Resumo A Lei de Improbidade Administrativa é marco fundamental para proteção da honestidade no setor público. Alterações no seu regime devem ser cuidadosas para não enfraquecer os mecanismos de enfrentamento à corrupção. O Projeto de Lei 10.887/2018 da Câmara dos Deputados tem a virtude de incorporar posições já consolidadas pelos tribunais. O substitutivo ao projeto, por outro lado, representa risco à tutela da probidade. Palavras-chave: Improbidade administrativa. Ressarcimento ao erário. Penas. Indisponibilidade de bens. Alteração legislativa. Abstract The Administrative Improbity Law is a fundamental milestone for protecting honesty in the public sector. Changes in its regime must be careful so as not to weaken the mechanisms for tackling corruption. Project 10,887/2018 of the House of Representatives has the virtue of incorporating positions already consolidated by the courts. The substitutive to the project, on the other hand, represents a risk to the protection of probity. Keywords: Administrative improbity. Compensation to the treasury. Penalties. Seizure of goods. Introdução O Projeto de Lei 10.887/2018, em tramitação na Câmara dos Deputados, traz sensíveis alterações à Lei de Improbidade Administrativa (LIA). O texto original, de autoria do Deputado Federal Roberto de Lucena, embasado em estudos elaborados por uma comissão de juristas presidida pelo Ministro Mauro Campbell, do STJ, foi alterado por substitutivo apresentado pelo Deputado Federal Carlos Zarattini, que aprofunda as mudanças e reverte algumas das ideias iniciais. No substitutivo, são profundamente alterados pontos como a tipologia dos atos de improbidade (deixa de haver improbidade por violação aos princípios da Administração), o elemento volitivo apto a caracterizar improbidade (especial fim de agir em vez do dolo genérico), o regime da indisponibilidade de bens (passa a ser tutela de urgência, apta a amparar apenas o ressarcimento do dano, em contraste com a jurisprudência já consolidada) e a prescrição (prazo, causas interruptivas e repercussão no ressarcimento do dano). O presente ensaio propõe um olhar crítico sobre referido substitutivo, com intuito de investigar a conformação das sugestões nele constantes com o ideal constitucional de proteção efetiva da probidade na Administração Pública brasileira. 1 Entidades subvencionadas em caráter minoritário Seguindo a ordem das proposições estabelecidas no substitutivo, desponta a antiga problemática da punição de atos ímprobos praticados no âmbito das entidades subvencionadas minoritariamente pelo poder público. Para essas entidades, a LIA contempla sua incidência,[1] limitando-se, nesses casos, “a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos”. Por esse dispositivo, organização da sociedade civil de interesse público (Lei 9.790/99) apoiada pelo poder público, como entidade de proteção dos animais ou do meio ambiente, atrairá a aplicação da LIA no que se refere ao dinheiro público ali investido. O parágrafo em questão (“limitando-se [...] a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos”) é motivo de confusão para o aplicador da norma, pois identifica ressarcimento, que nem pena é,[2] com causa de incidência da LIA. O que o parágrafo deveria dizer é que o ressarcimento do dano – mero efeito necessário do ato para restabelecer o status quo ante ao ato de improbidade – está limitado ao que foi investido pelo Estado naquela entidade subvencionada. Todavia, no tocante às penas previstas na Lei de Improbidade, nenhuma limitação deve haver, sendo impossíveis as necessárias e suficientes à reprovação do ilícito, independentemente do grau de participação pública no custeio da entidade lesada.[3] Aqui, mais uma vez, o fator determinante para aplicação da Lei de Improbidade é a origem pública do valor malversado, tanto que a sanção patrimonial tem como limite justamente a repercussão do ilícito sobre o patrimônio de origem pública.[4] A versão original do PL terminava com essa confusão,[5] suprimindo a parte do texto que embaralhava os conceitos de ressarcimento e configuração do ato. O substitutivo, de outro lado, resgata a redação atual da LIA, que não seria mais alterada no ponto, mantendo a insegurança gerada pela ambiguidade da lei nesse ponto específico. 2 Fim da improbidade por violação aos princípios que regem a Administração (art. 11) Esta é a alteração mais grave trazida pelo substitutivo. O art. 1º, § 2º, passa a estabelecer que: “Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º e 10 desta Lei”. Junto com isso, o art. 11, no substitutivo, estabelece que: Art. 11. Ações ou omissões ofensivas a princípios da Administração Pública que, todavia, não impliquem enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário, nos termos dos arts. 9º e 10 desta Lei, não configuram improbidade administrativa, sem prejuízo da propositura de outras ações cabíveis, consoante o caso, como as Leis 4.717, de 29 de junho de 1965, e 7.347, de 24 de julho de 1985.[6] Trata-se de mudança grave, que rompe com a tradição estabelecida ainda em 1992, com a edição da LIA, tradição que estava em consonância com a importância conferida pelo constituinte de 1988 aos princípios regentes da Administração (art. 37 da Constituição Federal e outros, como os enunciados na Lei 9.784/99) como critério a guiar a atividade estatal. Desde 1992, o art. 11 da LIA pune o agente público que violar os princípios regentes da Administração mediante dolo. Contudo, “o simples descumprimento da lei não pode caracterizar improbidade”.[7] A configuração da improbidade se dá apenas quando a ação do agente público, além da violação dos princípios que ditam sua atividade, incide em intencionalidade marcada pela má-fé ou pela desonestidade no descumprimento de seus deveres. Essa compreensão permite punir o desonesto sem causar abuso na aplicação da norma. Caso aprovada a proposição, para se ter um ato de improbidade configurado, não bastará a violação aos princípios administrativos; será indispensável a demonstração de enriquecimento ilícito por parte do agente público ou de dano patrimonial ao erário. O desonesto que não causar esses efeitos sairá livre. Os tribunais têm classificado na categoria da violação dos princípios administrativos uma ampla gama de atos de improbidade, como a prática de maus tratos a crianças em creche municipal,[8] a contratação de servidores públicos sem prévia realização de concurso,[9] o uso do aparelho estatal para promoção pessoal do agente[10] ou o uso da procuradoria jurídica do órgão para defesa de interesses pessoais.[11] Se a proposta do substitutivo passar, essas ações e outras condutas graves, como frustração da licitude de concurso público, estupro cometido por agente penitenciário contra detenta sob sua custódia, uso de documento falso por agente público para sustentar punição indevida a servidor em processo disciplinar ou omissão de ato de ofício para deliberadamente prejudicar interesse de terceiro,[12] atos gravíssimos, sujeitos, inclusive, à sanção penal, deixariam de ser caracterizados como improbidade administrativa. As consequências, no campo de proteção à probidade, seriam muito nocivas. A maior parte das condenações por improbidade lastreia-se justamente no art. 11, como expressa o gráfico a seguir[13]: Com efeito, caso fosse aprovada a proposta, 2/3 das ações por improbidade ajuizadas pelo Ministério Público Federal (MPF) deixariam de existir[14] e quase metade dos atos que até hoje vêm sendo reprovados pelo Judiciário por violarem valores básicos da Administração Pública restariam impunes. Para minimizar o impacto da proposta, a parte final do art. 11 assevera que remanesceria possível a “propositura de outras ações cabíveis, consoante o caso, como as Leis 4.717, de 29 de junho de 1965, e 7.347, de 24 de julho de 1985”. Contudo, em se tratando de violação de princípios, tais ações cíveis seriam esvaziadas de sentido, pois não será possível aplicar nenhuma pena cível; nem haverá dano a ser ressarcido, já que, se dano houvesse, não se cogitaria de aplicar o art. 11, mas o 10 da LIA. Nessa eventualidade, a ação cível serviria, quando muito, para pleitear o desfazimento de eventuais efeitos do ato (como a anulação de uma nomeação indevida, por exemplo). 3 O elemento subjetivo O PL 10.887/2018 já previa, em sua versão inicial, o fim da improbidade culposa, pois suprimia as referências à culpa, hoje existentes no art. 5º e no art. 10 da LIA. Trata-se de mudança de per se negativa, pois, “ao mesmo tempo que fragiliza a proteção da probidade administrativa, retirando estímulo normativo à responsabilidade no exercício do cargo”, não é coerente com o sistema de repreensão à corrupção, uma vez que “o ordenamento [Direito Penal] já contempla punição mais gravosa para a mesma categoria de atos”.[15] O substitutivo piora o tratamento do tema, ao exigir que, além de dolosa, exista um especial fim de agir na conduta praticada pelo ímprobo. Segundo o novo texto, não basta que a ação ilícita decorra de vontade consciente do agente (dolo genérico), mas de uma voluntariedade dirigida conscientemente à produção do resultado ilegal (dolo específico).[16] Na mesma linha, o substitutivo enuncia que “o mero exercício de função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa” (art. 1º, § 5º). Mais uma vez, reforça a necessidade de demonstração de um especial fim de agir como requisito para punição do agente. Trata-se de tema já superado pela jurisprudência,[17] que se firmou no sentido da suficiência do dolo genérico. A inovação, tal qual pretendida, implica óbice adicional à punição dos que, voluntariamente, se distanciaram dos deveres de boa-fé e lealdade no trato da coisa pública. Já no parágrafo 6º do art. 1º, o substitutivo estatui que “não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência ou em doutrina, ainda que não pacificadas”. Trata-se de ampliação de regra semelhante que constava da versão original (art. 11, § 1º), que dispunha não configurar “improbidade a ação ou omissão decorrente de interpretação razoável de lei, regulamento ou contrato”. Essas cláusulas, que certamente visam a conferir maior segurança ao gestor público[18] por meio da diminuição das possibilidades de que venha a responder uma ação de improbidade, mostram-se desnecessárias e dificultadoras da responsabilização dos que agem de má-fé. Em verdade, se o administrador adotou uma dentre várias interpretações razoáveis da norma, sobretudo se amparado em parecer de consultoria especializada,[19] sua conduta não estará permeada pela imprescindível desonestidade, de modo que será inviável, mesmo sem as alterações visadas, a configuração da improbidade. 4 Responsabilidade do sucessor A LIA consagra a responsabilidade do sucessor do ímprobo para os casos de enriquecimento ilícito e lesão ao erário (não para os atos decorrentes de violação de princípios), limitando a responsabilidade pelo ressarcimento do dano ou do acréscimo patrimonial indevido ao montante transferido pelo de cujus, na esteira da garantia prevista no art. 5º, XLV, da Constituição Federal. No entanto, o STJ vem ampliando a responsabilidade do sucessor para admitir que o patrimônio recebido em herança suporte também o pagamento da multa civil imposta ao falecido.[20] Nessa linha é, aliás, a redação proposta na versão original do PL 10.887: “Art. 8º. Os efeitos do ressarcimento e da multa civil por ato de improbidade serão transmitidos aos herdeiros, até o limite do valor da herança”. Já no substitutivo, há nova guinada de compreensão, pois, além de excluir a cobertura da multa, afasta também a responsabilidade pela devolução da vantagem indevida auferida pelo falecido: “Art. 8º. O sucessor daquele que causar dano ao erário ou se enriquecer ilicitamente está sujeito apenas à obrigação de repará-lo, até o limite do valor do patrimônio transferido”.[21] A exclusão da multa pode ser tida como salutar, pois, sendo pena, não deveria passar da pessoa do condenado.[22] Já quanto à devolução do proveito ilicitamente obtido, é injustificável sua supressão, pois permite que os efeitos ilegítimos do ato de improbidade se perenizem, fazendo com que, pelo menos para os sucessores, a ilegalidade seja compensatória. Quanto à sucessão de empresas, a versão original do PL também previa responsabilidade pela pena de multa (“Art. 8-A. No caso de pessoa jurídica, a responsabilidade sucessória de que trata o artigo anterior se estende também ao valor da multa civil”). Já na nova versão, outro retrocesso, pois os sucessores responderiam apenas pelo ressarcimento do dano, ficando exonerados da multa e da devolução do proveito indevido eventualmente percebido.[23] 5 Limitação nas penalidades aplicáveis A versão original do PL contemplava modificações importantes no campo das penalidades aplicáveis aos condenados por improbidade, especialmente em temas indefinidos na LIA, mas que acabaram sendo incorporados ao projeto. A versão substitutiva altera sensivelmente as propostas iniciais. Para melhor compreensão, veja-se o quadro a seguir: Pena | LIA | PL – original | PL – substitutivo | Multa civil | Art. 9º: até 3x acréscimo patrimonial. Art. 10: até 2x valor do dano. Art. 11: até 100x remuneração. | Não altera. | Art. 9º: = valor do acréscimo. Art. 10: = valor do dano. Art. 11: deixa de existir e ser punível. | Proibição de contratar com poder público: tempo | Art. 9º: 10 anos. Art. 10: 5 anos. Art. 11: 3 anos. | Art. 9º: 4 a 12 anos. Art. 10: 4 a 10 anos. Art. 11: 4 a 6 anos. | Art. 9º: 4 a 10 anos. Art. 10: 3 a 8 anos. Art. 11: deixa de existir e ser punível. | Proibição de contratar com poder público: limitação territorial | Não há (2ª Turma do STJ tem admitido). | A pena de proibição de contratação com o poder público pode, se devidamente justificado, ser limitada territorialmente. | Em caráter excepcional e por motivos relevantes devidamente justificados, a pena de proibição de contratação com o poder público pode extrapolar o ente público lesado pelo ato de improbidade. | Perda do cargo | Não explicita qual vínculo é perdido (há controvérsia no STJ, mas o EREsp 1.701.967 sinaliza pacificação no sentido da perda de toda e qualquer função). | A sanção de perda do cargo público atinge todo e qualquer vínculo do agente público ou político com o poder público. | A sanção de perda da função pública atinge apenas o vínculo de mesma qualidade e natureza que o agente público ou político detinha com o poder público na época do cometimento da infração. | Cassação de aposentadoria | Sem previsão, mas STJ tem admitido. | A imposição da pena de perda de função pública pode ser convertida em cassação da aposentadoria do agente público ou político. | Não faz referência. | Inabilitação para cargo público | Não há. A Lei 8.112/90 prevê, mas sua aplicação aos ímprobos é controversa. | A perda da função ou do cargo público implicará a inabilitação para o exercício de qualquer função pública pelo prazo de cinco anos. | Não faz referência. | Desse panorama, denota-se um viés mais complacente com o condenado por improbidade no substitutivo ao texto original do PL 10.887/2018. A redução do montante de multa civil imponível e dos prazos máximos e mínimos da proibição de contratar com poder público sustenta essa percepção. Além disso, quanto à limitação territorial da proibição de contratar com poder público, a versão original do PL tem a virtude de incorporar um dos entendimentos em voga no STJ, pacificando o tema, o que faz concedendo um poder discricionário ao juiz para, em caráter excepcional, limitar os efeitos da pena territorialmente. O substitutivo, a seu turno, faz da exceção a regra, de modo que, para que a pena extrapole o âmbito territorial do ente lesado (município, por exemplo), haverá necessidade de invocar “motivos relevantes devidamente justificados”. No que diz respeito ao vínculo atingido pela pena de perda do cargo, a versão original do PL traduz “inovação relevante, pois, ao positivar tendência verificada na jurisprudência do STJ, pacifica o assunto, conferindo maior segurança jurídica”.[24] O substitutivo, além de apresentar redação confusa no ponto, deixa aberta a possibilidade de que o ímprobo, ocupando outro vínculo, diverso daquele em que se dera a improbidade, permaneça nos quadros da Administração, sem extirpar o desonesto. Também em relação à cassação de aposentadoria há retrocesso no substitutivo. O tema, inserido no texto original do PL, em conformidade com a orientação firmada no STJ, é retirado do substitutivo, sem motivação razoável. Quanto à inabilitação para novo ingresso nos quadros da Administração, era importante avanço contido no projeto original, agora suprimido pelo substitutivo, uma vez mais sem fundamento racional para sustentar a supressão. Por fim, destaca-se o contido no art. 12, § 8º, do substitutivo: “As sanções previstas neste artigo só podem ser executadas com o trânsito em julgado da sentença condenatória”. A mudança inova no regime existente, que sempre condicionou ao trânsito em julgado apenas a perda do cargo e a suspensão dos direitos políticos (art. 20 da LIA). Com isso, o substitutivo parece sinalizar uma espécie de precaução contra eventual reorientação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de admitir a execução penal após a condenação de segunda instância, o que seria, naturalmente, transposto para a seara da improbidade; além de impactar no regime da “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar 135), que torna inelegíveis candidatos condenados por improbidade por órgão colegiado, não obstante possam ainda pender recursos. 6 Indisponibilidade de bens A versão original do PL traz importante inovação, qual seja a incorporação de entendimento consolidado pelo STJ que considera a indisponibilidade de bens espécie de tutela de evidência.[25] Nessa senda, o PL prevê que “o pedido de indisponibilidade será concedido independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo”, desde que presentes indícios que liguem o requerido ao cometimento de ato de improbidade. O substitutivo, a seu turno, pretende que o pedido de indisponibilidade só seja deferido “mediante a demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo”, invertendo a lógica do texto original e contrapondo-se à orientação já pacificada na jurisprudência. É comum a alegação de que há excesso no uso de cautelares em ações por improbidade, e talvez isso esteja a inspirar a mudança em questão. Contudo, os números não sustentam tal alegação. Veja-se[26]: Além disso, o substitutivo restringe o escopo da indisponibilidade. A versão original do projeto, mais uma vez incorporando a orientação do STJ,[27] enuncia que a indisponibilidade serve para a “recomposição do erário e a aplicação de outras sanções de natureza patrimonial”. Com isso, engloba o ressarcimento de bens, a devolução do proveito ilicitamente obtido e a multa civil. Consoante o texto substitutivo, a medida serviria para “garantir a integral recomposição do erário ou do acréscimo patrimonial resultante de enriquecimento ilícito” (art. 16, caput), excluindo a multa civil. Pior ainda, o § 10, em contradição com o próprio caput e com a tradição doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, enuncia que: § 10. A indisponibilidade a que se refere o caput deste artigo recairá sobre bens que assegurem exclusivamente o integral ressarcimento do dano ao erário, não incidindo sobre os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil e sobre eventual acréscimo patrimonial resultante do enriquecimento ilícito.[28] Não é só. Na versão original, o PL coloca todo o patrimônio, inclusive o bem de família, independentemente da época de aquisição dos bens,[29] sob a mira da indisponibilidade, o que faz, outra vez, para acolher orientações solidificadas pelo STJ. O substitutivo suprime a referência a esses pontos (época de aquisição dos bens e sujeição do bem de família), no que não contribui para o aperfeiçoamento da aplicação da LIA. Atualmente, os resultados obtidos na ação de improbidade, no sentido da reversão dos danos causados ao erário, são pífios, como expressa o gráfico a seguir[30]: As alterações no regime de indisponibilidade de bens propostas no substitutivo não contribuirão para melhora desse cenário. 7 Questões processuais O art. 17, que trata de variados temas de processo, sofre sensíveis alterações pelo substitutivo. Nessa linha, é retirada a regra que, no texto original, expressamente admitia a cumulação de pedidos de ressarcimento dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais.[31] Igualmente, é excluída a alteração proposta no caput do art. 1º, segundo a qual “os atos de improbidade são praticados contra o patrimônio público e social de quaisquer dos poderes dos entes federativos”.[32] Também é suprimida a regra que previa que a sentença indicaria, “na fixação dos danos não patrimoniais, critérios objetivos que a justifiquem, tendo em vista, dentre outros, a extensão territorial, o nível de comprometimento da imagem da Administração Pública e o grau de sofrimento ou decepção para a coletividade” (art. 18, VI). As regras que se pretende suprimir estavam claramente a indicar o intuito do projeto inicial de permitir, na própria ação por improbidade, a reparação do dano moral decorrente do ato, o que vinha sendo admitido pela jurisprudência.[33] As modificações pretendidas pelo substitutivo indicam o contrário, ou seja, o ideal refratário à composição do dano moral coletivo decorrente da improbidade na própria ação civil pública em que esta é apurada e punida. Ainda no parágrafo 3º do art. 17, também o inciso IV (“o Ministério Público poderá requerer as tutelas provisórias adequadas e necessárias, nos termos dos arts. 294 a 311 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015”) é retirado pelo substitutivo. Não fica clara a razão para essa alteração, mas autoriza inferir, diante das demais modificações em exame, que se possa estar buscando limitar os instrumentos processuais oferecidos ao autor da ação[34] para aplacar e reparar os efeitos do ilícito. É digna de nota, ainda, a ressurreição da fase delibatória pelo substitutivo, fase essa que era suprimida no texto original. O substitutivo não só mantém a defesa preliminar, como ainda cria outras hipóteses de rejeição da ação, como a “falta de demonstração do dolo” e a “existência de dúvida fundada sobre a responsabilidade do agente”. Essas novas causas de rejeição liminar, ao tempo que dificultam o recebimento da ação por improbidade, confrontam com entendimento consolidado pelo STJ, segundo o qual, na fase inicial da ação, vigora o princípio in dubio pro societate.[35] Já no parágrafo 17, vem outra regra inusitada, segunda a qual: Art. 17 (...) § 17. A qualquer momento, identificando o magistrado a existência de ilegalidades ou irregularidades administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347/85.[36] Ora, a ação de improbidade já é veiculada em ação civil pública.[37] Nesse contexto, deve-se presumir que a intenção do substitutivo, no ponto, tenha sido dizer que a ação seguiria apenas para apreciação de eventual pleito ressarcitório, mas não mais com a carga condenatória às penas previstas no art. 12 da LIA. O substitutivo prevê, ainda, que “ao réu será assegurado o direito de ser interrogado sobre os fatos de que trata a ação, sendo que a recusa ou o silêncio não implicará a confissão” (art. 17, § 19); e que será assegurada ao réu “oportunidade de manifestação por escrito e juntada de documentos que comprovem suas alegações e auxiliem na elucidação dos fatos” (art. 22, parágrafo único), reforçando a preocupação com a garantia de oportunidades amplas de defesa ao acusado de improbidade. 8 Acordo A possibilidade de celebração de acordo em ação de improbidade é mantida pelo substitutivo, seguindo a tendência inaugurada pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), que introduziu o acordo de não persecução cível (ANPC). Contudo, há uma inovação curiosa: embora mantida a legitimidade ativa exclusiva do MP para a ação, o texto proposto passa a condicionar o acordo à “anuência da advocacia pública do ente federativo, caso esta esteja organizada da forma prevista no art. 132 da Constituição Federal” (art. 17-B), acrescentando que “as negociações para a celebração do acordo ocorrerão entre o Ministério Público e a advocacia pública do ente lesado” (§ 4º). Essa inovação não passa livre de críticas, pois representaria um “controle desnecessário e exagerado à dinâmica da celebração dos acordos, que deveria ser simplificada para favorecer a justiça negocial, e não o contrário”.[38] Com efeito, embora haja contradição aparente, pois traz para o acordo quem não teria legitimidade ativa para a ação, tem a virtude, de outro lado, de dar voz ao ente que sofreu com a espoliação patrimonial. Com isso, ao permitir a composição completa do dano causado ao erário, é fator que aumenta a segurança jurídica do acusado, que pode resolver, a uma só vez, as pendências que tenha com o Estado, o que evitaria as incertezas verificadas no campo do acordo de leniência.[39] Pontue-se, ainda, que o substitutivo altera o sistema de homologação do acordo, ao estabelecer uma duplicidade de regimes: se celebrado antes do ajuizamento, deve ser aprovado pelo órgão do MP competente para apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis; se firmado após o ajuizamento da ação, deve ser homologado pelo juiz da causa. Na versão original, o regime de referendo do acordo era distinto, pois primeiro haveria a aprovação pelo órgão superior do MP e, após isso, homologação judicial, sempre, o que é extremamente salutar. A homologação judicial, é de se repisar, é imprescindível em qualquer caso, mesmo quando firmado antes da propositura da ação por improbidade, pois, uma vez que decorrerá alguma punição ao réu (multa, além do ressarcimento do dano e da devolução da vantagem indevida) e estando as penas da LIA sob reserva de jurisdição, “a sujeição do autor do ato de improbidade a qualquer das sanções previstas na LIA, ainda que com seu consentimento, reclama a supervisão jurisdicional”.[40] 9 Afastamento do cargo O PL 10.887/2018 inova significativamente no tema do afastamento cautelar do agente do cargo ou da função ocupados. Primeiro, cria nova causa autorizadora do afastamento, além da garantia da instrução, dispondo que a medida serve para evitar a iminente prática de novos ilícitos, com o que se busca prevenir a reiteração de condutas. Também fixa prazo máximo para o afastamento cautelar, de até 180 (cento e oitenta) dias, prorrogáveis uma única vez por igual prazo, podendo expirar antes se a instrução processual for concluída em menor tempo. Nisso, outra vez, o PL incorpora orientação pacífica do STJ, que adota o prazo referido, admitindo que seja alargado em circunstâncias excepcionais.[41] O substitutivo, a seu turno, reduz o prazo do afastamento, fixando-o em 90 dias, com uma prorrogação possível. Trata-se de alteração que pode comprometer as investigações por improbidade e inviabilizar o intento de evitar a reiteração do ilícito, pois, em muitos casos, 90 dias, mesmo com a prorrogação admissível, podem ser insuficientes para desmobilizar a estrutura corrupta em que se dera o ato de improbidade e a influência que o agente possa exercer sobre testemunhas e descoberta de documentos. Nesse campo, a ideia original do PL é melhor, pois prevê a possibilidade de o afastamento durar mais quando necessário, sem impor a obrigatoriedade de uma suspensão alargada do exercício das funções [“O afastamento previsto no § 1º será de até 180 (cento e oitenta) dias”],[42] o que dá mais liberdade ao juiz para adaptar a medida às circunstâncias do caso. 10 Prescrição A prescrição tem tratamento variável na LIA, cujos prazos e termos iniciais variam de acordo com o tipo de vínculo do agente com a Administração. Em salutar simplificação, o PL altera o regime da prescrição “para excluir as diversas espécies de critérios de dies a quo, estabelecendo prazo prescricional de 10 (dez) anos a contar do fato, de maneira unificada, para dar mais homogeneidade à aplicação da lei”.[43] O substitutivo, no entanto, reduz o prazo, originalmente previsto em 10 anos, para apenas cinco anos da ocorrência do ato de improbidade. Essa alteração é delicada, pois abrevia muito o tempo de que dispõe o Estado para apurar condutas ímprobas, sobretudo porque, com frequência, a descoberta da infração não se dá assim que esta é cometida, mas muito tempo depois. E, na esteira da proposta em exame, mesmo que ainda não conhecida a infração, o prazo prescricional para sua punição já estará fluindo, o que limitará as possibilidades de responsabilização dos ímprobos. Além disso, a redução do prazo, na forma proposta no substitutivo, coloca-se em desarmonia com o tratamento dado à prescrição pelo Direito Penal, que, “para o crime de corrupção, que é semelhante à maioria das improbidades”, estipula que “o prazo prescricional é de 16 anos”.[44] Ainda, o substitutivo reduz o tempo de suspensão do prazo prescricional de três anos, previsto na redação original, para apenas 180 dias; e, quanto à prescrição da pretensão de perda de bens e valores de origem privada, reduz o prazo de 20 anos para apenas 10 anos. Por fim, o substitutivo cria uma prescrição intercorrente, que tem sua fluência iniciada com o despacho que recebe a petição inicial e como marco final o trânsito em julgado. 11 Despesas processuais Na proposta original, o PL isentava a ação de honorários sucumbenciais, custas e despesas processuais. O substitutivo altera esse regime profundamente, estabelecendo que apenas não haverá adiantamento de despesas processuais, as quais serão satisfeitas ao final pelo condenado, se procedente a ação. Quanto aos honorários advocatícios, fica estabelecido que “haverá condenação em honorários sucumbenciais” (art. 23-B, § 2º), sem distinguir os casos de procedência ou improcedência da ação. Mais ainda, vem estabelecido que, “nos casos de manifesta inexistência do ato de improbidade, reconhecida por sentença, caberá o ressarcimento em perdas e danos, a ser pleiteado em ação própria”. Essas cláusulas devem ser vistas com cuidado, pois tendem a tornar financeiramente onerosa a ação de improbidade, o que pode representar desestímulo ao seu ajuizamento, com potencial comprometimento à proteção da probidade. Conclusão O PL 10.887/2018 tem a virtude de incorporar ao texto da LIA orientações solidificadas pela jurisprudência em temas fundamentais. Com isso, confere maior segurança jurídica e previsibilidade à aplicação da lei. O substitutivo proposto, contudo, vai na linha contrária, contrapondo-se, em muitos pontos, a temas já pacificados pelos tribunais. Com isso, pode reabrir discussões já ultrapassadas, comprometendo a clareza e a objetividade da LIA. Ainda, o substitutivo denota viés excessivamente pró-acusado, pois há muitas medidas que tendem a diminuir penas, limitar seu alcance, dificultar medidas cautelares e, com isso, o ressarcimento dos danos e de valores indevidamente recebidos; além de outras que burocratizam o procedimento da ação e dificultam a apuração dos atos de improbidade. Com efeito, a norma, qualquer norma punitiva, não deve assumir lados, nem de quem acusa, nem de quem é acusado. E nunca se pode descurar que toda lei tem um papel indutor de condutas, o que faz sinalizando incentivos aos que estão sob sua influência.[45] Caso haja estímulo para adotar condutas positivas, estas serão adotadas. Ao contrário, se a norma for leniente, ou se a chance de punição for pequena, a norma tenderá a ser violada.[46] Pelo aqui abordado, as mudanças pretendidas sinalizam um afrouxamento no regime de responsabilização dos desonestos, o que, infelizmente, tende a aumentar as desonestidades contra a Administração e o patrimônio público. Referências BECKER, Gary S. Crime and punishment: an economic approach. The Journal of Political Economy, Chicago, v. 76, n. 2, mar./abr. 1968. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Lei de Improbidade Administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida et al. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015. BRASIL. Ministério Público Federal. Nota técnica ao projeto de substitutivo do PL 10.887. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/document33.pdf. Acesso em: 30 out. 2020. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão. AgInt no AgInt no AREsp 1.501.406/SC. Segunda Turma. Relator: Ministro Francisco Falcão. Julgado em 21.09.2020. DJe, 24 set. 2020. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão. AgInt no REsp 1.859.574/PR. Segunda Turma. Relator: Ministro Mauro Campbell Marques. Julgado em 24.08.2020. DJe, 27 ago. 2020. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão. AgRg na SLS 1.854/ES. Corte Especial. Relator: Ministro Felix Fischer. Julgado em 13.03.2014. DJe, 21 mar. 2014. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão. AgRg no REsp 1.539.929/MG. Segunda Turma. Relator: Ministro Mauro Campbell Marques. Julgado em 16.06.2016. DJe, 02 ago. 2016. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão. EDcl no REsp 1.505.356/MG. Segunda Turma. Relator: Ministro Herman Benjamin. Julgado em 22.08.2017. DJe, 13 set. 2017. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão. REsp 1.108.010/SC. Segunda Turma. Relator: Ministro Herman Benjamin. Julgado em 21.05.2009. DJe, 21 ago. 2009. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão. REsp 765.212. 2ª Turma. Relator: Min. Herman Benjamin. DJe, 23 jun. 2010. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão. REsp 908.790/RN. Segunda Turma. Relator: Ministro Humberto Martins. Relator p/ acórdão: Ministro Mauro Campbell Marques. Julgado em 20.10.2009. DJe, 02 fev. 2010. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão. REsp 997.564/SP. Primeira Turma. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Julgado em 18.03.2010. DJe, 25 mar. 2010. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Acórdão. Apelação Cível nº 70017363052. Oitava Câmara Cível. Relator: Luiz Ari Azambuja Ramos. Julgado em 25.10.2007. BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Acórdão. Apelação Cível nº 70014184832. Primeira Câmara Cível. Relator: Irineu Mariani. Julgado em 30.05.2007. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AC 5037369-38.2017.4.04.7100. Terceira Turma. Relatora: Vânia Hack de Almeida. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AG 5023972-66.2017.4.04.0000. Terceira Turma. Relatora: Vânia Hack de Almeida. Juntado aos autos em 24.08.2017. DECOMAIN, Pedro Roberto. Improbidade administrativa. São Paulo: Dialética, 2007. GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade administrativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. MARTINS, Tiago do Carmo. A Lei Anticrime e seus reflexos na improbidade administrativa. Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região, Porto Alegre, a. 6, n. 14, p. 147-159, 2020. MARTINS, Tiago do Carmo. Alteração na legitimidade ativa para as ações de improbidade. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/alteracao-na-legitimidade-ativa-para-as-acoes-de-improbidade. Acesso em: 31 out. 2020. MARTINS, Tiago do Carmo. O fim da improbidade culposa. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-fim-da-improbidade-culposa. Acesso em: 30 out. 2020. MARTINS, Tiago do Carmo. Perda e afastamento do cargo por ato de improbidade. 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