Direito Hoje | O conceito de razão pública como imperativo democrático
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Luciana Bauer

Juíza Federal, Mestranda em Direito com dupla titulação pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali e pela Universidade de Delaware (Estados Unidos)

 

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 Luciana Bauer 

19 de outubro de 2020

“A ideia de razão pública, tal como compreendo, faz parte de uma concepção de sociedade democrática constitucional bem ordenada. A forma e o conteúdo dessa razão – a maneira como é compreendida pelos cidadãos e como ela interpreta sua relação política – são parte da própria ideia de democracia. Isso porque uma característica básica da democracia é o pluralismo razoável – o fato de que uma pluralidade de doutrinas abrangentes razoáveis e conflitantes, religiosas, filosóficas e morais, é o resultado normal da sua cultura de instituições livres.”

John Rawls

Resumo

O presente texto aborda o artigo “The idea of public reason revisited”, publicado por Rawls no verão de 1997. Analisaremos seus principais tópicos e sua atualidade, bem como se essa razão pública objeto do consenso da maioria a formular leis e políticas é ou não um imperativo democrático.

Palavras-chave: John Rawls. Razão pública. Democracia.

Abstract

This paper discusses the study of John Rawls’ article ‘The idea of public reason revisited’, published by Rawls in the summer of 1997. We will analyze its main topics and its current affairs, as well as whether this public reason subject to the consensus of the majority to formulate laws and policies is or is not a democratic imperative.

Keywords: John Rawls. Public reason. Democracy.

Introdução

No presente trabalho, buscar-se-á colacionar a doutrina de John Rawls sobre a ideia de razão pública, ou o politicamente razoável que pode advir do confronto entre pensamentos diferentes dos cidadãos que, a fim de construir o pacto, amoldam suas ideias em um entendimento constitucional e democrático.

O objetivo desta pesquisa é analisar a razão pública, com metodologia dedutiva, a fim de aferir a hipótese de que a razão pública é ou não um imperativo democrático ainda hoje. Para tanto, ponderaremos sobre os principais marcos teóricos desse autor e dos demais autores no que tange à razão pública e a como ela se forma dentro do pacto político, com alguns exemplos de aplicação na interpretação do direito pelo Judiciário.

O trabalho é dividido em três partes. Inicia-se com uma exposição dos conceitos principais de Rawls sobre razão pública. Após, analisamos os problemas que surgem quando essa razão pública não conduz a um consenso. Expomos alguns exemplos de sua aplicação, conforme o respeito a princípios democráticos que a razão pública veicula. Por fim, alcançamos uma conclusão com a confirmação da hipótese ou não.

1 Rawls e sua razão pública

Rawls, ao lançar os primeiros fundamentos do seu pensamento sobre o que seria, dentro do pacto social, a ideia de razão pública, foi muito enfático ao dizer que sua ideia central é que “ela não critica nem ataca nenhuma doutrina abrangente, religiosa ou não, exceto na medida em que essa doutrina seja incompatível com os elementos essenciais da razão pública e de uma sociedade política democrática”,[1] entendendo-se, nesse contexto, que a doutrina razoável é aquela que aceita e incorpora o regime democrático e a lei.

Nesse sentido, a razão pública tem seu centro nos valores morais e políticos de um povo que, passados pelo crivo da maioria, se corporificam em leis. E aí vem a frase cujo cerne pautará todo o trabalho científico que apresentamos: “Aqueles que rejeitam a democracia constitucional com o seu critério de reciprocidade rejeitarão, naturalmente, a própria ideia de razão pública”.[2] Ou seja, a democracia, para Rawls, é um imperativo da razão pública, e a razão pública, um imperativo da democracia.

Esse é um pensamento muito importante e maduro do filósofo, que, ao rever sua Teoria da Justiça em seu livro O liberalismo político, colocou uma ênfase muito forte em como o contrato social se perfectibiliza quando as várias matizes de pensamento em um Estado conseguem formar um consenso, que não é de um ou outro e particular, mas um consenso formado por uma pluralidade de entes que compõem a pólis. Esse verdadeiro embate a formar a democracia serena inclusive os que não tiveram o seu pensamento contemplado pela maioria, justamente porque percebem que fizeram parte desse debate/consenso por meio da participação efetiva no discurso político. O consenso traz a carga democrática ao Estado com base em uma genuína troca entre forças políticas e ao confeccionar o que ele chama formalmente por consenso constitucional:

No consenso constitucional, uma constituição que satisfaz certos princípios básicos estabelece procedimentos eleitorais democráticos para moderar a rivalidade política no interior da sociedade. Essa rivalidade diz respeito não apenas àquela entre classes e interesses, mas também àquelas que envolvem favorecer determinados princípios liberais em detrimento de outros, quaisquer que sejam as razões disso. Embora haja concordância sobre certas liberdades e direitos públicos fundamentais – sobre direito de voto, liberdade de expressão e associação política e tudo o mais que os procedimentos eleitorais e legislativos da democracia requerem (...) como criar consenso constitucional?

onha que, num certo momento, devido a diversas contingências e eventos históricos, certos princípios liberais de justiça são aceitos como um simples modus vivendi e estão incorporados às instituições políticas existentes. Essa aceitação surgiu, digamos, de forma muito semelhante à aceitação do princípio da tolerância, enquanto um modus vivendi, depois da reforma: no início, com relutância, mas, mesmo assim, como a única alternativa viável à guerra civil interminável e destrutiva. (...) Uma adesão às instituições e aos princípios que as regulam pode, evidentemente, basear-se em parte nos interesses pessoais e de grupos de longo prazo, no costume e nas atitudes tradicionais, ou simplesmente no desejo de se conformar àquilo que se espera que seja feito e que usualmente se faz. (...) Quando os princípios liberais regulam efetivamente as instituições políticas básicas, eles satisfazem três requisitos de um consenso constitucional estável. Primeiro, dado o fato do pluralismo razoável – o fato primeiro que leva a um pluralismo constitucional como um modus vivendi –, os princípios liberais satisfazem a exigência política urgente de fixar, de uma vez por todas, o conteúdo de certas liberdades e direitos políticos fundamentais e de lhes atribuir uma prioridade especial. Fazer isso retira essas garantias da agenda política e as coloca além do cálculo dos interesses sociais, estabelecendo assim as normas da competição política.

O segundo requisito de um consenso constitucional estável está ligado ao tipo de razão pública envolvido na aplicação dos princípios liberais de justiça. (...)

As instituições políticas básicas que incorporam esses princípios e a forma de razão pública que se manifesta ao aplicá-los – quando essas instituições funcionam de maneira efetiva e bem-sucedida por um período de tempo considerável (como estou presondo aqui) – tendem a encorajar as virtudes cooperativas da vida política: a virtude da razoabilidade e o senso de justiça, o espírito de conciliação e a disposição de fazer concessões mútuas, tudo isso ligado à vontade de cooperar com os outros em termos políticos que todos possam aceitar publicamente.[3]

Constatando que a razão pública nasce desse consenso, o próprio Rawls define suas características principais:

A ideia de razão pública (...) tem cinco aspectos diferentes: (1) as questões políticas fundamentais às quais se aplica; (2) as pessoas a quem se aplica (funcionários do governo e candidatos a cargos públicos); (3) seu conteúdo como dado por uma família de concepções políticas razoáveis da justiça; (4) a aplicação dessas concepções em discussões de normas coercitivas a serem decretadas na forma de lei legítima para um povo democrático; (5) a verificação pelos cidadãos de que os princípios derivativos das suas concepções de justiça satisfazem o critério de reciprocidade.

Além disso, tal razão é pública de três maneiras: como razão de cidadãos livres e iguais, é a razão do público; seu tema é o bem público no que diz respeito às questões de justiça política fundamental, cujas questões são de dois tipos, elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica; e a sua natureza e o seu conteúdo são públicos, sendo expressos no raciocínio público por uma família de concepções razoáveis de justiça política que se pense que possa satisfazer o critério da reciprocidade.

É imperativo perceber que a ideia de razão pública não se aplica a todas as discussões políticas de questões fundamentais, mas apenas às discussões das questões naquilo a que me refiro como fórum político público. Esse fórum pode ser dividido em três partes: o discurso dos juízes nas suas discussões e especialmente dos juízes de um tribunal remo; o discurso dos funcionários do governo, especialmente executivos e legisladores principais; e finalmente o discurso de candidatos a cargo público e de seus chefes de campanha.[4]

Para cada uma dessas formas de apresentação, Rawls terá uma maneira diferente de aplicar a razão pública. Rawls também lembra que quem não faz parte dessas categorias participa da razão pública por meio de seu voto em representantes que de certa forma colocarão em evidência a “razão pública” que cada cidadão tem em si como correta, pois a relação pública origina-se da concepção de cidadania democrática, resultante da relação de homens livres e iguais. E nunca haverá doutrinas entre estes que sejam irreconciliáveis. Há sempre um ponto de conciliação que justamente fundamenta a atividade nobre da política entre os homens. A cooperação entre os cidadãos é feita para que se busque o razoável, e, embora não seja o seu razoável particular, as pessoas aceitam os resultados dessa cooperação como justos. Ou, dito nas próprias palavras de Rawls:

Assim, quando, numa questão de justiça básica, todos os funcionários governamentais adequados atuam a partir da razão pública e a seguem, e quando todos os cidadãos razoáveis pensam em si mesmos idealmente, como se fossem legisladores seguindo a razão pública, a disposição jurídica que expressa a opinião da maioria é lei legítima. Pode não parecer a cada um como a mais razoável ou a mais adequada, mas é politicamente (moralmente) obrigatória para cada cidadão e deve ser aceita como tal. Cada um pensa que todos falaram e votaram pelo menos razoavelmente e, portanto, que todos seguiram a razão pública e honraram o seu dever de civilidade.[5]

Nesse ponto, podemos ver similaridade do pensamento de Rawls com a teoria do discurso para a construção democrática de autoria de Habermas, quando este último define esfera pública de uma maneira similar em alguns pontos à razão pública de Rawls:

A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos. (...) a esfera pública constitui preferencialmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo (...).[6]

Mais adiante, Habermas explicita que a política deliberativa é feita por uma teia de discursos que propicia solução racional para resolver problemas. O processo democrático cria o direito legítimo por meio dessa solução de problemas. Embora ele considere que Rawls não resolveu toda a complexidade da criação do direito pela sua Teoria da Justiça, como tiramos deste parágrafo:

Rawls concentra-se em questões da legitimidade do direito, sem tematizar a forma do direito enquanto tal, e com isso a dimensão institucional do direito. O que é específico da validade do direito não entra em seu campo de visão. Por isso, também a dimensão externa entre pretensão de legitimidade do direito e facticidade social é captada de modo reduzido.[7]

Habermas criticava o pano de fundo de que Rawls falava e dizia que a realidade muitas vezes não vem magicamente expressa nas tendências culturais e sociológicas expressas pela maioria. Se a razão pública presõe pessoas livres e iguais, Habermas faz ver a Rawls que efetivamente no mundo estamos cada vez mais longe dessa igualdade utópica. Que as desigualdades efetivas entre a riqueza dos homens, sua raça, determinam uma maior ou menor participação no discurso político e – por consequência – na confecção da razão pública expressa nas leis. Mas há inegável coincidência na forma com que Rawls e Habermas encaram a razoabilidade e a racionalidade que esse consenso nos traz.

Rawls apresenta como exemplo de uma razão pública construída, dentro de seu artigo, o preâmbulo da Constituição americana. Como outro exemplo mais palpável, ele coloca a razoabilidade da invocação do merecimento no sentido de qualificações requisitadas para tanto, como, por exemplo, um cargo de juiz. E uma doutrina religiosa? Poderia ser compatível? Ele responde que sim, que tanto religiosos quanto não religiosos aderem a essa razão pública, porque ela protege um elemento democrático essencial, qual seja, a liberdade de se ter ou não uma religião, e que tal fato por si só já conforma aquele que terá sua visão religiosa ou laica confrontada por uma razão de Estado diferente da sua. Quando, por exemplo, pensamos em família e religião, pensamos que o Estado vai salvaguardar a razoabilidade, que não se confunde com o próprio preceito religioso ou sociológico aceito. Apesar disso, há ainda vários paradigmas difíceis de serem expurgados das democracias, como o incesto, por exemplo, cuja constitucionalidade da pena foi reafirmada há pouco pelo Tribunal Constitucional alemão. Embora Rawls nos fale que tudo que concerne somente à moral não deveria se infiltrar na razão pública,

um impasse, em certo sentido, pode realmente ocorrer, até mesmo na ciência e no senso comum. Contudo, é irrelevante. A comparação relevante é com as situações nas quais os legisladores, ao elaborar a lei, e os juízes, ao decidir os casos, devem tomar decisões. Aí alguma regra de decisão política deve ser estabelecida e todos devem ser razoavelmente capazes de endossar o processo pelo qual é tomada a decisão. Lembre que a razão pública vê a posição do cidadão, com o seu dever de civilidade, como análoga à do juiz, com o seu dever de decidir casos. Exatamente como os juízes devem decidir baseados legalmente em precedentes, em cânones reconhecidos de interpretação e outros fundamentos relevantes, da mesma maneira, os cidadãos devem raciocinar pela razão pública e guiar-se pelo critério de reciprocidade, sempre que elementos constitucionais essenciais e questões de justiça básica estejam em jogo.[8]

Tal concepção responde à grande pergunta que o artigo de Rawls coloca como fundamental, se a democracia e doutrinas abrangentes (religiosas, puramente morais, como incesto) podem ser compatíveis. E, se sim, como elas o são? Ele responde que sim, se atentarmos que o conteúdo dessa razão pública seja uma concepção política de justiça dentro do Estado, e não somente uma doutrina extrajurídica abrangente ditada por uma religião, por exemplo. Em um Estado ditado por uma ditadura ou uma religião, contrariamente, temos a incompatibilidade total com qualquer ideia de razão pública, pois os dogmas eram o consenso com que se constroem as leis. O pensamento puramente moral é um obstáculo a uma tolerância política e mais racional.

2 Limites à reconciliação pela razão pública

Porém, nem sempre a razão pública consegue formar seu consenso democrático. Inúmeros livros atuais nos lembram que a democracia está em risco. E está em risco principalmente pela polarização política que constatamos, tornando o discurso um discurso irreconciliável.

Rawls lembra-nos que há limites à reconciliação pela razão pública, e eles – infelizmente – estiveram presentes em determinados momentos históricos de ruptura não só constitucional, mas também de ruptura de tolerância humana e de graves conflitos regionais e mundiais.

Para o filósofo, há três tipos principais de conflitos que colocam os cidadãos em desavença. E acrescentamos que tais desavenças podem beirar a ruptura do pacto social, como vimos inúmeras vezes em guerras civis. As principais diferenças que ele coloca são as advindas de classes, ocupação, posição no estamento social, etnia, gênero, raça.

Essa polarização política advinda de confronto ideológico, de raça e religião, do discurso de ódio tão comum, que não encontra o seu consenso democrático, é descrita primorosamente no livro Como as democracias morrem, dos autores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que sintetiza os dilemas da democracia americana e, por que não, de todas as democracias que se deixam levar pela polarização:

Pensar em como resistir aos abusos da administração Trump é sem dúvida importante. Entretanto, o problema fundamental enfrentado pela democracia norte-americana continua a ser a divisão partidária – uma divisão estimulada não só pelas diferenças políticas, mas por fontes mais profundas de ressentimento, inclusive diferenças raciais e religiosas. A maior polarização dos Estados Unidos precede a presidência de Trump e muito provavelmente vai perdurar depois dela.

Líderes políticos têm duas opções diante da polarização extrema. Primeiro, eles podem considerar as divisões da sociedade como naturais, mas tentar contrapor-se a elas com cooperação e compromissos no nível das elites. Foi o que os políticos chilenos fizeram. Como vimos no capítulo 5, os intensos conflitos entre socialistas e democratas cristãos ajudaram a destruir a democracia chilena em 1973. Uma desconfiança profunda entre os dois partidos persistiu durante anos, erando a sua repulsão compartilhada pela ditadura de Pinochet. (...) Finalmente, porém, os políticos começaram a conversar. Em 1978, Lagos retornou ao Chile e foi convidado a jantar com o ex-senador democrata cristão Tomás Reyes. Eles começaram a ter encontros regulares (...). Em agosto de 1985, democratas cristãos, socialistas e outros dezenove partidos reuniram-se no elegante Círculo Español, em Santiago, e assinaram o Acordo Nacional para a Transição Plena à Democracia. O pacto constituiu a base da coalizão Concertação Democrática, que desenvolveu uma prática de “consenso politico”, em cujos termos as principais decisões eram negociadas entre líderes socialistas e democratas cristãos.[9]

É tão límpida e esclarecedora essa passagem dos autores aos descrever como a falta de consenso político levou a uma absoluta contaminação e paralisação da razão pública no Chile. Mais, conduziu a uma ditadura, que é a área política fora de qualquer razão pública! Pois qualquer liberdade imposta não será uma liberdade real.

Hoje, as democracias sofrem, na sua confecção de razão pública, também pela manipulação do discurso político que a inteligência artificial dos algoritmos traz. Há não só um sério abalo como uma polarização cada vez mais irreconciliável e artificial pelas fake news e pelas segmentações ideológicas em redes sociais que muitas vezes manipulam sem nenhum pudor eleições inteiras.[10]

3 Aplicação da razão pública pelos juízes

Outro ponto importante da discussão de Rawls sobre a razão pública é a sua aplicação por órgãos do Estado, de modo que ela seja respeitada como objeto de consenso do discurso político que um Estado produziu por meios democráticos.

Toda vez que um órgão do Estado usa suas próprias razões, convicções, principalmente as advindas de pensamento religioso ou racial, em detrimento da razão pública que a lei expressa, temos a inexistência total – nessa conduta – de democracia representada pela maioria que consagrou a lei. E, portanto, uma negação absoluta da própria razão pública, que é o fundamento democrático do Estado.

Quando, por exemplo, um juiz ou um secretário estadual de saúde desrespeita a lei que prevê a interrupção de gravidez para casos de estupro, ainda mais em crianças, alegando o direito absoluto da vida, em um claro discurso de matiz religiosa, ou alega impossibilidade de conduta diversa por sua consciência religiosa, esse órgão do Estado não só desconhece a razão pública a sustentar a democracia de uma lei, mas nega a democracia de todo um Estado, corretamente ordenada para impor sua própria razão. Isso é a não democracia. E de modo algum é interpretação do direito para um juiz ou um agente público da administração do Executivo. Isso é simplesmente uma atitude antidemocrática:

Em particular, quando surgem questões muito controvertidas, como o aborto, que podem levar a um impasse entre concepções políticas diferentes, os cidadãos devem votar a questão de acordo com o seu ordenamento completo de valores políticos. Na verdade, esse é um caso normal: a unanimidade de visões não deve ser esperada. A concepção política razoável de justiça nem sempre leva à mesma conclusão; tampouco cidadãos que sustentam a mesma concepção concordam sempre quanto a questões específicas. Não obstante, o resultado da votação, como eu disse antes, deve ser visto como legítimo, contanto que todos os funcionários governamentais, apoiados por outros cidadãos razoáveis, de um regime constitucional razoavelmente justo, votem de acordo com a ideia de razão pública. Isso não significa que o resultado seja verdadeiro ou correto, mas que é uma lei razoável e legítima, obrigatória para os cidadãos pelo princípio da maioria. (...)

A resistência pela força é irrazoável: significaria tentar impor pela força a própria doutrina abrangente que uma maioria dos outros cidadãos que seguem a razão pública não aceita, não irrazoavelmente.[11]

Assim, verificamos que a aplicação da razão pública como imperativo democrático é cogente, principalmente para juízes na interpretação da lei. Nenhum juiz pode substituir essa razão pública por qualquer outra razão (política, partidária, etc.) sem afronta total à democracia que jurou salvaguardar ao ingressar na carreira.

Conclusão

No presente trabalho, buscamos estabelecer o pensamento de John Rawls sobre seu conceito de razão pública e como esse conceito é o cerne democrático a ser respeitado para todo órgão e agente estatal e privado ao aplicar a lei. Concluímos ser válida e atual a doutrina de Rawls. E mais, ser extremamente necessária num contexto em que correntes políticas tentam impor suas verdades sem o respaldo da maioria ou respeito às minorias (base última da justiça como equidade que Rawls prega).

Acrescente-se que o exercício da razão pública por meio de eleições e demais mecanismos democráticos é o próprio exercício das liberdades civis, uma vez que todas as razões públicas expressas por cada cidadão de um Estado se consolidarão em uma única, objeto da maioria, e que deve ser respeitada, sob pena de descambarmos para um campo fora da democracia.

Os perigos da polarização política, inclusive em decisões judiciais, com discursos de ódio, racistas, religiosos extremistas, também representam um perigo democrático, pois são situações em que a formulação da razão pública resta paralisada. E, por isso, respeitar a razão pública é respeitar o mais forte imperativo democrático de que os Estados dispõem para uma sociedade ordenada e justa.
 



Referências

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1 e 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

KOFI ANAN FOUNDATION. Elections and democracy. Disponível em: https://www.kofiannanfoundation.org/our-work/porting-elections-and-democracy/. Acesso em: 28 ago. 2020.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar.

RAWLS, John. Justiça e democracia. Traduzido por Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

RAWLS, John. O liberalismo político. Traduzido por Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Ática, 2002.

RAWLS, John. The idea of public reason revisited. University of Chicago Law Review, Chicago, n. 64, 1997.

 


[4] RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 176.

[6] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 92.

[7] HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 92-3.

[10] Relatório da Kofi Anan Foundation reporta o perigo imediato de manipulação pelas redes sociais de eleições.

[11] RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 221-2.

 

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