevícias, em clara afronta ao princípio da proteção deficiente (Untermassverbot)”.

De forma semelhante, o Ministro Gilmar Mendes asseverou que o texto constitucional, mais do que recomendar, determinava uma ação positiva do legislador para proteger as mulheres vítimas de violência doméstica, enquanto o Ministro Celso de Mello afirmou que o dever de tutela se assentava na Constituição, bem como na Convenção de Belém do Pará para prevenir, punir e erradicar toda a forma de violência contra a mulher. A Ministra Rosa Weber ressaltou que o propósito era afirmar “um sistema de persecução e punição minimamente eficaz” de tais crimes, devendo o Estado criar mecanismos para coibir a violência doméstica, fazendo menção ao julgado Opuz v. Turquia, da Corte Europeia de Direitos do Homem, que considerou inválida a retratação automática e reiterada da vítima de violência doméstica frente à Convenção Europeia de Direitos Humanos, exigindo os deveres de proteção dos direitos humanos que a persecução penal pudesse ocorrer de ofício em determinadas hipóteses de violência doméstica. O relator, Ministro Marco Aurélio, aduziu que, “sob a óptica constitucional, a norma também é corolário da incidência do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais”, concretizando os preceitos contidos na Carta da República, retirando “da invisibilidade e do silêncio a vítima de hostilidades”.

A vedação à proteção penal insuficiente ainda fundamentou a suspensão do curso da prescrição penal durante a suspensão processual por repercussão geral (art. 1.035 do CPC) no RE 966.177-RG-QO. Consta do v. acórdão:

[...] 4. A suspensão do prazo prescricional para resolução de questão externa prejudicial ao reconhecimento do crime abrange a hipótese de suspensão do prazo prescricional nos processos criminais com repercussão geral reconhecida.

5. A interpretação conforme a Constituição do art. 116, I, do CP funda-se nos postulados da unidade e da concordância prática das normas constitucionais, isso porque o legislador, ao impor a suspensão dos processos sem instituir, simultaneamente, a suspensão dos prazos prescricionais, cria o risco de erigir sistema processual que vulnera a eficácia normativa e a aplicabilidade imediata de princípios constitucionais.

6. O sobrestamento de processo criminal sem previsão legal de suspensão do prazo prescricional impede o exercício da pretensão punitiva pelo Ministério Público e gera desequilíbrio entre as partes, ferindo prerrogativa institucional do Parquet e o postulado da paridade de armas, violando os princípios do contraditório e do due process of law.

7. O princípio da proporcionalidade opera tanto na esfera de proteção contra excessos estatais quanto na proibição de proteção deficiente; in casu, flagrantemente violado pelo obstáculo intransponível à proteção de direitos fundamentais da sociedade de impor a sua ordem penal.

A questão foi novamente debatida na ADI 5.874, tendo a Ministra Cármen Lúcia e os Ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Luiz Fux considerado que o Decreto nº 9.246/2017, que concedia indulto, violava a vedação da proteção penal deficiente, por propiciar punições desproporcionalmente reduzidas a crimes graves como corrupção, peculato, lavagem de dinheiro, dentre outros, tendo os efeitos do decreto sido suspensos liminarmente por decisão da Ministra Cármen Lúcia, que consignou:

16. Mostra-se plausível, ainda, a alegação de afronta ao princípio da proporcionalidade, vinculada à proibição de se negar a proteção suficiente e necessária de tutela ao bem jurídico acolhido no sistema para garantia do processo penal. Tanto se comprova pela circunstância de os dispositivos impugnados parecerem substituir a norma penal garantidora da eficácia do processo, afrontando a finalidade e superando os limites do indulto. Invade-se, assim, competência típica e primária dos Poderes Legislativo e Judiciário.

Também o princípio da proporcionalidade consubstanciado na proibição de proteção deficiente parece afrontado pelos dispositivos impugnados na presente ação direta de inconstitucionalidade, porque dão concretude à situação de impunidade, em especial aos denominados “crimes de colarinho branco”, desguarnecendo o erário e a sociedade de providências legais voltadas a coibir a atuação deletéria de sujeitos descompromissados com valores éticos e com o interesse público garantidores pela integridade do sistema jurídico.

No julgamento da ADO 26 e do MI 4.733, o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu nos mandados constitucionais de criminalização dos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição eficácia para determinar a subsunção da homofobia e da transfobia nos tipos penais de racismo definidos pela Lei 7.716/89, [17] reconhecendo a mora do Congresso Nacional em criminalizar tais condutas, firmando tese jurídica no sentido de que:

1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08.01.1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, in fine).

2. A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento, e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e a respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.

3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito.

Igualmente, no HC 123.971, o Ministro Roberto Barroso destacou que

a redação original do art. 225 do Código Penal já previa situações excepcionais autorizadoras da utilização da ação penal pública (carência material da vítima e abuso do pátrio poder). Além da já mencionada Súmula 608 do STF, que também permitia o oferecimento de denúncia nos crimes de estupro com violência real. De modo que o risco de absoluta desproteção da menor na concretude da causa pode, e deve, constituir exceção pontual a autorizar a manutenção da decisão impugnada, com base em fundamento diretamente constitucional.

Assim, concluiu,

para evitar tal consequência, e tendo em vista a excepcionalidade da causa, o art. 227 da CF/88, aliado à vedação da proteção deficiente, que é específica manifestação do princípio da proporcionalidade em matéria penal, paralisa a incidência do art. 225 do Código Penal, na redação originária. Fica legitimada, assim, a ação penal pública ajuizada na concreta situação dos autos, nos termos da regra geral prevista no art. 100 do Código Penal.

Constata-se, pois, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo, de forma sólida, firme e reiterada, o caráter dúplice dos direitos fundamentais e a existência de deveres de proteção suficiente, inclusive pelo meio penal, diante de atos ilícitos que atentem gravemente contra direitos e valores fundamentais assegurados na Carta Constitucional.

Por outro lado, os elementos emocionais, psicológicos, ideológicos, classistas, raciais, de gênero e sociológicos que confluem no íntimo de cada um dos jurados no momento da deliberação do veredicto são insindicáveis, não se podendo admitir, em um Estado Democrático de Direito, que a simples vontade de absolver, seja pela empatia com o matador, seja por aversão à vítima, não seja passível de controle.

Assim, faz-se necessário ao menos permitir-se o cotejo da absolvição geradora de impunidade de uma violação que ceifou o direito fundamental à vida de uma ou mais pessoas com o conjunto probatório coligido nos autos e, caso o veredicto seja manifestamente contrário à prova, deve ser passível de ser cassado para que se devolva o feito ao Tribunal do Júri, que deliberará soberanamente.

Voltaremos a tal questão após a análise da jurisprudência dos tribunais internacionais de direitos humanos.

3 A tutela penal como meio de proteção dos direitos humanos na jurisprudência das Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos

Como asseverado, as Cortes Interamericana e Europeia de Direitos Humanos também construíram firme jurisprudência exigindo adequada investigação, persecução e processo penal para ilícitos que importem em violações de direitos humanos, de forma a se assegurar um efeito útil à norma convencional. [18] Assim, mais que a edição de norma penal criminalizante, as decisões dos tribunais internacionais de direitos humanos cobram um concreto e adequado exercício do jus puniendi, sindicando a presteza e a eficiência das medidas concretamente adotadas pelas autoridades estatais e a amplitude de direitos assegurados às vítimas (e a seus familiares) durante todas as fases da investigação e do processo, de forma a verificar se lhes foi concedido recurso efetivo para a tutela dos direitos humanos violados.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, desde sua primeira sentença de mérito no caso Velásquez-Rodríguez v. Honduras, em 1988, reconheceu na Convenção Americana de Direitos Humanos um dever estatal de investigar e sancionar aqueles que tenham violado direitos humanos, em hipótese de desaparecimento de um estudante preso pelas forças armadas. [19]

Em Chumbipuma Aguirre v. Peru (Barrios Altos), a Corte Interamericana consignou serem inadmissíveis as disposições de autoanistia, prescrição e excludentes de responsabilidade para responsáveis por execuções sumárias, torturas e desaparecimentos forçados, em hipótese de chacina praticada por um esquadrão da morte, indicando as investigações a participação de agentes públicos.

Em Almonacid Arellano v. Chile, La Cantuta v. Peru, Gomes Lund v. Brasil e Herzog v. Brasil, [20] a Corte IDH considerou não ser válida a incidência de anistia, de prescrição ou mesmo de coisa julgada absolutória tida como fraudulenta para obstar (novo) exercício do jus puniendi diante de graves violações de direitos humanos praticadas por agentes de regimes autoritários.

Porém, o reconhecimento de obrigações positivas em matéria penal nas cortes internacionais de direitos humanos não se limita à Justiça de transição ou a fatos praticados por agentes de regimes ditatoriais, sendo aplicáveis também a fatos praticados em ambiente democrático e mesmo por particulares. [21]

Com efeito, em Villagrán Morales (Niños de la Calle) v. Guatemala, a Corte IDH condenou aquele Estado porque não teria agido de forma eficiente para promover a persecução e o processo penal em face dos responsáveis por tortura e chacina de adolescentes em situação de rua, considerando inadequadas as autópsias, as perícias de local, a falta de oitiva de testemunhas referidas e a forma de valoração da prova no processo penal, determinando a reabertura das investigações.

Nos casos dos massacres de Pueblo Bello, Ituango e da Rochela v. Colômbia, relativos a execuções arbitrárias promovidas por grupos armados paramilitares, de autodefesa ou ligados a latifundiários, a Corte Interamericana afirmou que a proteção devida assegurada na CADH implicava obrigações positivas de impedir que terceiros perpetrem violações contra civis, fixando-se parâmetros mínimos de proteção e exigindo-se a remoção dos obstáculos de fato e de direito que mantinham a impunidade.

Em Ximenes Lopes v. Brasil, a Corte Interamericana condenou o país pela falta de prevenção e repressão penal adequada a tortura e maus tratos verificados em clínica psiquiátrica conveniada ao SUS, considerando violado o dever estatal de agir para impedir violações à vida e à integridade física e psíquica e de investigar atos que violem direitos fundamentais, reputando que o trâmite do processo penal por seis anos em primeira instância ofendia o direito dos familiares da vítima a um recurso judicial efetivo.

Em Garibaldi v. Brasil, a Corte Interamericana considerou que a falta de diligente investigação e persecução de homicídio de trabalhador sem terra praticado por homens encapuzados que expulsavam famílias acampadas em imóvel rural violava a CADH e que tão só a demora no desenvolvimento do inquérito policial violava o direito dos familiares da vítima a obter resposta judicial em face do homicídio, considerando irrazoável e violatória da CADH o decurso de cinco anos sem a identificação e o início da persecução dos responsáveis.

Em González e outras (Campo Algodonero) v. México, a Corte IDH condenou aquele país por falhas na prevenção e na investigação penal de desaparecimentos, estupros e feminicídios de três jovens, determinando que fossem criados protocolos e critérios de investigação e perícia forense com relação a tais crimes e que fossem promovidos a investigação e o processamento penal célere dos fatos.

Em Fazenda Brasil Verde v. Brasil, a Corte Interamericana condenou o Brasil pela demora na persecução e no processamento penal de hipótese de trabalho escravo e pela sucessiva extinção do feito em decorrência da prescrição.

Também a Corte Europeia de Direitos do Homem reconhece deveres de tutela penal dos direitos humanos assegurados na respectiva convenção. [22] Assim é que, em X. e Y. v. Países Baixos, considerou a impossibilidade processual de persecução penal de estupro de vulnerável (diante da inexistência de representantes legais da vítima incapaz) violatória do dever estatal de proteção à liberdade sexual, consagrado na convenção europeia.

Depois, em A. v. Reino Unido, considerou que a amplitude da discricionariedade concedida aos jurados na apreciação da causa de exclusão da ilicitude da razoabilidade dos castigos (reasonable chastisement) violava o dever de proteção contra a tortura previsto na Convenção, diante de maus tratos de padrasto contra enteado. Posteriormente, o país reconheceu a insuficiência da proteção penal dada a menores contra maus tratos e reformulou seu ordenamento interno.

A necessidade de investigação eficiente de execuções extrajudiciais, esquadrões da morte e desaparecimentos forçados e de combate à sua impunidade foi objeto de decisão na Corte Europeia nos casos Osman v. Reino Unido, Mahmut Kaya v. Turquia e Kurt v. Turquia.

De forma semelhante à Corte Interamericana, a Corte Europeia considerou que a tortura e as execuções sumárias eram incompatíveis com a concessão de anistia ou graça e com a incidência da prescrição, conforme Abdülsamet Yaman v. Turquia e Mocanu e outros v. Romênia.

A Corte de Estrasburgo considera, outrossim, que o âmbito de licitude do uso da força por agentes públicos é restringido pela Convenção Europeia, consignando em Makaratizis v. Grécia e Nachova v. Bulgária que as causas de justificação do estrito cumprimento do dever legal e da legítima defesa não poderiam desconsiderar a exigência de proporcionalidade e moderação, o que deveria ser objeto de apuração exauriente.

A possibilidade de sucessivas retratações da persecução penal em hipótese de violência doméstica foi considerada violatória à Convenção em Opuz v. Turquia, citado no julgamento da ADI 4.424 e da ADC 19 (Lei Maria da Penha).

Por fim, interessantes precedentes foram firmados em Siliadin v. França, Okkali v. Turquia, Gäfgen v. Alemanha e Nikolova e Velichkova v. Bulgária, estabelecendo a Corte Europeia de Direitos do Homem que a falta de tipificação, persecução e punição proporcional de fatos caracterizadores de servidão forçada, maus tratos, tortura e homicídio constituíam violações do dever de proteção penal contra tais fatos, reconhecido na Convenção Europeia de Direitos Humanos. Ainda que a Corte tenha afirmado que não lhe caberia estipular parâmetros mínimos e máximos de pena, tarefa do legislador nacional, assentou que a imposição de curta sanção privativa de liberdade simultaneamente objeto de suspensão condicional (sursis) ou de multa pecuniária violava a Convenção Europeia de Direitos Humanos, que exige sanção minimamente proporcional à gravidade dos fatos para inibir novas violações aos direitos humanos convencionalmente assegurados.

Vale dizer, tanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos quanto a europeia têm firme jurisprudência exigindo adequada investigação, persecução e processamento de violações a direitos e valores protegidos nas respectivas convenções. Tais mandados de criminalização, fundados na proteção internacional dos direitos humanos, impõem limites a anistias, indultos e clemências e à incidência da prescrição e de causas justificantes (cumprimento de dever legal) e exculpantes (obediência hierárquica) no que tange a execuções sumárias, chacinas e tortura, por exemplo.

4 Mandados implícitos de criminalização, obrigações processuais penais positivas e a imposição de controle sobre a clemência arbitrária (manifestamente contrária à prova dos autos)

Em consequência da doutrina e da jurisprudência expostas, tanto do Supremo Tribunal Federal quanto das principais cortes internacionais de direitos humanos, impõe-se a necessidade constitucional e internacional da recorribilidade do mérito dos veredictos absolutórios do Tribunal do Júri.

Veja-se: dizer que a soberania dos veredictos impede a possibilidade de apelação contra decisão absolutória manifestamente contrária à prova dos autos equivale a afirmar que a impunidade de assassinatos pode ser definitivamente concedida por mera vontade do jurado leigo, por fatores metajurídicos, culturais, ideológicos, raciais ou econômicos.

Em nossa concepção, não é compatível com o Estado Democrático de Direito tornar irrecorrível a impunidade de homicídios pela mera empatia dos jurados com os réus e pela possível antipatia ou aversão pelas vítimas sem que se conceda a possibilidade de o tribunal de 2º grau cassar o veredicto manifestamente contrário à prova dos autos e devolver a questão ao Tribunal do Júri para novo e soberano julgamento (conforme art. 593, III, d, do CPP).

A Constituição e as convenções internacionais de direitos humanos (como a Convenção Americana de Direitos Humanos e todo seu corpus juris) não autorizam a impunidade, por mera empatia com quem mata, de chacinas como as da Candelária e de Vigário Geral, de torturas conexas a homicídios, de assassinatos como os de Chico Mendes, Dorothy Stang, Marielle Franco ou da Juíza Patrícia Acioli, de homicídios decorrentes de pistolagem, de execuções sumárias de moradores pelos tribunais do narcotráfico ou pelas milícias, de crimes de ódio praticados por motivos homofóbicos, racistas, de intolerância religiosa ou outras razões torpes ou fúteis, de execuções de policiais militares, políticos e lideranças camponesas e de homicídios de trabalhadores sem terra, adolescentes infratores, detentos e pessoas em situação de rua, ou mesmo de qualquer cidadão ou ser humano em território brasileiro.

Impedir-se que o tribunal de 2º grau possa conhecer recurso de mérito contra veredicto absolutório manifestamente contrário à prova dos autos significa outorgar aos jurados uma livre e arbitrária faculdade de tornar impunes tais fatos, por sua mera vontade ou empatia com os homicidas (ou antipatia e aversão às vítimas).

Negar a possibilidade de recurso pro societate é permitir que mundividências ocultas sob o manto da íntima convicção, conscientes ou não, agraciem com impunidade, dentre outros, homicídios praticados contra grupos vulneráveis, minorias, contra pessoas com antecedentes criminais, ou mesmo contra vítimas em posição de destaque político, jurídico e social.

Não se pode olvidar que o poder punitivo estatal pode ser usado de modo arbitrário tanto mediante seu exercício como por omissão, [23] deixando indefesas as vítimas hipossuficientes ante seus agressores, em especial quando detentores de poder local (político, militar, paramilitar, econômico etc.), beneficiados pela cumplicidade, pela tolerância ou pela empatia do poder público.

O Estado Democrático de Direito exige que os poderes de Estado ajam (positivamente, portanto) para evitar coonestar violações de direitos humanos, estabelecendo freios e contrapesos, em atendimento aos mandados constitucionais de criminalização e às obrigações positivas fundadas no Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Veja-se que o juízo de clemência não é passível de ser conforme ou contrário à prova dos autos, senão a absolvição do réu que o é. Uma decisão de clemência encerra um juízo de dever-ser (o que deve ser feito com o homicida?), e não propriamente fático (se praticou ou não o crime), que é o objeto da prova dos autos e do veredicto dos jurados. Ainda que haja certo âmbito de discricionariedade do jurado na apreciação da prova dos autos, sua vontade não pode ser absoluta, sob pena de converter-se em arbítrio. Cabe, pois, ao legislador, com os limites mínimo e máximo trazidos pela Constituição e pelo Direito Internacional, estabelecer as respectivas sanções e hipóteses de justificantes e exculpantes, qualificadoras, minorantes e, excepcionalmente, de sursis, e garantir as possibilidades de recurso caso o veredicto seja manifestamente contrário à prova dos autos.

É de se recordar que a impunidade de violações de direitos humanos propicia a total vulnerabilidade das vítimas e de seus familiares, a invisibilidade das lesões e a perpetuação do terror, da lei do silêncio, da vingança privada e da resignação da população carente a não ter direitos, [24] gerando ausência de proteção à população não privilegiada, descrédito da Justiça e desconfiança do povo a respeito das instituições estatais. [25]

Com as devidas vênias aos entendimentos diversos, no dia em que a íntima convicção pudesse coonestar, de forma manifestamente contrária à prova dos autos e impassível de controle pelo tribunal ad quem, sentimentos empáticos àqueles que ceifaram dolosamente a vida alheia, o Tribunal do Júri se converteria em órgão de legitimação do extermínio das vidas antipáticas às visões dos julgadores leigos: seja por terem antecedentes criminais, seja por serem usuárias de drogas, por serem partidárias de ideologias diversas, por serem policiais, camponeses ou políticos. Legitimar-se-ia a homofobia, o feminicídio, o assassinato e a pistolagem, pela mera vontade ou simpatia de quatro dos jurados com os agressores.

Evidentemente, tal situação não se coaduna com a Constituição brasileira nem com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, que exigem mecanismos de freios e contrapesos para o exercício das funções estatais, inclusive a judiciária. [26]

No âmbito processual penal dos crimes dolosos contra a vida, tal mecanismo é provido pela possibilidade de recurso do Ministério Público contra decisões absolutórias que sejam manifestamente contrárias às provas dos autos, na forma do art. 593, III, d, do CPP.

Embora, no ponto, estivesse (com absoluta razão) fazendo críticas a posicionamento de seu maestro, Luigi Ferrajoli, Alexander Araújo de Souza corretamente relembra que

Ferrajoli sustenta firmemente, como uma das premissas do sistema garantista, a possibilidade de controle das decisões judiciais por ambas as partes, o que deriva da necessidade irrefutável de motivação das decisões. [27] Ora, se o juiz souber, de antemão, que possível sentença de absolvição que ele venha a prolatar não poderá ser contestada por intermédio de recurso do Ministério Público (e, por conseguinte, também do ofendido), isso poderá gerar, para o juiz, a certeza de que lhe foi conferido um poder (de absolver) sem qualquer tipo de controle. Nesse contexto, cumpre remarcar que Ferrajoli sustenta, de maneira irrestrita, citando a célebre passagem de Montesquieu, que todo poder, inclusive o jurisdicional, precisa de limites e de controles: “c’est une expérience éternelle que tout homme qui a du pouvoir est porte à en abuser; il va jusqu’à ce qu’il trouve des limites. Qui le diroit! La vertu même a besoin de limites”. [28]

Daí se vê, com mais razão ainda, no caso submetido ao tribunal popular, que, sabendo de antemão que suas decisões não poderão ser revistas em nenhuma hipótese de “clemência”, está-se concedendo verdadeira carta branca aos julgadores para decidirem de qualquer maneira, ou, noutras palavras, até arbitrariamente.

Dessa forma, as normas constitucionais e internacionais que exigem a proteção dos direitos humanos devem orientar e condicionar a interpretação da legislação ordinária, excluindo-se da interpretação conjugada do art. 483, III e § 2º, e do art. 593, III, d, do CPP qualquer espaço para concessão de clemência irreversível no âmbito do Tribunal do Júri, por mero voluntarismo do corpo de jurados e empatia com o homicida ou antipatia com a vítima, sendo facultado o recurso de mérito por manifesta contrariedade à prova dos autos, na forma do art. 593, III, d e § 3º, do CPP, contra veredicto absolutório ou condenatório.

5 Da arbitrariedade da clemência e de sua vedação constitucional para crimes hediondos

Em rigor, a própria clemência em si, ainda que passível de recurso, é de ser questionada, na medida em que atua em contrariedade ao Estado de Direito e à separação de poderes: o legislador estabeleceu hipóteses numerus clausus de perdão judicial e perdão do ofendido (na ação penal privada) como causa de extinção da punibilidade (e não de absolvição!), e estabeleceu o privilégio do § 1º do art. 121 do Código Penal como causa de redução de pena nas hipóteses de homicídio praticado por relevante valor moral ou social ou sob violenta emoção logo após injusta provocação da vítima.

Se a lei estabelece redução de pena, não haveria o Judiciário de impor absolvição e impunidade. Veja-se, a subjetividade absoluta da clemência por exclusiva íntima convicção nega cientificidade ao Direito e viola o princípio da isonomia, permitindo como regra que o Estado dê soluções diversas a situações idênticas – e por razões intangíveis (às vezes inconfessáveis, outras até mesmo inconscientes) –, tolhendo a proteção constitucional e convencionalmente exigida ao direito à vida. [29]

Por outro lado, se a lei admite o perdão judicial em hipóteses estritas como o homicídio culposo no qual as consequências do crime atinjam o próprio agente de forma impactante (art. 121, § 5º, do CP), tal excepcional perdão extintivo da punibilidade tampouco se confunde com absolvição, nem pode ser transposto acriticamente para os crimes dolosos contra a vida. Aqui, há vontade de violar diretamente o bem jurídico maior, a vida, evidenciando maior grau de reprovabilidade, tornando imprópria a analogia com o homicídio culposo. [30]

Também as hipóteses de suposta desnecessidade de pena são reguladas por lei, por meio da suspensão condicional da pena, prevista no art. 77 do CP. Tal hipótese pode ser aplicável no Tribunal do Júri apenas com relação a homicídio tentado privilegiado ou aborto, quando a pena poderia ser fixada em montante igual ou inferior a dois anos, ou se o réu dispuser de idade avançada ou saúde precária, circunstâncias já consideradas pelo legislador, nos casos em que a pena fosse fixada até o limite máximo de quatro anos. Tais situações, porém, já foram reguladas pela lei de forma expressa, não cabendo ao Judiciário substituir-se ao legislador, sob pena de violação da isonomia e da separação de poderes. [31]

Outorgando o júri uma absolvição empática ao homicida, sequer a verdade real dos fatos poderia ser contada por familiares da vítima sem que incidissem em crime de calúnia, visto que vedada a exceção da verdade se o réu houver sido absolvido em crime de ação penal pública (art. 138, § 3º, III, do CP). Perceba-se: a vítima é assassinada, seu algoz permanece impune por razões metajurídicas ou mero voluntarismo do corpo de jurados e sequer sua memória poderá ser preservada, impedindo-se que se conte como morreu ou quem a matou, sem que se incorra em crime. [32]

Mesmo em sistemas jurídico-penais costumeiros, nos quais não vige o princípio da legalidade nem o da obrigatoriedade (mesmo que mitigada) da ação penal pública e há larga discricionariedade para negociação de penas e possibilidade de renúncia ao julgamento e imediato cumprimento de longa pena privativa de liberdade, em que se atribui responsabilidade penal até a crianças e não há vedação à aplicação de penas de morte ou perpétua (mas, ao revés, sua previsão ocorre exatamente em condenações por homicídio qualificado), como nos Estados Unidos e na Inglaterra, razões pelas quais [33] o júri ali pode funcionar como juiz dos fatos e do direito, a prática de veredictos absolutórios ou benevolentes contrários às provas dos autos não é isenta de críticas, por não ser imune ao viés classista e racista. [34]

Tantas são as diferenças históricas, sociais, jurídico-constitucionais e penais dos Estados Unidos e da Inglaterra para nosso país [35] que não faz qualquer sentido pretender ignorá-las por completo, para importarmos acriticamente a outorga ao júri de um juízo não apenas fático, mas também jurídico sobre o ordenamento.

Certamente, não há sentido algum em admitir essa premissa de clemência irrestrita, sobretudo em nosso país, recordista mundial de homicídios (com mais de 50.000 mortes anuais), em que grande parte dos fatos decorre da ação da criminalidade organizada, de milícias e de grupos de extermínio, [36] muito menos isso se coaduna e compatibiliza com o princípio republicano, o dever de proteção aos direitos humanos e a ordem integral de valores consagrados na Constituição.

Ademais, no caso dos crimes hediondos, violar-se-ia, ainda, mandado expresso de criminalização trazido pelo art. 5º, XLIII, da Constituição, determinando maior rigor penal contra a tortura, o tráfico de entorpecentes, o terrorismo e os crimes hediondos e vedando a concessão de qualquer espécie de graça (lato sensu) aos mandantes, aos executores e aos que, podendo evitá-los, se omitirem.

Em suma, sendo fiel à Constituição e ao ordenamento jurídico pátrio, não seria lícito ao Tribunal do Júri absolver por clemência, empatia ou antipatia, ou outras razões metajurídicas, mesmo que tal veredicto se sujeite ao controle do recurso de mérito do art. 593, III, d, do CPP. Assim, deve tal âmbito de interpretação ser afastado da norma do art. 483, III e § 2º, do CPP, por interpretação conforme sem redução de texto, diante dos princípios constitucionais do devido processo legal, da isonomia, da separação de poderes e do dever de tutela penal do direito fundamental à vida.

A hipótese de afirmação dos dois primeiros quesitos (materialidade e autoria) e de absolvição do réu, quando a negativa de autoria for a única tese jurídica defensiva, ensejaria a nulidade do julgamento por contradição entre os quesitos, desafiando recurso do art. 593, III, a, do CPP, ou interpretação constitucional do art. 483, III e § 2º, no sentido da dispensabilidade do terceiro quesito nessa situação.

6 Considerações finais

a) No paradigma do Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais positivados na norma constitucional, assim como os direitos humanos reconhecidos na ordem internacional, têm natureza dúplice, não se esgotando nos direitos de defesa contra o Estado, mas exigindo também necessários deveres de proteção (Schutzpflichten) por parte do Estado, inclusive por intermédio do Direito Penal.

b) A Constituição brasileira, como reconhecido pela sólida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, veicula mandados implícitos e explícitos de criminalização, vedando a proteção penal deficiente de bens jurídicos que espelhem direitos humanos fundamentais (vide ADI 3.096, ADI 4.424, ADC 19, RE 966.177-RG-QO, ADI 5.874, ADO 26 e MI 4.733).

c) O Direito Internacional dos Direitos Humanos, como reconhecido pela reiterada jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Europeia de Direitos Humanos, traz obrigações processuais penais positivas dos Estados, para garantia de efeito útil aos direitos assegurados nas convenções internacionais, informando a interpretação do texto constitucional, diante do constitucionalismo de cooperação e da internacionalização do Direito Constitucional (cf. CRFB, art. 4º, II, e ADCT, art. 7º).

d) Os artigos 1.1, 8.1 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos e a reiterada jurisprudência da Corte Interamericana impõem obrigações processuais penais positivas, ou mandados implícitos de criminalização decorrentes do direito internacional, determinando a adequação das atividades de persecução e processamento penal a padrões mínimos que garantam às vítimas e a seus familiares o acertamento dos fatos, o julgamento em tempo adequado e o sancionamento minimamente proporcional de responsáveis por violações de direitos humanos, sejam elas praticadas por agentes públicos, sejam por particulares, vedando a concessão de graça, indulto ou anistia.

e) A vedação de recurso de mérito (art. 593, III, d, do CPP) contra veredicto absolutório fundado no art. 483, III, do CPP importa em violação a mandados implícitos de criminalização e obrigações processuais penais positivas dos direitos humanos, ao outorgar aos jurados direito potestativo irrecorrível para conceder, arbitrariamente, impunidade a violações dolosas do direito à vida por razões metajurídicas (como empatia pelo homicida ou aversão às suas vítimas e preconceitos, conscientes ou não, de classe, raça, gênero, orientação sexual, podendo se prestar até a legitimar motivações eugênicas e crimes de ódio contra vítimas vulneráveis), não sendo compatível com o Estado Democrático de Direito.

f) A clemência diz respeito a juízo de dever-ser (o que se deve fazer com o homicida), não sendo passível de contrariedade ou conformidade à prova dos autos (juízo fático), não sendo facultada por lei (nem pela ordem constitucional e internacional) para crimes dolosos contra a vida. Resultando, porém, a resposta ao quesito defensivo genérico (art. 483, III, do CPP) em absolvição manifestamente contrária à prova dos autos, o veredicto necessariamente deve ser passível de recurso, para possibilitar controle (freios e contrapesos) de hipotética clemência arbitrária, na forma do art. 593, III, d, do CPP.

g) Em rigor, deve ser excluída do âmbito normativo do inciso III e do § 2º do art. 483 do CPP, mediante interpretação conforme sem redução de texto, qualquer possibilidade de que a absolvição seja fundada em mera clemência por parte do corpo de jurados, por violação ao devido processo legal, à separação de poderes, ao princípio da isonomia e, com relação a crimes hediondos e equiparados, ao mandado expresso de criminalização do art. 5º, XLIII, da CRFB, sendo dispensada a formulação do terceiro quesito quando a tese de defesa fundar-se exclusivamente na negativa de autoria e o júri houver reconhecido a materialidade e a autoria nos dois primeiros quesitos.

Conclusões

Impõe-se que o veredicto decorrente da íntima convicção, ante a insindicabilidade de suas razões, possa ser cotejado pelo tribunal de 2º grau quanto à sua manifesta contrariedade à prova dos autos, como mecanismo mínimo de freios e contrapesos a evitar a clemência arbitrária a homicidas, que nulifica o valor do direito humano à vida, objeto de especial dever de proteção penal na ordem constitucional e internacional, por meio de mandados implícitos de criminalização e das obrigações positivas em matéria penal.

Em rigor, a clemência em si constitui violação à separação de poderes, à isonomia, à legalidade e ao devido processo legal, e é vedada de qualquer sorte para crimes hediondos e assemelhados, devendo ser realizada interpretação conforme do art. 483, III e § 2º, do CPP no sentido da não formulação do quesito quando a única tese jurídica defensiva seja a negativa de autoria.

 


Referências bibliográficas

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Sentenças referidas da Corte Interamericana de Direitos Humanos

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Chumbipuma Aguirre e outros (Barrios Altos) c. Peru, Mérito, sentença de 14 de março de 2001, Série C, n. 75.

Garibaldi c. Brasil, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 23 de setembro de 2009, Série C, n. 203.

Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) c. Brasil, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 24 de novembro de 2010, Série C, n. 219.

Gonzáles e outras (“Campo Algodonero”) c. México, Exceção Preliminar, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 16 de novembro de 2009, Série C, n. 205.

Herzog e outros c. Brasil, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 15 de março de 2018, Série C, n. 353.

La Cantuta c. Peru, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 29 de novembro de 2006, Série C, n. 162.

Massacre da Rochela c. Colômbia, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 11 de maio de 2007, Série C, n. 163.

Massacre de Pueblo Bello c. Colômbia, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 31 de janeiro de 2006, Série C, n. 140.

Massacres de Ituango c. Colômbia, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 1 de julho de 2006, Série C, n. 148.

“Ninõs de la Calle” (Villagrán Morales e outros) c. Guatemala, Reparações e Custas, sentença de 26 de maio de 2001, Série C, n. 77.

Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde c. Brasil, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 20 de outubro de 2016, Série C, n. 318.

Velásquez Rodrigues c. Honduras, Mérito, sentença de 29 de julho de 1988, Série C, n. 4.

Ximenes Lopes c. Brasil, Mérito, Reparações e Custas, sentença de 4 de julho de 2006, Série C, n. 149.

Sentenças referidas da Corte Europeia de Direitos Humanos

A. v. Reino Unido (25.599/94). Julgamento em 23.09.1998. ECHR, 1998-VI.

Abdulsamet Yaman v. Turquia (32.446/96). Julgamento em 02.11.2004.

Gäfgen v. Alemanha (22.978/05). Grand Chamber, julgamento em 03.06.2010.

Kurt v. Turquia (24.276/94). Julgamento em 25.05.1998. Recueil 1998, III.

Mahmut Kaya v. Turquia (22.535/93). Julgamento em 28.03.2000. ECHR, 2000, III.

Makaratzis v. Grécia (50.385/99). Julgamento em 20.12.2004. ECHR, 2004-XI.

Mocanu e outros v. Romênia (10.865/09, 45.886/07 e 32.431/08). Julgamento em 17.09.2014. RJD 2014.

Nachova v. Bulgaria (43.577/98 e 43.579/98). Julgamento em 06.07.2005. ECHR, 2005-VII.

Nikolova e Velichkova v. Bulgaria (7.888/03). Primeira Seção. Julgamento de 20.12.2007.

Okkali v. Turquia (52.067/99). Julgamento em 17.10.2006. RJD 2006-XII.

Opuz v. Turquia (33.401/02). Terceira Seção. Julgamento em 09.06.2009.

Osman v. Reino Unido (23.452/94). Julgamento em 28.10.1998. ECHR, 1998-VIII.

Siliadin v. França (73.316/01). Julgamento em 26.07.2005. ECHR, RJD 2005-VII.

Taxquet v. Bélgica (926/05). Grand Chamber. Julgamento em 16.11.2010.

X e Y v. Países Baixos (8.978/80). Julgamento em 26.03.1985. A91.

Acórdãos e decisões do STF e do STJ

STF. Tribunal Pleno. HC 82.424-RS. Relator Min. Maurício Corrêa. Julgamento em 17.09.2003. DJ, 19.03.2004.

STF. Tribunal Pleno. RE 418.376. Relator Min. Marco Aurélio. Julgamento em 09.02.2006. DJ, 23.03.2007.

STF. Tribunal Pleno. ADI 3.112. Relator Min. Ricardo Lewandowski. Julgamento em 02.05.2007. DJe, 26.10.2007.

STF. Segunda Turma. HC 104.410. Relator Min. Gilmar Mendes. Julgamento em 06.03.2012. DJe, 27.03.2012.

STF. Tribunal Pleno. ADI 3.096. Julgamento em 16.06.2010. DJe, 03.09.2010.

STF. Tribunal Pleno. ADC 19-DF. Relator Min. Marco Aurélio. Julgamento em 09.02.2012. DJe, 29.04.2014.

STF Tribunal Pleno. ADI 4.424-DF. Relator Min. Marco Aurélio. Julgamento em 09.02.2012. DJe, 01.08.2014.

STF. Segunda Turma. RHC 108.970-DF. Relator Min. Ayres Britto. Julgamento em 09.08.2011. DJe, 19.12.2011.

STF. Tribunal Pleno. RE 966.177-RG-QO/RS. Relator Min. Luiz Fux. Julgamento em 07.06.2017. DJe-019, 01.02.2019.

STF. Tribunal Pleno. ADI 5.874-MC/DF. Relator Min. Roberto Barroso. Decisão liminar da presidência em 28.12.2017. DJe-018, 01.02.2018. Acórdão de mérito em 09.05.2019, pendente de publicação.

STF. Tribunal Pleno. ADO 26. Julgamento em 13.06.2019. Relator Min. Celso de Mello. Acórdão pendente de publicação.

STF. Tribunal Pleno. ARE 1.225.185-MG-RG. Relator Min. Gilmar Mendes. Julgamento em 07.05.2020. DJe, n. 155, 22.06.2020. Ata n. 13/2020.

STF. Segunda Turma. RHC 117.076. Relator Min. Celso de Mello. Decisão monocrática de 01.08.2019. DJe, n. 169, 05.08.2019.

STF. Primeira Turma. HC 170.559-MT. Relator Min. Marco Aurélio. Julgamento em 10.03.2020. Acórdão pendente de publicação. Redator p/ acórdão Min. Alexandre de Moraes.

STF. Primeira Turma. HC 146.672-DF. Relator Min. Marco Aurélio. Julgamento em 14.04.2020. Acórdão pendente de publicação. Redator p/ acórdão Min. Luiz Fux.

STF. Primeira Turma. AgRgHC 172.636-SP, Relator Min. Luiz Fux. Julgamento em 15.06.2020. DJe, 14.07.2020.

STJ. Terceira Seção. HC 313.251-RJ. Relator Min. Joel Ilan Paciornik. Julgamento em 28.02.2018. Public. 27.03.2018.

 


[2] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 63.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 6.

[4] Ibid., p. 11. Em sentido semelhante, v. DONELLY, Jack. Universal human rights in theory and practice. 3. ed. Ithaca/London: Cornell University Press, 2013. p. 35: “Nonetheless, a state that does no active harm itself is not enough. The state must also protect individuals against abuses by other individuals and private groups. The right to personal security, for example, is about safety against physical assaults by private actors, not just attacks by agents of the state. The state, although needing to be tamed, is today the principal institution we rely on to discipline social forces no less dangerous to the rights, interests and dignity of individuals, families and communities”.

[5] FISCHER, Douglas; PEREIRA, Frederico Valdez. Obrigações processuais penais positivas segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019. Também em FISCHER, Douglas. O que é garantismo (penal) integral? In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (org.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no Brasil. 4. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2017. p. 59-95.

[6] ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Mandados implícitos de criminalização: a tutela penal dos direitos humanos na Constituição e na Convenção Americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019; ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Obrigações positivas em matéria penal: efeitos e limites da jurisprudência interamericana em caso de violações de direitos humanos. In: NORONHA, João Otávio de; ALQUERQUE, Paulo Pinto de (org.). Comentário da Convenção Americana dos Direitos Humanos. 2020 (no prelo); GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados expressos de criminalização e a proteção dos direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. Belo Horizonte: Forum, 2007. p. 136-139; PALAZZO, Francesco C. Valores constitucionais e Direito Penal: um estudo comparado. Traduzido por Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1989. p. 77.

[7] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 408.

[8] ALESSANDRI, Pablo Saavedra. La respuesta de la jurisprudencia de la Corte Interamericana a las diversas formas de impunidad en casos de graves violaciones de derechos humanos y sus consecuencias. In: La Corte Interamericana de Derechos Humanos. Un cuarto de siglo: 1979-2004. San José: Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2005. p. 388; BESTAGNO, Francesco. Diritti umani e impunità. Obblighi positivi degli Stati in materia penali. Vita e pensiero. Milano, 2003. p. 55; RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 224-225.

[9] Supremo Tribunal Federal. Plenário. RE 466.343-1/SP, julgado em 03.12.2008.

[10] PIOVESAN, Flávia. Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos e a reforma do Poder Judiciário. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flávio (org.). Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 418-419.

[11] AMBOS, Kai; BÖHM, Maria Laura. Tribunal Europeo de Derechos Humanos y Corte Interamericana de Derechos Humanos. ¿Tribunal tímido y tribunal audaz? In: AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel; ELSNER, Gisela (ed.). Sistema interamericano de protección de los derechos humanos y Derecho Penal Internacional. Berlin/Montevideo: Georg-August-Universität-Göttingen, Konrad-Adenauer-Stiftung, Fundación Konrad-Adenauer, 2011. Tomo II; PIOVESAN, Flávia. Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos: hierarquia e incorporação à luz da Constituição brasileira. In: FABRIZ, Daury Cesar et al. (coord.). O tempo e os direitos humanos. Rio de Janeiro/Vitória: Lumen Juris, Acesso, 2011; SARMENTO, Daniel. Interpretação constitucional cosmopolita: nem provincianismo constitucional, nem imperialismo internacional. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/interpretacao-constitucional-cosmopolita-13042015. Acesso em: 06 jul. 2020. Vide, ainda, os votos dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello no julgamento do RE 466.343-1/SP, em 03 dez. 2008.

[12] ALESSANDRI, Pablo Saavedra. La respuesta de la jurisprudencia de la Corte Interamericana a las diversas formas de impunidad en casos de graves violaciones de derechos humanos y sus consecuencias. In: La Corte Interamericana de Derechos Humanos. Un cuarto de siglo: 1979-2004. San José: Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2005; ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Mandados implícitos de criminalização: a tutela penal dos direitos humanos na Constituição e na Convenção Americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 141-246; ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Obrigações positivas em matéria penal: efeitos e limites da jurisprudência interamericana em caso de violações de direitos humanos. In: NORONHA, João Otávio de; ALQUERQUE, Paulo Pinto de (org.). Comentário da Convenção Americana dos Direitos Humanos. 2020 (no prelo); FISCHER, Douglas; PEREIRA, Frederico Valdez. As obrigações processuais penais positivas: segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019. p. 93-199; PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melina Girardi; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 245-250.

[13] PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas As obrigações processuais penais positivas segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019. Nota de rodapé n. 7, p. 18.

[14] PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas. As obrigações processuais penais positivas segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019. p. 93-94.

[15] PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas. As obrigações processuais penais positivas segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019. p. 106. Em sentido semelhante, asseverou-se: “Assim, há um condicionamento constitucional – e internacional – determinando uma maior eficiência e adequação das atividades investigativas e persecutórias penais, bem como de duração razoável dos respectivos processos penais – como garantias não apenas do imputado e dos suspeitos, mas também das vítimas de graves violações de direitos humanos e da sociedade”. Cf. ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Mandados implícitos de criminalização: a tutela penal dos direitos humanos na Constituição e na Convenção Americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 400.

[16] Sobre a origem da construção dos mandados implícitos de criminalização na Alemanha, propostas doutrinárias e uso jurisprudencial no Brasil, v. ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Mandados implícitos de criminalização: a tutela penal dos direitos humanos na Constituição e na Convenção Americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 66-128.

[17] Os autores são contrários ao modo como se deu o resultado final (não observância do princípio da reserva legal), mas é importante o destaque diante de mais uma decisão do STF que, na fundamentação, reconheceu a existência e a validade dos mandados de criminalização. Ademais, a decisão do STF reforça a argumentação acerca da impossibilidade de o jurado agraciar livremente o homicida homofóbico com impunidade, por sua mera vontade, empatia com o assassino ou aversão à vítima.

[18] V. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Memorial em prol de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos nos planos internacional e nacional. In: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu; ARAÚJO, Nádia de (org.). Os direitos humanos e o direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 42; RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos: análise dos sistemas de apuração de violações de direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 224-225.

[19] Referências jurisprudenciais completas ao final, em anexo. Para análise detalhada dos casos, v. ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Mandados implícitos de criminalização: a tutela penal dos direitos humanos na Constituição e na Convenção Americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 160-266. Vide também PEREIRA, Frederico Valdez; FISCHER, Douglas. As obrigações processuais penais positivas segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019. p. 18, 20, 80, 81 e 112.

[20] Para perspectivas de diálogo no embate entre o STF e a Corte Interamericana com relação à Lei de Anistia (ADPF 153), diante das condenações do país pela Corte IDH nos casos Gomes Lund e Herzog v. Brasil e da pendência da ADPF 320 e de embargos sobre a ADPF 153, v.: ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Graves violações de direitos humanos e anistia: os casos Gomes Lund e Herzog e as ADPFs 153 e 320. In: MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; GOMES, Eduardo Biacchi (dir.); BRANDELISE, Ane Elise; COSTA, Pablo Henrique Hubner de Lanna (coord.); LEAHY, Érika (org.). Hard cases: controle de convencionalidade e o posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Curitiba: Instituto Memória, 2020. p. 32-54.

[21] ANDRADE, Carlos Gustavo Coelho de. Mandados implícitos de criminalização: a tutela penal dos direitos humanos na Constituição e na Convenção Americana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 200-228; FISCHER, Douglas; PEREIRA, Frederico Valdez. As obrigações processuais penais positivas: segundo as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019. p.105-108.

[22] Caterina Paonessa anota que, assim como a Corte Interamericana, a Corte Europeia de Direitos do Homem considera que tais obrigações abrangem não apenas a mera tipificação de condutas, mas também o concreto exercício dos mecanismos de repressão penal contra violações de direitos assegurados na convenção, passando-se da tradicional defesa de direitos fundamentais contra o Direito Penal para a tutela de direitos fundamentais por meio do Direito Penal (PAONESSA, Caterina. Gli obblighi di tutela penale: la discrezionalità legislativa nella cornice dei vincoli costituzionali e comunitari. Pisa: ETS, 2009. p. 174-185).

[23] VIGANÒ, Francesco. L’arbitrio del non punire. Sugli obblighi di tutela penale dei diritti fondamentali. In: Studi in onore di Mario Romano. v. IV. Napoli: Jovene, 2011. p. 2.703-2.704.

[24] OPOTOW, Susan. Psychology of impunity and injustice: implications for social reconciliation. In: BASSIOUNI, Cherif M. (ed.). Post-conflict Justice. Ardsley: Transnational Publishers, 2002. p. 201-203.

[25] AMBOS, Kai. Impunidad y Derecho Penal Internacional. 2. ed. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1999. p. 42-44.

[26] Vide que o âmbito de discricionariedade então atribuído ao júri inglês para reconhecer causa justificante foi considerado atentatório à Convenção Europeia de Direitos Humanos no caso A. x Reino Unido, como acima mencionado. Outrossim, como anota Stephen C. Thaman, a Corte Europeia de Direitos do Homem, no julgamento Taxquet v. Bélgica (App. 926/05), em 16.11.2010, decidiu que a falta de fundamentação dos veredictos do júri, aliada à falta de quesitação precisa e de explicação detalhada dos quesitos aos jurados então vigente no sistema belga, era violadora da Convenção Europeia de Direitos Humanos, levando a reformas nos sistemas de júris e escabinatos de diversos países europeus para a previsão de recurso quanto à matéria de fato, o detalhamento da quesitação, a inclusão de questionário para que os jurados explicitem as razões pelas quais chegaram ao veredicto e o dever de um magistrado togado fornecer explicações e diretivas sobre questões jurídicas e probatórias. V. THAMAN, Stephen C. Should criminal juries give reasons for their verdicts? The Spanish experience and the implications of the European Court of Human Rights decision in TAXQUET v. BELGIUM. Chicago-Kent Law Review, v. 86, n. 2, 2011. O autor comenta, ainda, o caso Otegi, em que a absolvição de homicida de dois policiais por “insanidade temporária” no país basco espanhol foi anulada pelo tribunal regional, pela Suprema Corte e pelo Tribunal Constitucional da Espanha, assentando-se que também o veredicto absolutório deve ser motivado e fundado nas provas dos autos.

[27] Como assevera L. Ferrajoli, “precisamente, la motivazione consente la fondazione e il controllo delle decisioni sia in diritto, per violazione di legge o difetti d’interpretazione o sussunzione, sia in fatto, per difetto o insufficienza di prove ovvero per inadeguata esplicazione del nesso tra convincimento e prove. E non solo in appello ma anche in cassazione” (Diritto e ragione: teoria del garantismo penale, cit., p. 640).

[28] SOUZA, Alexander Araújo de. A supressão do recurso criminal do Ministério Público em caso de absolvição do acusado: quando Ferrajoli si è sbagliato. In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (org.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no Brasil. 4. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2017. p. 493-517.

[29] COSTA, Diogo Erthal Alves da. A clemência no Tribunal do Júri no Brasil. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, n. 71, p. 49-76, jan./mar. 2019. p. 54-56.

[30] Ibid., p. 63-64.

[31] Ibid., p. 68-69.

[32] Ibid., p. 60.

[33] DYKE, Jon van; SCHEFLIN, Alan. Jury nullification: the contours of a controversy. Law and Contemporary Problems, v. 43, n. 4, 1980. p. 77.

[34] TETLOW, Tania. Discriminatory acquittal. Wm. & Mary Bill Rts. J., v. 18, n. 1, p. 75-129, 2009.

[35] Alexander Araújo de Souza ainda recorda que, na Inglaterra, o recurso de apelação contra a condenação constitui novo processo, inclusive com a reinquirição de testemunhas, enquanto nos países de tradição romano-germânica, como o Brasil, os recursos são considerados uma extensão ou modalidade dos direitos de ação e defesa, não instituindo nova relação processual. Ressalta, ainda, que os prosecutors americanos são eleitos, buscando o consenso de seus eleitores, não gozando da imparcialidade do Ministério Público brasileiro, configurado como parte imparcial e fiscal da correta aplicação da lei, podendo opinar pela absolvição, impetrar habeas corpus e recorrer em favor do réu, tratando-se de instituição de garantia e concretização do Estado Democrático de Direito (SOUZA, Alexander Araújo de. A supressão do recurso criminal do Ministério Público em caso de absolvição do acusado: quando Ferrajoli si è sbagliato. In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (org.). Garantismo penal integral: questões penais e processuais, criminalidade moderna e aplicação do modelo garantista no Brasil. 4. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2017. p. 493-517).

[36] Vide a manifestação do Estado do Rio de Janeiro e o relatório da PCERJ juntados à ADPF 635 (índice 198), noticiando a existência de 1.413 favelas dominadas ou influenciadas pela ação de organizações criminosas e milícias apenas naquele estado e informando que as mortes decorrentes de execuções envolvendo esses grupos equivalem a mais de 50% do total de homicídios no Grande Rio.

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