Direito Hoje | Acordos entre Ministério Público e imputado no Brasil e na Itália: aplicação da pena a pedido das partes, transação penal e acordo de não persecução penal
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 Luciana Sperb Duarte Vassalli 

06 de abril de 2021

Resumo*

O artigo faz um estudo comparativo entre os instrumentos negociais inspirados no plea bargaining, em sua tradução italiana e brasileira. Parte-se das dificuldades do transplante de institutos de common law a ordenamentos de civil law; depois, analisam-se, separadamente, os institutos americano, italiano e brasileiro, concluindo-se com um aceno prospectivo sobre o patteggiamento, a transação penal e o acordo de não persecução penal.

Sumário: Introdução. 1 Premissa: a tradução de institutos de common law a ordenamentos de civil law. 2 Breves acenos ao “texto-mãe”: plea bargaining, guilty plea e nolo contendere no ordenamento norte-americano. 3 A aplicação da pena a pedido das partes. 3.1 A introdução do instituto: a reforma de 1989. 3.2 Breve histórico sobre a evolução do instituto. 3.3 Patteggiamento tradizionale e patteggiamento allargato: raio de aplicação, requisitos, prêmios e rito. 3.4 Questões controversas. 3.5 Plea bargaining, nolo contendere e patteggiamento. 4 A transação penal. 4.1 A introdução do consenso no processo penal brasileiro: o microssistema dos juizados especiais criminais. 4.2 Características do instituto. 5 O acordo de não persecução penal. Conclusão. Bibliografia.

Introdução

O princípio da obrigatoriedade da ação penal, tradicional nos países ligados à civil law, grande família à qual pertencem tanto a Itália quanto o Brasil,[1] é inspirado no princípio da igualdade de todos perante a lei e articula-se à proibição de que a pena seja infligida fora do processo penal (nulla poena sine iudicio), assim entendido o devido processo legal (giusto processo, na terminologia italiana), em seu complexo de exercício do mais amplo direito de defesa e contraditório.

Há anos, porém, razões de eficiência vêm ditando a sensível mitigação de todos esses princípios na Europa Continental e também na América Latina.

Tomando como inspiração o modelo norte-americano, a Itália abriu espaço para a negociação no âmbito da justiça criminal, com a renúncia, por ambas as partes, de direitos que lhes caberiam no processo penal tradicional. De um lado, o Ministério Público abre mão de perseguir as penas mais severas; de outro, o imputado renuncia a seu direito de resistência à inflição da pena, e, em troca, evita as incertezas do processo penal e a estigmatização que dele decorre. As partes, antagonistas no processo criminal tradicional, passam a adotar atitude de cooperação. No modelo consensual de justiça criminal, assume relevo a autonomia da vontade.[2]

Posteriormente, o Brasil, inspirando-se nas legislações italiana e portuguesa, adotou seu primeiro instituto negocial, a transação penal, cuja evolução influenciou o segundo e recentíssimo instituto negocial brasileiro, o acordo de não persecução penal.

A introdução de institutos negociais, tanto na Itália como no Brasil, fez-se com reservas: em ambos os países, os primeiros institutos a admitir a negociação entre as partes versavam apenas infrações de menor gravidade e permitiam a aplicação de um reduzido espectro de sanções. Após alguns anos dessas primeiras experiências, porém, os dois ordenamentos assistiram ao alargamento do escopo de seus instrumentos negociais, e a tendência é sua crescente expansão.[3]

A este ponto, cabe precisar o objeto do presente trabalho.

De acordo com seus objetivos, os instrumentos consensuais distinguem-se entre dois tipos. No primeiro, o acordo tem por escopo a colaboração do sujeito, em troca de benefícios, para a consecução de provas. A finalidade não é a substituição ou o encerramento do processo, mas a melhor instrução probatória. A este grupo pertencem os acordos de colaboração com a justiça, no bojo dos quais se pretende colher elementos que possam elucidar melhor o crime, inclusive com a identificação de outros partícipes e a localização de vítimas, produto e proveito da infração. Tais acordos são bastante adequados à investigação de alta complexidade, como a de crimes praticados no seio de organizações criminosas.

O outro tipo entre instrumentos consensuais abarca as chamadas técnicas de diversion, e abrange os mais diversos meios com os quais se pretende desde abreviar até mesmo evitar o processo. Neste último grupo, alocam-se os acordos entre as partes pretendendo a aplicação de pena ao sujeito, ou sua submissão a determinadas condições, em um procedimento breve, que será encerrado com o cumprimento do pacto.

A criação dessa zona de consenso entre acusação e defesa objetiva vencer os obstáculos da morosidade e dos altos custos da atividade de distribuição da justiça, frequentemente não compensados pelos resultados. A possibilidade de acordo entre imputado e acusador, capaz de abreviar procedimentos e induzir à célere pacificação, injetando eficiência na distribuição da justiça penal, aparece como uma via apta a lidar com a sempre crescente expansão do direito penal.[4]

Nessa senda, para além da harmonização da justiça negociada a princípios tradicionais da família romano-germânica, com os quais frequentemente há tensões, faz-se necessária sua submissão aos modernos princípios ditados pelo justo processo negocial. Assim, é imprescindível a correta ponderação na regulamentação dos pactos entre as partes, a fim de que sejam bem estabelecidos os limites necessários ao resguardo da liberdade e da igualdade entre todos perante a lei e perante os órgãos de persecução estatal, as assim chamadas safeguards. Trata-se de garantir que a manifestação de vontade da parte, quando da celebração do acordo, seja exercida de maneira informada e livre de pressões indevidas. Ademais disso, os modernos princípios do devido processo negocial exigem que acusador e imputado se conduzam com lealdade e boa-fé durante todo o processo, desde as tratativas até o cumprimento final do pacto. Por fim, há de ser assegurada a verificação judicial da legalidade do acordo e do procedimento observado para sua produção.

É claro, porém, que essa transposição de um instituto típico de common law a países da civil law traz enormes dificuldades, como será brevemente analisado ao longo deste trabalho. Em ambos os ordenamentos estudados, a evolução dos institutos negociais foi marcada por essas tensões.

No Brasil, os instrumentos legais por meio dos quais medidas são negociadas entre o Ministério Público e o imputado, com o escopo de substituição do processo penal litigioso, são a transação penal e o recém-criado acordo de não persecução penal; na Itália, trata-se da aplicação da pena a pedido das partes, em suas duas versões, os assim chamados patteggiamento tradizionale e patteggiamento allargato.

1 Premissa: a tradução[5] de institutos de common law a ordenamentos de civil law

The music of the law changes, so to speak, when the musical instruments and the players are no longer the same”. A advertência de M. R. Damaška bem sintetiza como a introdução de um instituto típico da common law em ordenamentos da tradição de civil law, tão profundamente diferentes em seus sistemas de justiça, possa ser problemática.[6]

Em sua famosa tese a respeito da expansão do direito norte-americano a países da Europa Continental e da América Latina,[7] M. Langer analisa como se deu a tradução do plea bargaining em alguns desses ordenamentos, desde sua introdução, por lei ou não,[8] até as muitas modificações sofridas ao longo da aplicação do instituto, provocadas ora pelas penetrantes diferenças estruturais entre os processos criminais norte-americano, do tipo adversarial, e aqueles processos criados a partir de raízes inquisitoriais, ora pelas diferenças culturais e pela resistência de atores legais – juízes, acusadores e defensores –,[9] o que acabou por promover ulteriores modificações ao modelo traçado pela própria lei do país tradutor.

M. Langer parte da diferença crucial entre as duas culturas processuais: a concepção do processo enquanto uma disputa equilibrada entre duas partes que se situam em plano de igualdade, ao final da qual haverá uma parte vencedora e uma parte perdedora, própria do sistema adversarial, ou o processo como um instrumento de descoberta da verdade, característico do sistema inquisitorial.[10] No sistema adversarial, cada uma das partes é percebida como detentora de um interesse próprio no resultado final do processo, diante de um juiz passivo, cuja cognição é limitada pela atividade investigativa e probatória desenvolvida separadamente pela acusação e pela defesa. Às partes incumbe decidir a ordem de apresentação das provas, e as testemunhas e os peritos “pertencem” à parte que solicitou o depoimento, assistindo a cada uma delas o direito de lhes formular perguntas e reperguntas, diretamente.

Já no sistema inquisitorial, a descoberta da verdade se faz por meio de investigação oficial, diante de um juiz dotado de papel ativo, inclusive no tocante à atividade probatória, e contando com um acusador que não é exatamente parte, no sentido de que possua interesse próprio no processo, mas sim uma autoridade imparcial.[11]

A visão do processo como uma disputa entre partes é que permite, no sistema adversarial, a larga discricionariedade persecutória que é estranha ao sistema inquisitorial,[12] no qual a obrigatoriedade da ação penal é dogmática, enquanto o processo é um instrumento para a descoberta da verdade, e, portanto, a ação penal deve ser forçosamente exercida sempre que haja provas suficientes de que uma infração foi cometida, e de que o investigado foi seu autor.[13] No sistema adversarial, ao contrário, o prosecutor, por ser uma das partes e, como tal, autêntico juiz da própria existência de uma disputa,[14] detém o juízo de oportunidade e conveniência da persecução penal, não sendo obrigado a perseguir a controvérsia se entender que a ação penal não vale a pena.

A mesma concepção, prossegue M. Langer, explica a diferença entre o sentido e os efeitos de confissão e admissão de culpa em um e outro sistema: se no processo inquisitorial a busca da verdade é o norte, a admissão de culpa não é nem mesmo conhecida como conceito,[15] e a confissão possui apenas um valor de prova a ser avaliada em conjunto com todas as demais, sem ter por consequência o encerramento da formação da culpa. Assim é, porque ao magistrado, e não ao imputado, cabe a última palavra sobre o juízo de culpa: o juiz, conquanto possa utilizar a confissão na formação de seu convencimento, deve ainda acertar como os fatos realmente se passaram, sopesando todas as provas acerca do evento, e nessa atividade pode até mesmo concluir que o imputado confesso não praticou o crime. No sistema adversarial, diversamente, a própria concepção de verdade é “mais relativa e consensual: se as partes entram em um acordo sobre os fatos do caso, por meio de plea agreements ou stipulations, é menos importante determinar como os eventos realmente aconteceram”.[16], [17]

Todas essas características permitem perceber que, se no sistema adversarial é natural que as partes possam negociar uma solução para a disputa que a elas “pertence”, no sistema inquisitorial tais acordos significariam a negociação da verdade, e esta é um valor em si que não pode ser negociado.

A despeito de todas essas profundas diferenças entre os dois sistemas legais, o fato é que a negociação no processo penal, na versão que lhe emprestou o direito norte-americano, foi traduzida para diversos ordenamentos de civil law, dentre os quais o italiano, no qual o ordenamento brasileiro se inspirou. Como advertiram M. R. Damaška e M. Langer, porém, os institutos, após serem adaptados pelos legisladores dos respectivos países, sofreram (e continuam a sofrer) sucessivas mutações ao longo de seus anos de aplicação, algumas das quais ditaram diferenças tão grandes em relação aos institutos nos quais se inspiraram que os tornaram em certa medida irreconhecíveis.

2 Breves acenos ao “texto-mãe”[18]: plea bargaining, guilty plea e nolo contendere no ordenamento norte-americano

Citando A. W. Alschuler, J. H. Langbein relata que o plea bargaining foi desconhecido durante a maior parte da história da common law.[19], [20] Até o século XIX, era desnecessário imprimir celeridade aos julgamentos, pois o processo ordinário pelo júri – o coração de todo o sistema de justiça penal anglo-saxão, cristalizador das garantias do processo justo – era suficientemente simples e rápido. Foi o desenvolvimento do sistema adversarial, em virtude do qual aconteceram a profissionalização dos atores processuais e a criação de regras cada vez mais complexas, capazes de garantir o mais amplo e paritário exercício da acusação e da defesa, que inviabilizou o júri para todos os casos criminais e acabou ditando a necessidade de um outro canal, nontrial, para dar vazão à demanda penal.[21]

Ao lado dessas considerações, apontam-se também como causas para a expansão do instituto no ordenamento jurídico norte-americano, a partir das últimas décadas do século XIX, a industrialização e o crescimento da população urbana, que trouxeram consigo, para além de toda uma nova gama de demanda judicial extrapenal, o aumento da criminalidade e a necessidade da criação de novos tipos penais,[22] gerando uma enorme sobrecarga judiciária.[23]

No direito federal norte-americano,[24] todo o procedimento referente ao plea bargaining encontra-se delineado na Rule 11 das Federal Rules of Criminal Procedure, especificamente em Rule 11 (c). Oferecida a acusação, em uma fase ainda anterior à instauração da ação penal, realiza-se a arraignment (ou first appearance), uma audiência destinada a esclarecer ao imputado os termos da acusação, em sua natureza e suas consequências, a informá-lo sobre os direitos que lhe assistem [Rule 11 (b) (1)] e a colher dele a declaração de culpa, inocência ou nolo contendere [Rule 11 (a) (1)].

Caso o sujeito se declare inocente (not guilty), abre-se a via do julgamento (trial), geralmente pelo júri popular,[25] com todas as garantias inerentes ao due process of law, inclusive o fundamental ônus, a cargo do Estado, de provar a culpa do acusado para além de qualquer dúvida razoável (beyond any reasonable doubt) [Rule 11 (b) (1) (B) (C) (D) (E)].

Já a declaração de culpado (guilty plea) forma prova suficiente da responsabilidade penal. Por isso mesmo, sua aceitação é cercada de cuidados. Em audiência pública, após prestar juramento, o sujeito deve ser informado de todos os seus direitos e de todas as consequências da declaração de culpa [Rule 11 (b) (1)]. O magistrado deve assegurar-se de que a escolha do imputado tenha sido feita de forma livre e consciente, inclusive com assistência técnica efetiva e qualificada,[26] e ainda de que tenha base factual [Rule 11 (b) (2) (3)].[27] Superados esses requisitos, pode-se passar diretamente à sentencing, portanto com considerável simplificação do procedimento. Assim, ao declarar-se culpado, o imputado renuncia aos direitos fundamentais que lhe assistem e aceita a imposição imediata de uma pena, em geral reduzida em relação àquela que seria correspondente caso preferisse o chamado full trial.

A declaração de culpa pode ser voluntária, acontecendo geralmente quando as provas são largamente desfavoráveis ao imputado e não há qualquer vantagem em negá-la; induzida por motivos estruturais, quando a lei ou o costume estabelece pena mais grave caso se insista no julgamento; ou, finalmente, negociada: este é o campo do plea bargaining.[28]

Assim, plea bargaining, na conceituação de M. Caputo,

è un accordo tra accusa e difesa in forza del quale l’imputato si dichiara colpevole (pleads guilty) rinunciando a difendersi con il massimo dispiegamento delle garanzie processuali tipiche del due process of law, in cambio della promessa del prosecutor – l’organo dell’accusa – di una più benevola riformulazione del capo d’imputazione o di una raccomandazione al giudice per una pena meno rigorosa.[29]

No primeiro caso, fala-se em charge bargaining; no segundo, em sentence bargaining.[30] Ademais desses dois conteúdos mais usuais, anotam-se ainda vários outros possíveis objetos de acordo entre as partes, como a determinação do estabelecimento para cumprimento de pena.[31] Revela-se, dessa forma, a amplíssima discricionariedade persecutória no direito norte-americano[32]: não apenas o prosecutor pode selecionar as infrações que merecem ser perseguidas ou não, pode barganhar o conteúdo da própria acusação, negociando a imputação de apenas um dentre vários fatos típicos, ou de um fato típico menos grave do que aquele apontado pelas provas até então reunidas, ou vários outros benefícios, atinentes à execução da pena. Ademais, não há limitação aos crimes ou às penas que podem ser objeto do acordo entre as partes.

O acordo deve ser entabulado entre o prosecutor e o advogado do investigado. É expressamente vedada a intermediação do juiz nas tratativas [Rule 11 (c) (1)], a fim de preservar sua imparcialidade caso o pacto não seja concluído e também para evitar que a presença do magistrado possa ser um elemento de coação ou intimidação.

Já a manifestação de nolo contendere consiste na declaração de que o imputado não pretende contestar as acusações e, portanto, renuncia a defender-se no processo, sem, porém, reconhecer expressamente a própria culpa. Conquanto a declaração de nolo contendere, como a de culpa, permita a sumarização do processo criminal, com a aplicação imediata de uma pena inferior à que poderia ser aplicada em um full trial, ela não produz efeitos civis e, portanto, não impede que o imputado se declare inocente em outros processos civis referentes aos mesmos fatos.[33] Por isso mesmo, a Rule 11 (a) (3) subordina sua aceitação à avaliação, pelo juízo, das posições das partes (the parties’ views) e do interesse público na eficaz administração da justiça (the public interest in the effective administration of justice). Outra distinção reside na pena a ser irrogada, pois as Federal Sentencing Guidelines preveem redução de pena ao imputado que “assume claramente a própria responsabilidade pelo ilícito” [U.S.S.G § 3º E1.1(a)], e de conseguinte a sanção a ser aplicada diante de uma declaração de nolo contendere deve ser mais severa que aquela a ser aplicada diante de uma declaração de culpa.[34]

Em artigo que é hoje referência histórica sobre o momento em que as declarações de nolo contendere passaram a ser utilizadas com mais frequência nos Estados Unidos, N. Lenvin e E. Meyers, ao tempo em que reportam a grande resistência do público, de prosecutors e das cortes ao instituto, enfatizam que essa manifestação contém uma admissão implícita de culpa do imputado na ação penal em que é pronunciada, e que a única diferença, relativamente ao guilty plea, é que não produz efeitos em um subsequente processo civil sobre os mesmos fatos. Assim, dela decorre uma sentença penal condenatória, com adjudicação de responsabilidade, tanto quanto aquela que tem por fundamento uma declaração de culpa. Essa sentença condenatória deve ser considerada para fins de reincidência e para atacar a credibilidade do imputado, caso sirva de testemunha,[35] e ainda pode ser utilizada para a revogação de determinadas autorizações administrativas.[36] Por todas essas razões, a declaração de nolo contendere é cercada dos mesmos cuidados prescritos para a declaração de culpa [Rule 11 (b) (1)].

N. Lenvin e E. Meyers reportam ainda que, nos Estados Unidos, a grande polêmica em torno da declaração de nolo contendere residia na sua aplicabilidade a crimes mais graves e na possibilidade de aplicação da pena de prisão, pois, sem a explícita admissão de culpa, a sentença condenatória careceria de fundamento suficientemente forte. Chamada a pronunciar-se sobre o assunto no caso Hudson vs. United States, a Suprema Corte norte-americana firmou a possibilidade de condenação a pena de prisão, e da decisão dessume-se que a declaração apenas não pode ser admitida em crimes punidos com a pena capital ou prisão perpétua.[37]

Como se verá mais adiante, os institutos negociais italianos e brasileiros guardam muitas semelhanças com o nolo contendere. Todavia, quando de sua introdução nos respectivos ordenamentos, não houve a compreensão de que a anuência do imputado contivesse uma implícita admissão de culpa, e desse fato decorreram vários problemas que tornam conturbada a aplicação dos institutos negociais em ambos os países até os dias de hoje.

Embora não mencionada na Rule 11 (a) (1), deve-se ainda aludir à chamada Alford plea, consistente na declaração de culpa com a ressalva, contemporânea ou sucessiva, da inocência. A possibilidade foi validada pela Supreme Court no caso North Carolina v. Alford (1970), ao principal argumento de que a via do acordo pode ser uma decisão racional tomada no melhor interesse do imputado.[38] A Alford plea distingue-se do nolo contendere em que a sentença produz coisa julgada nas causas civis correlatas.[39]

O plea bargaining é reconhecidamente o modo ordinário de resolução dos casos criminais nos Estados Unidos, estimando-se que 90% de todos eles sejam extintos com a declaração de culpa do imputado.[40] Essa constatação faz comum a afirmação de que, sem o instituto, todo o sistema de justiça norte-americano entraria em colapso, pois dependeria inteiramente da via cara e morosa do jury trial.

Apesar de consagrado na prática forense e validado repetidamente pela Supreme Court,[41] o plea bargaining colhe duras críticas.[42] Entre as mais frequentes, destacam-se as de que, no altar da eficiência, o instituto sacrifica a justiça, pois acentua a desigualdade das partes, concentra enormes poderes em mãos da acusação e assim favorece pressões que prejudicam a voluntariedade do acordo, inclusive com a formulação de imputações mais graves e/ou mais numerosas do que o devido (overcharging); viola garantias constitucionais dos acusados; permite a condenação de inocentes, que pelas mais variadas razões podem preferir o acordo a sujeitar-se ao risco do processo, enquanto trata de forma leniente os culpados, aos quais premia com reduções de pena e outros benefícios; e, no caso das charge bargainings, compromete a verdade real e distorce as estatísticas, prejudicando a elaboração de políticas criminais.[43]

Mas ainda mais criticados – merecidamente, a nosso ver – são o nolo contendere e a Alford plea. De fato, ao formular a guilty plea e celebrar acordo, o imputado expressamente reconhece sua culpa e coerentemente recebe punição. Mas, como aponta M. Caputo, os institutos de nolo contendere e Alford plea permitem que o culpado continue a protestar inocência ou se recuse a admitir sua culpa, prejudicando a finalidade reeducativa da pena, violando a moralidade que deveria ser subjacente ao sistema de justiça e deixando insatisfeitas as vítimas e seus familiares. Ademais, confundem a opinião pública, ao declarar culpadas pessoas que assim não se reconheceram expressamente, ou que, pior ainda, no caso da Alford plea, se declararam inocentes, tudo isso sem fundamento em um julgamento ordinário e na produção de provas que lhe é inerente. Ainda, e o que talvez seja mais grave, a declaração de nolo contendere possui menor eficácia deflativa que o plea bargaining, porque não espraia todos os efeitos de uma condenação, e assim multiplica as contendas civis. Por todas essas razões, as declarações de nolo contendere e Alford plea são desencorajadas pela política do Departamento de Justiça norte-americano e muitas vezes são recusadas por juízes e prosecutors.[44]

3 A aplicação da pena a pedido das partes

3.1 A introdução do instituto: a reforma de 1989

Nos últimos anos, o sistema processual italiano, herdeiro das raízes de civil law e, portanto, marcadamente inquisitorial, sofreu ousadas reformas adversariais, motivadas por aspirações ao devido processo, notadamente a preservação da imparcialidade do juiz, que o transformaram em um sistema do tipo acusatório. A partir de 1989, primeiro com a substituição do Codice Rocco mussoliniano e, posteriormente, mediante reformas legislativas pontuais, o juiz tornou-se um espectador imparcial da atividade das partes, as quais, dotadas de poderes equilibrados, foram alçadas a protagonistas do processo.

Assim, foi extinto o juiz instrutor na fase preparatória, “la figura di magistrato-investigatore più emblematica del sistema continentale”,[45] substituído pelo juiz das investigações preliminares, encarregado do controle da atividade do Ministério Público e da garantia dos direitos das partes. Ministério Público e defesa tornaram-se incumbidos da colheita das provas na fase pré-processual, podendo cada parte conduzir suas próprias investigações. Criou-se a divisão clara entre a fase investigatória e a fase processual, de modo a evitar a redução da instrução “ad una verifica a posteriori dei risultati istruttori”,[46] e ainda o incidente probatorio, destinado à formação da prova irrepetível em juízo.

Também na fase processual, as partes passaram a protagonistas na iniciativa e na produção probatória. O juiz, antes detentor de papel ativo na instrução do feito, passou a desempenhar papel passivo, podendo apenas excepcionalmente determinar a produção de alguma prova, de forma complementar e residual. Foram adotadas a direct e a cross-examination como formas de inquirição de testemunhas no juízo oral.

Embora tenham passado a deter disponibilidade probatória, as partes não adquiriram disponibilidade sobre o objeto do processo. Manteve-se assim o princípio da obrigatoriedade da ação penal, plasmado no artigo 112 da Constituição italiana, como projeção processual dos princípios da legalidade e da igualdade de todos perante a lei e também como garantia de independência do Ministério Público no exercício de suas funções.[47]

Em uma outra ponta, o legislador italiano buscou imprimir eficiência à resposta penal,[48] criando instrumentos de simplificação e celeridade procedimental e ampliando o espaço de consenso no processo. Assim, foram introduzidos no sistema procedimentos que omitem alguma fase do rito ordinário: no giudizio direttissimo e no giudizio immediato, a celeridade advém da menor dificuldade do accertamento; no giudizio abbreviato, no procedimento por decreto e na applicazione della pena su richiesta delle parti, o imputado renuncia ao dibattimento, a fase mais longa do processo e aspecto fundamental do direito de defesa, em troca de prêmios.

Nesse contexto de reformas adversariais, a tradução do plea bargaining na Itália foi mais fiel ao sistema americano do que em outros países da Europa Continental,[49] com os temperamentos fundamentais da manutenção do princípio da obrigatoriedade da ação penal e a adoção de medidas para impedir que o acordo entre as partes pudesse subverter a verdade sobre os fatos.[50]

3.2 Breve histórico sobre a evolução do instituto

O antecedente histórico do atual patteggiamento, instituído para infrações penais punidas com pena privativa de liberdade de curta duração, foi a aplicação das sanções substitutivas a pedido do imputado, criada com a Lei nº 689, de 24 de novembro de 1981. Por esse instrumento, disciplinado nos arts. 77 a 85 da referida lei, o imputado, renunciando ao dibattimento, podia solicitar a substituição da pena detentiva de até três meses por liberdade controlada, ou da pena detentiva de até um mês por pena pecuniária. O pedido competia apenas ao imputado, porém, era necessário o consentimento prévio do Ministério Público, e somente podia ser concedido a quem não houvesse ainda sido beneficiado com a mesma substituição de pena e não contasse prévia condenação a pena detentiva. Ao imputado que formulasse o pedido, além da substituição da pena detentiva, a lei concedia os prêmios da exclusão de penas acessórias e misure di sicurezza, salvo o confisco obrigatório.

Verificada a presença dos requisitos objetivos e subjetivos, e desde que entendesse não ser o caso de extinção do processo por uma causa de absolvição imediatamente reconhecível [o chamado proscioglimento, previsto no atual art. 129 do Código de Processo Penal italiano (c.p.p.)], o juiz aplicava a substituição solicitada, que não era passível de suspensão condicional, e declarava, desde logo, extinta a infração penal. A sentença, inapelável, sujeitava-se apenas a ricorso per cassazione.

O ato decisório não produzia efeitos civis e era registrado apenas para evitar nova concessão do benefício. A sentença não formava título executivo: o descumprimento da sanção patteggiata pelo imputado constituía infração autônoma, punida com reclusão de seis meses a três anos.[51]

A impossibilidade de concessão da substituição da pena em razão do dissenso do Ministério Público foi alvo de acirrados debates, e logo a Corte Costituzionale, por meio da Decisão nº 120, de 30 de abril de 1984, esclareceu que, diante do princípio constitucional da autonomia do juiz na aplicação da lei penal (art. 101 comma 2º), a manifestação contrária da acusação não vinculava o magistrado, o qual detinha sempre o poder de deferir o pedido do imputado. Assim, embora a lei originariamente previsse uma forma de acordo entre as partes, nesse sentido a característica contratual não resistiu ao juízo constitucional.[52]

Controvertidas também eram as questões acerca da natureza jurídica da sentença e da sanção por ela aplicada, se detinham natureza administrativa ou penal ou, ainda, se constituiriam uma terceira espécie de provimento. Discutia-se também sobre a necessidade, ou não, de accertamento da responsabilidade do imputado. Sobre todas essas questões a lei era omissa, e tais indagações sobre a natureza da sentença e sobre se ela encerra, ou não, juízo de culpabilidade persistem mesmo em seu formato atual.[53]

A escassa eficácia deflativa do instituto, aplicável apenas a poucas infrações e menos vantajoso para o imputado que outras alternativas legais à sua disposição,[54] orientou a sua remodelagem no novo Codice di Procedura Penale, no qual teve previsão alargada a um maior contingente de delitos e a perspectiva de prêmios mais atraentes.

Assim, foi criada a “applicazione della pena su richiesta delle parti” (arts. 444 e ss. c.p.p.), de iniciativa tanto do imputado quanto do Ministério Público, prevista para um raio mais dilatado de infrações penais e abrangendo a aplicação de outras sanções, para além da simples substituição da pena detentiva de breve duração. Ademais, a pena patteggiata passou a comportar a suspensão condicional.

Dessa forma, a possibilidade do patteggiamento passou a abranger as infrações para as quais fosse solicitada a aplicação de pena privativa de liberdade de no máximo dois anos, computadas todas as circunstâncias e a redução premial, de no máximo um terço.

Originariamente, previa-se controle judicial apenas sobre a presença de causas de proscioglimento previstas no art. 129 c.p.p.,[55] a qualificação jurídica e as circunstâncias do fato, sopesadas pelas partes. Mais uma vez, a Corte Costituzionale interveio e, por meio da Decisão nº 313, de 02 de julho de 1990, dilargou a verificação judicial,[56] que passou a abarcar também a avaliação da congruência da pena em relação à sua finalidade reeducativa, em consonância com o art. 27 comma 3º da Constituição italiana. Assim, também sob este outro aspecto foi limitada a feição contratual do instituto, restringindo-se a autonomia das partes ao dosar a pena acordada.

Nos anos seguintes, o legislador procurou sempre aumentar o raio de ação do instituto e afastar os muitos questionamentos que contra ele se levantavam. Com a Lei Constitucional de 23 de novembro de 1999, reformou o artigo 111 da Constituição italiana, inserindo entre os princípios do giusto processo sua razoável duração e autorizando que a definição do accertamento, em regra realizado em contraditório, se fizesse pelo consenso entre as partes.[57]

A despeito de todos os esforços para reduzir a sobrecarga judiciária e agilizar os processos, sucessivas condenações da Itália pela Corte Europeia de Direitos Humanos por violações ao direito a um julgamento em prazo razoável, além do grande número de processos que eram extintos sem resultado prático em virtude da prescrição,[58] impeliram o legislador italiano a aumentar mais uma vez a abrangência do patteggiamento. A Lei nº 134, de 12 de junho de 2003, criou, ao lado do patteggiamento tradicional, o chamado patteggiamento allargato, previsto para um número maior de infrações penais, sob requisitos mais rigorosos e com previsões premiais mais reduzidas.

3.3 Patteggiamento tradizionale e patteggiamento allargato: raio de aplicação, requisitos, prêmios e rito

O patteggiamento é configurado atualmente como um instituto consensual e deflativo, que antecipa a decisão de mérito, mediante o qual as partes renunciam à formação da prova em contraditório, formulam uma reconstrução conjunta dos fatos históricos e pedem ao juiz a aplicação de uma pena por elas acordada, que sofre redução de até um terço relativamente à pena que poderia ser aplicada caso o processo tomasse o rito ordinário.

O patteggiamento tradicional permite a aplicação de uma sanção substitutiva ou de uma pena pecuniária, ou de uma pena privativa de liberdade de até dois anos, conjuntamente ou não com a pena pecuniária (art. 445 c.1 c.p.p.), enquanto o patteggiamento allargato permite a aplicação de uma pena privativa de liberdade de dois anos e um dia até cinco anos, conjuntamente ou não com a pena pecuniária (art. 444 c.1 c.p.p.).[59]

Em alguns crimes contra a Administração Pública, a admissibilidade do patteggiamento é condicionada à restituição integral do prezzo (a remuneração prometida em troca da prática delitiva) ou do proffito (os ganhos, não exclusivamente patrimoniais) do crime (art. 444 c.1-ter c.p.p.) e, em crimes tributários, ao pagamento do débito tributário (art. 13-bis c.2 do d. lgs. nº 74, de 10 de março de 2000). Nos crimes ambientais, a sentença que aplica a pena a pedido das partes deve ordenar a recuperação e, quando possível, a repristinação do estado anterior (art. 452-duodecies c.p.). O patteggiamento é excluído do procedimento contra menores (art. 25 c.1 d.P.R. nº 448 de 1988) e da jurisdição do juiz de paz (d.lgs. nº 274 de 2000).

Comum a ambas as espécies de patteggiamento é a redução premial de até um terço da pena, que opera uma vez computadas as circunstâncias e eventual aumento pelo concurso formal ou crime continuado. Ademais, a sentença que aplica a pena acordada, que não é tornada pública,[60] não irradia efeitos vinculantes nos juízos civil e administrativo, nem mesmo quando pronunciada depois do encerramento da instrução, salvo em giudizio di impugnazione (arts. 445 c.1-bis e 448 c.3 c.p.p.). Se há eventual constituição de parte civil no processo, o juiz não pode decidir sobre sua demanda, porém, o imputado é condenado a pagar suas despesas, salvo justo motivo para compensação (art. 444 c.2 c.p.p.). Exceção a essa regra é feita ao procedimento disciplinar.[61]

Afora esses traços comuns, o âmbito de aplicação, os requisitos e os demais prêmios são diferentes para uma e outra modalidade de patteggiamento.

Não há requisitos objetivos ou subjetivos para o patteggiamento tradicional, que pode ocorrer em todas as infrações penais, observados os limites da pena acima mencionados, e independentemente de o imputado revelar tendência delitiva ou até mesmo ser reincidente. Além da redução da pena em até um terço, o imputado é premiado com a isenção do pagamento das despesas processuais e não é condenado a penas acessórias, salvo a interdição dai pubblici uffici (que abrange a perda e a incapacitação para o desempenho de cargos públicos) e a incapacidade de contratar com o poder público, em determinados crimes contra a Administração Pública (art. 445 c.1-ter c.p.p.).[62] O imputado tampouco é condenado a misure di sicurezza, exceto o confisco, seja ele obrigatório, seja facultativo (art. 445 c.1 c.p.p.). A sentença que aplica a pena a pedido das partes não é mencionada no certificato generale del casellario giudiziale solicitado pelo particular (art. 24, c.1, lett. e, do d.P.R. nº 313, de 14 de novembro de 2002), evitando-se, assim, a estigmatização da sanção penal. Ademais, diversamente de como ocorria com a aplicação de sanções substitutivas a pedido do imputado, regulada pela Lei nº 689, de 24 de novembro de 1981, o pedido pode ter sua eficácia condicionada à suspensão condicional da pena (art. 444 c.3 c.p.p.); caso entenda que o imputado não faz jus ao benefício, o juiz deve rejeitar o acordo in totum. Ainda, salvo se o beneficiário se subtrair voluntariamente à execução da pena pactuada (art. 136 att. c.p.p.), o crime é extinto após o decurso de cinco anos da sentença, sem o cometimento de outro delito, ou de dois anos, sem o cometimento de uma contravenção da mesma índole daquela que constituíra objeto do acordo. Nesse caso, extinguem-se todos os efeitos penais, e a sentença que tiver aplicado uma pena pecuniária ou uma sanção substitutiva não impede a concessão de uma sucessiva suspensão condicional da pena (art. 445 c.2 c.p.p.).

O patteggiamento allargato, de sua vez, sujeita-se a requisitos mais restritos, pois é excluído para determinados crimes de particular gravidade (art. 444 c.1 c.p.p.), como os de associação mafiosa (art. 416-bis c.p.) e terrorismo (art. 51 c.3-quater c.p.), e para imputados declarados delinquentes habituais, profissionais ou por tendência, ou reincidentes na forma do art. 99 c.4 do Código Penal (art. 444 c.1 c.p.p.). Tratando-se de infrações de maior gravidade que aquelas para as quais é cabível o patteggiamento tradicional, o prêmio resume-se à redução da pena em até um terço.

O pedido pode ser formulado conjuntamente pelas partes, ou por uma delas, com o consentimento da outra, desde a fase investigativa[63] – portanto, antes mesmo do exercício da ação penal – até a apresentação das conclusões, na udienza preliminare, ou, nos ritos privados dessa fase, até a fase predibattimentale. O acordo, contendo um projeto de sentença com a reconstrução dos fatos, com todas as suas circunstâncias, sua qualificação jurídica e a espécie e o quantum da pena pactuada, é então submetido à avaliação do juiz, que, no estado em que se encontrar o feito, deverá fiscalizar a ausência de uma das causas de proscioglimento elencadas no art. 129 c.p.p., a correção da qualificação jurídica e da avaliação das circunstâncias pelas partes, bem como a congruência da pena (art. 444 c.2 c.p.p.).[64] Deve também certificar-se da voluntariedade do pedido ou do consenso do imputado, para tanto podendo ordenar seu comparecimento pessoal (art. 446 c.5 c.p.p.).

O juiz pode acolher ou rejeitar o pedido, porém, não tem o poder de modificar o acordo, aplicando sanção diversa daquela que foi pactuada entre as partes ou alterando a imputação. Tampouco pode ordenar a integração probatória: eventual dúvida sobre a culpa do imputado (salvo a falta de mínimo lastro probatório, que cede lugar à sentença de proscioglimento ex art. 129 c.p.p.) não autoriza a rejeição do acordo.[65]

Caso o Ministério Público manifeste contrariedade à avença (art. 446 c.6 c.p.p.), fica preclusa a via célere da aplicação imediata da pena, porém, o imputado não perde o direito à redução de pena e a todos os benefícios decorrentes do patteggiamento, que podem ser concedidos pelo juiz, ao final da instrução, caso entenda infundada a recusa da acusação (art. 448 c.1 c.p.p.).[66] Assim, como já se anotou, não há sempre um verdadeiro acordo entre as partes.

Nem mesmo a recusa judicial ao acordo, seja na fase investigativa, seja na udienza preliminare, preclui a possibilidade do prêmio, pois o pedido pode ser renovado ao magistrado responsável pela fase sucessiva, até mesmo em giudizio di impugnazione (art. 448 c.1 c.p.p.).

A sentença que aplica a pena acordada é inapelável, salvo se o Ministério Público tiver dissentido do pedido formulado pelo imputado (art. 448 c.2 c.p.p.), porém, sujeita-se a ricorso per cassazione, com fundamentação limitada (art. 448 c.2-bis c.p.p.),[67] e também a procedimento per revisione (art. 629 c.p.p.). Diversamente de como ocorria com a aplicação de sanções substitutivas a pedido do imputado, regulada pela Lei nº 689, de 24 de novembro de 1981, a sentença forma título executivo, como qualquer sentença penal condenatória, à qual, salvo disposições legais específicas em contrário, é expressamente equiparada pelo art. 445 c.1-bis c.p.p.

3.4 Questões controversas

O problema da natureza jurídica da sentença que aplica a pena a pedido das partes (ou, como já visto, de apenas uma delas, o imputado), e se tal decisão encerra, ou não, pronunciamento sobre a responsabilidade do condenado, permanece aberto na doutrina italiana. As discussões acirraram-se após a criação do patteggiamento allargato, com a possibilidade de aplicação da pena a crimes de maior gravidade, sem o accertamento di colpevolezza em processo judicial contraditório.

Como já mencionado, o art. 445 c.1-bis c.p.p. equipara expressamente a sentença que aplica a pena a pedido das partes à sentença condenatória, salvo disposição legal em contrário. Todavia, a sentença é prolatada allo stato degli atti, ou seja, em regra com base apenas no material coletado durante as investigações, e não exige que o imputado admita culpa ou mesmo confesse. Assim, a sentença, embora irrogue pena, não encerra juízo cognitivo da culpabilidade, mas apenas constata a ausência de uma das causas de não punibilidade previstas no art. 129 c.p.p. Tais circunstâncias fazem patente a diferença qualitativa entre a sentença que aplica a pena a pedido das partes e a sentença condenatória, e levantam toda a sorte de debates sobre a legitimidade do instituto frente às garantias do giusto processo, mesmo após a reforma do artigo 111 da Constituição italiana.

Por sua vez, o legislador cria equiparações que têm por pressuposto o acertamento da culpabilidade por parte de quem patteggia, o que contribui para o acirramento das discussões. Assim, por exemplo, a já mencionada vinculação da autoridade administrativa disciplinar à sentença que aplica a pena a pedido das partes, no que diz respeito ao acertamento da subsistência do fato, de sua antijuridicidade e da responsabilidade do condenado, que inclusive já foi validada pela Corte Costituzionale. Da mesma forma na normativa especial antimáfia, em que, para fins de prevenção criminal, o status de condenado por uma sentença que aplica pena a pedido das partes é equiparado àquele decorrente de uma sentença condenatória comum.[68]

A mesma estrada parece percorrer a jurisprudência, que, após a criação do patteggiamento allargato, passou a considerar a sentença que aplica a pena a pedido das partes hábil a provocar a revogação da suspensão condicional da pena ex art. 168 c.1 n.1 c.p. Esse alvitre foi validado pelas Sezione Unite da Corte di Cassazione, ao fundamento de que tais sentenças produzem sempre os efeitos ordinários da condenação, salvo disposição expressa de lei em contrário.[69]

Assim, cada vez mais legislador e jurisprudência reconhecem a natureza prevalentemente condenatória das sentenças de patteggiamento e validam efeitos ligados ao reconhecimento de culpabilidade em tais decisões judiciais.[70]

3.5 Plea bargaining, nolo contendere e patteggiamento

Ao traduzir o instituto norte-americano, ora o legislador, ora a evolução jurisprudencial ditaram sensíveis diferenças entre o patteggiamento e o plea bargaining. A primeira delas reside nos limites às infrações penais às quais é aplicável a negociação da pena entre as partes: enquanto o plea bargaining em tese pode ser aplicado a quaisquer crimes, o patteggiamento é restrito seja pelo quantum da pena, de dois ou cinco anos, seja pela natureza do delito. O quantum da redução, que tampouco conhece limites apriorísticos no instituto norte-americano, é limitado a um terço na tradução italiana. Por fim, não se admite a negociação sobre os fatos ou a qualificação jurídica da imputação, tampouco a possibilidade de o Ministério Público deixar de agir por motivos de conveniência ou oportunidade. Os fundamentos apontados para todas essas limitações são a ambivalência em relação ao plea bargaining, em razão dos muitos questionamentos que lhe são dirigidos no confronto com o giusto processo,[71] e também o fato de que o tradutor pretendeu reduzir a resistência ao novo instituto, tendo em vista as naturais dificuldades de adaptação de um mecanismo de common law a um ordenamento de civil law com forte tradição inquisitorial.[72]

A segunda notável diferença está em que, no patteggiamento, não há explícita admissão de culpa pelo imputado, mas a simples renúncia ao direito de resistir à pretensão punitiva em um giusto processo litigioso. Assim, não apenas deixam de ser irradiados todos os efeitos próprios a uma sentença condenatória ordinária, inclusive nas esferas civil e administrativa, mas o juiz pode absolver o imputado se entender presente alguma das causas de não punibilidade do art. 129 c.p.p. Todos esses traços distintivos do patteggiamento refletem mais uma vez as preocupações do tradutor com o giusto processo, especialmente a cláusula constitucional de não culpabilidade.

A terceira diferença é a possibilidade de o juiz aplicar a redução de pena e todos os demais prêmios decorrentes do patteggiamento a despeito do dissenso da parte acusadora, o que colide frontalmente com o instituto norte-americano, de feição contratualista.

O patteggiamento assemelha-se mais ao instituto do nolo contendere, em que tampouco há admissão explícita de culpa e não se espraiam os efeitos civis da sentença que aplica a pena a pedido das partes. É importante relembrar, porém, que, na jurisprudência norte-americana, a declaração de nolo contendere contém uma implícita admissão de culpa para o processo em que é feita, e, portanto, as perplexidades com que se deparam os operadores italianos ao tentar definir a natureza da sentença que aplica a pena a pedido das partes não afligem os colegas dos Estados Unidos.

Dessa opção do tradutor italiano decorrem vários problemas, de ordem interpretativa, como aqueles mencionados no subitem 4.4, e de ordem prática, como apontam as críticas que se fazem, no sistema americano, à declaração de nolo contendere, na parte final do item 3.[73] No Brasil, as perplexidades com a aplicação de pena por acordo entre as partes, sem o reconhecimento de culpa, acabaram resultando na pequena eficácia da transação penal, como se passará a expor.

4 A transação penal

4.1 A introdução do consenso no processo penal brasileiro: o microssistema dos juizados especiais criminais

A janela de oportunidade para a evolução do processo penal inquisitorial brasileiro em direção ao sistema acusatório e a introdução do consenso veio com a promulgação da Constituição da República em 05 de outubro de 1988, que coroou a volta do governo civil após vinte e um anos de ditadura militar. Os dispositivos legais anteriores, que previam a possibilidade de o juiz atuar como magistrado inquisidor, perderam eficácia diante da nova Constituição, e reformas legislativas posteriores, pontuais, introduziram cada vez mais instrumentos visando à instituição de um processo de partes.[74] A negocialidade no processo penal foi expressamente tratada no artigo 98, inciso I, da Carta, que previu a instituição, pela União e pelos estados-membros, de juizados especiais competentes para as infrações penais de menor potencial ofensivo, permitida a transação.

Assim, em 26 de setembro de 1995, foi publicada a Lei nº 9.099, que criou os juizados especiais criminais e instituiu um microssistema voltado a infrações de reduzido potencial ofensivo, inaugurando no Brasil o novo modelo, consensual, de justiça criminal.

A ideia central do microssistema dos juizados especiais criminais foi a de conferir celeridade e efetividade à justiça penal, evitando que as delongas do processo tradicional, em casos de baixa complexidade e pequeno potencial ofensivo – que, ainda assim, carecem de resposta estatal –, resvalassem na prescrição, para descrédito da Justiça. Pretendia-se ainda evitar a estigmatização do processo e a aplicação da pena privativa de liberdade a quem houvesse praticado uma infração de menor gravidade, afastando-se o nocivo contato do autor do fato com o sistema carcerário. Por fim, tencionava-se promover a conciliação entre o ofensor e o ofendido, além de privilegiar a reparação dos danos à vítima, figura central do fenômeno criminoso cujos interesses, até então, eram relegados a uma solução morosa e insatisfatória.

Ao lado disso, como destacou a própria exposição de motivos da Lei nº 9.099, de 1995, era preciso regular a discricionariedade no exercício da ação penal pública, informalmente praticada a despeito do princípio da obrigatoriedade, com a introdução de critérios que permitissem conduzir a seleção dos casos de maneira racional e igualitária e com obediência a determinadas escolhas políticas.[75]

Assim, foram criados os juizados especiais criminais, norteados pelos princípios de oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, e ainda pela composição dos danos civis à vítima e pela aplicação de pena não privativa de liberdade (art. 62).

No plano processual, foi criado o rito simplificado e célere dos arts. 77 e seguintes, com a previsão de manifestação defensiva, instauração da ação penal, instrução e sentença em audiência única. Ademais, todos os atos processuais foram desburocratizados (arts. 64 a 67).

A Lei nº 9.099, de 1995, lançou mão de várias medidas despenalizadoras, alargando o campo da ação penal pública condicionada à representação (art. 88) e estabelecendo que o acordo homologado judicialmente entre o autor do fato e a vítima ou seus representantes para reparação dos danos, ademais de criar título executivo judicial, acarretava a renúncia ao direito de queixa, na ação penal privada, ou de representação, na ação penal pública condicionada, com a conseguinte extinção da punibilidade (art. 74).

Por fim, a Lei nº 9.099, de 1995, criou dois novos institutos despenalizadores e consensuais, conformando os institutos da transação penal (art. 76) e da suspensão condicional do processo (art. 89).[76]

4.2 Características do instituto

A transação penal foi o primeiro instrumento de justiça penal consensual no Brasil, instituída por meio do artigo 76 da Lei nº 9.099, de 1995. Inspirado na legislação italiana e portuguesa, o instituto consiste em um acordo entre as partes sobre a aplicação imediata de medida[77] não privativa de liberdade. A possibilidade desse tipo de pacto entre o Ministério Público e o chamado “autor do fato” restringe-se às infrações penais de menor potencial ofensivo, assim entendidas as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos,[78] cumulada ou não com multa, excluídas as infrações que envolvam violência doméstica ou familiar contra a mulher, de acordo com o artigo 41 da Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006. Ademais, para que seja possível a pactuação, é necessário que o autor do fato preencha determinados requisitos subjetivos e objetivos, todos indicadores de sua baixa periculosidade. Assim, a proposta não é admissível se o autor do fato houver sido condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva; se nos cinco anos anteriores tiver sido já beneficiado pela transação penal; ou se seus antecedentes criminais, sua conduta social e sua personalidade, bem como os motivos e as circunstâncias da infração, não indicarem que a medida será suficiente no caso concreto (art. 76, § 2º).

Por meio da transação penal, examinadas, prima facie, a tipicidade, a antijuridicidade, a imputabilidade e a não ocorrência da prescrição, Ministério Público e autor do fato acordam a aplicação imediata de restrição de direitos ou multa (arts. 43 e 49 do Código Penal), sendo excluída a possibilidade de pactuação de privação de liberdade. Por disposição legal expressa, é exigida também a concordância do advogado do autor do fato aos termos da transação (art. 76, § 3º). O acordo desenrola-se, portanto, antes da instauração de ação penal. O cumprimento da avença acarreta a extinção da punibilidade do fato e não implica a configuração de antecedentes ou reincidência, apenas impedindo que o mesmo benefício seja novamente concedido nos cinco anos seguintes (art. 76, §§ 4º e 6º). Ademais, caso seja prevista somente a multa, esta poderá ser reduzida pelo juiz à metade, por decisão fundamentada[79] (art. 76, § 1º).

A discricionariedade do Ministério Público limita-se à análise do preenchimento dos requisitos do acordo, à escolha da medida, se restritiva de direitos ou multa, ao valor da multa e à seleção da medida restritiva de direitos mais adequada, dentre aquelas elencadas no art. 43 do Código Penal brasileiro. Diante do fato aparentemente típico, antijurídico e culpável, o Ministério Público não tem o juízo de conveniência ou oportunidade da transação penal; vige, portanto, plenamente nesse aspecto o princípio da obrigatoriedade. Ademais, a transação penal somente é cabível nas infrações penais de menor potencial ofensivo, e, como no sistema italiano, as partes não podem negociar o fato histórico e sua qualificação jurídica, isto é, convencionar que a fattispecie violada tenha sido outra, de menor gravidade. Por outras palavras, também no Brasil é inadmissível o charge bargaining.

Em uma marcante diferença relativamente ao modelo italiano, a transação penal não é precedida da investigação do evento aparentemente delituoso. A possível responsabilidade do autor do fato é simplesmente documentada em um termo circunstanciado de ocorrência (TCO), do qual constam apenas uma breve exposição dos fatos e a indicação de autor do fato, vítimas e testemunhas, além da requisição de exames periciais, quando necessários (art. 69). Por isso, é correto dizer que, no sistema brasileiro, a transação penal prescinde da verificação da justa causa,[80] mesmo em casos eventualmente complexos, nos quais a remessa ao juízo comum é determinada após a oportunidade do acordo, quando então poderá ser realizada a investigação necessária ao oferecimento da denúncia (art. 77, § 2º).[81]

Ao autor do fato, que, após a lavratura do termo, é imediatamente encaminhado ao juizado ou assume o compromisso de a ele comparecer, não se impõe prisão em flagrante, nem se exige fiança (art. 69, parágrafo único).

O acordo é formalizado em audiência, com a presença das partes, do advogado do autor do fato e do juiz, por quem será homologado. Nas infrações penais cuja persecução é condicionada à representação da vítima ou de seus representantes, também é necessária a presença destes últimos à audiência, para a tentativa de conciliação e composição civil dos danos.

A lei é omissa sobre o conteúdo da verificação judicial do acordo. Tem-se entendido que recai sobre a verificação da inexistência de causas de extinção da punibilidade, da presença dos requisitos objetivos e subjetivos da transação penal e da legalidade da medida acordada. Ademais, o juiz deve verificar que a manifestação do autor do fato seja informada e voluntária.[82]

A transação penal não significa admissão de culpa, tampouco gera efeitos civis ou administrativos.

Diversamente de como ocorre com o patteggiamento, porém, se o autor do fato deixar de cumprir as obrigações assumidas no acordo, o Ministério Público não dispõe de título executivo; resta-lhe apenas exercitar a ação penal, oferecendo denúncia, caso presentes suas condições, e o processo então se desenrolará de acordo com o rito abreviado previsto nos artigos 77 e seguintes da Lei nº 9.099, de 1995.[83] Pela mesma razão, a homologação da transação penal não desencadeia os efeitos da sentença penal condenatória, como a perda do produto ou proveito do crime.[84]

A execução da sentença homologatória da transação penal era expressamente prevista nos arts. 85 e 86 da Lei nº 9.099, de 1995. Todavia, após a edição da lei, houve intensos debates sobre a natureza jurídica da sentença, se condenatória, meramente homologatória ou um tertium genus. Como na Itália, a discussão centrava-se na aplicação de pena a despeito de não ter havido acertamento da responsabilidade,[85] com a agravante de que, como visto, no sistema brasileiro, a transação penal não é sequer precedida da investigação dos fatos. O Supremo Tribunal Federal por fim entendeu que a execução forçada da pena pactuada e aplicada sem o exercício de defesa, o contraditório e a prova da culpa feriria a cláusula constitucional do devido processo legal e afastou definitivamente essa possibilidade.[86]

A dizer a verdade, portanto, grande parte da eficácia do instituto é comprometida no sistema brasileiro, porque, durante o período de cumprimento do acordo, não há suspensão da prescrição, por falta de previsão legal.[87] Dessarte, formalizado e descumprido o acordo, até que o Ministério Público exercite a ação penal, ocasionalmente após a realização de investigações complementares, em muitos casos a pretensão punitiva encontrar-se-á já extinta pela prescrição.

A transação penal, assim, não substitui o processo, mas constitui uma alternativa apenas eventual a ele, dependente do cumprimento voluntário do acordo pelo autor do fato. Essa visão de justiça consensual permanece na cultura jurídica brasileira, e influenciou os contornos do acordo de não persecução penal, como se verá adiante.

A sentença que homologa a transação penal é apelável, porém, as razões de recurso são naturalmente limitadas em comparação às sentenças oriundas de processos penais litigiosos; a apelação deve restringir-se à alegação de vício do consentimento ou de aplicação, na sentença, de medida diversa daquela transacionada.[88]  A Lei nº 9.099, de 1995, não prevê recurso específico contra a decisão judicial que não homologa o acordo, pelo que a doutrina defende o manejo de ações autônomas de impugnação, como o mandado de segurança contra ato jurisdicional ou o habeas corpus.[89] A decisão proferida em grau de recurso desafia recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal.[90]

Em mais uma marcante diferença entre os sistemas italiano e brasileiro, a transação penal, conquanto benéfica ao autor do fato, não é um direito subjetivo, e por essa razão não cabe ao Poder Judiciário concedê-la à revelia do Ministério Público. Caso o órgão de acusação entenda por sua inaplicabilidade no caso (sempre por manifestação fundamentada[91]) e o juiz discorde desse alvitre, a este último resta remeter a questão ao órgão revisor interno do próprio Ministério Público, preservando-se, por esse modo, a titularidade da ação penal própria do modelo acusatório.[92]

A transação penal não implica declaração de culpa, tampouco permite acordo entre as partes sobre os fatos e sua qualificação jurídica, mais se assemelhando, como a tradução italiana na qual se inspirou, à declaração de nolo contendere. O Ministério Público encontra-se ainda obrigado a agir diante da notícia da prática de uma infração penal de menor potencial ofensivo, não pode transacionar sobre a qualificação jurídica do fato e sua proposta jamais pode envolver uma medida privativa de liberdade. Por isso, fala-se em regramento da discricionariedade do órgão acusador.

5 O acordo de não persecução penal

A criação dos juizados especiais criminais não solucionou o problema da enorme sobrecarga judiciária brasileira, até porque se dirigiu a um espectro bastante restrito, o de infrações penais de menor potencial ofensivo. A duração razoável dos processos judiciais, garantia fundamental insculpida no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal,[93] tornou imperativa uma nova solução. Assim, a recentíssima Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019,[94] fez inserir no Código de Processo Penal brasileiro o art. 28-A, criando o acordo de não persecução penal (ANPP).[95]

Trata-se de negócio jurídico de feição premial, que acontece na fase pré-processual, por meio do qual o investigado confessa a prática criminosa e aceita submeter-se a determinadas condições, pactuadas com o Ministério Público, em troca de não ser ajuizada em seu desfavor a ação penal. Homologado judicialmente o acordo e cumpridas as condições, é decretada a extinção da punibilidade (art. 28-A, § 3º, CPP), e o fato não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para evitar nova concessão do benefício no prazo de cinco anos (art. 28-A, § 12, CPP). Ademais, a despeito da confissão, a decisão judicial que homologa o ANPP não comporta juízo sobre a responsabilidade do aceitante, e por isso não produz efeitos civis ou administrativos. O eventual descumprimento do acordo pelo aceitante acarreta o exercício da ação penal com a imputação do crime que constituía objeto do ANPP.

O espectro de abrangência do ANPP é bastante amplo: abarca as infrações penais com pena mínima inferior a quatro anos, computadas eventuais causas de aumento e diminuição (art. 28-A, § 1º, CPP), praticadas sem violência ou grave ameaça, portanto, delitos de médio potencial ofensivo. Por outro lado, o acordo é vedado a investigados reincidentes ou que mantenham conduta criminosa habitual, reiterada ou profissional, salvo se as infrações pretéritas forem insignificantes,[96] e aos investigados beneficiados nos cinco anos anteriores à prática do fato por ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo. É também inaplicável aos investigados por crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou por crimes praticados contra a mulher, em razão da condição feminina (art. 28-A, § 2º, II, III e IV, CPP). Caso a infração comporte ANPP e também a transação penal, deverá ser oferecida esta última, mais benéfica ao autor do fato, por não exigir a confissão (art. 28-A, § 2º, I, CPP).

Diversamente da transação penal, o ANPP exige a investigação formal e detalhada da infração. Avaliando o inquérito policial e concluindo não ser o caso de arquivamento, inclusive com avaliação positiva de suficiente lastro probatório para o exercício da ação penal,[97] o Ministério Público propõe ao investigado o ANPP, desde que a medida seja necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime, sob algumas condições legais, que podem ser ajustadas cumulativa ou alternativamente. O Ministério Público pode propor também uma condição de natureza diversa daquelas previstas na lei, desde que proporcional e compatível com a infração imputada (art. 28-A, V, CPP).

As duas primeiras condições legais são a reparação do dano ou a restituição da coisa à vítima, salvo a impossibilidade de fazê-lo, bem como a renúncia voluntária a bens e direitos que constituam instrumentos, produto ou proveito do crime.

As outras duas condições legais são a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços (outro aspecto premial do ANPP) e o pagamento de prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social que tenha por função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes àqueles lesados pela infração.

Como se vê, o acordo não pode ter por objeto medida privativa de liberdade.

Nas tratativas, o investigado e seu defensor têm pleno acesso às provas colhidas na fase investigatória, de modo a garantir que o consentimento ao acordo seja informado.

Acompanhado dos elementos de prova que o embasaram, o ANPP deve ser formalizado por escrito, contendo a descrição precisa da infração e das condições acordadas pelas partes, e firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.[98] O acordo é então levado à homologação judicial, em audiência especialmente designada para esse fim.

A verificação judicial compreende a voluntariedade e a legalidade do acordo. Para análise da voluntariedade, o juiz obrigatoriamente deve ouvir o investigado, na presença de seu defensor (art. 28-A, § 4º, CPP). A verificação da legalidade do pacto abrange a qualificação jurídica do fato, já que a lei limitou seu cabimento às infrações com pena mínima inferior a quatro anos. É dizer, tanto quanto na transação penal, o Ministério Público não tem o poder de barganhar a imputação.

A verificação judicial inclui ainda a proporcionalidade das condições. Caso as considere inadequadas, insuficientes ou abusivas, o juiz deve restituir os autos ao Ministério Público para reformulação do acordo (art. 28-A, § 5º, CPP), não detendo o poder de alterá-las.[99] Se tal readequação não for feita, ou por outra razão o juiz entender que a proposta não atende aos requisitos legais, deverá recusar homologação ao acordo (art. 28-A, § 7º, CPP) e devolver os autos ao Ministério Público, para eventual complementação das investigações ou oferecimento da denúncia (art. 28-A, § 8º, CPP). Com base neste último dispositivo, a doutrina tem apontado que a verificação judicial deve também recair sobre a base fática do ANPP, isto é, elementos mínimos de prova que apontem indícios de autoria e prova da materialidade do crime.[100]

Homologado o acordo, a prescrição é suspensa (art. 116, IV, CP) e os autos são enviados ao Ministério Público, para que promova sua execução (art. 28-A, § 6º, CPP). Todavia, como na transação penal, o descumprimento do ANPP pelo investigado não propicia a execução forçada, mas apenas sua rescisão judicial e posterior exercício da ação penal pelo Ministério Público (art. 28-A, § 10, CPP), que então poderá recusar o oferecimento da suspensão condicional do processo com fundamento no descumprimento do ANPP (art. 28-A, § 11, CPP).

Como na transação penal, a recusa do Ministério Público em propor o ANPP não pode ser suprida pelo juiz, porém, o investigado poderá requerer a revisão da decisão ao órgão superior, preservando-se, assim, a titularidade da ação penal em mãos do acusador e a imparcialidade judicial (art. 28-A, § 14, CPP).

Por fim, a lei exige a intimação da vítima ou de seus representantes tanto da homologação do ANPP quanto de seu descumprimento pelo investigado (art. 28-A, § 9º, CPP).

A exigência da confissão detalhada como requisito do ANPP é um dos traços mais distintivos do instituto, e sua finalidade parece clara: auxiliar a descoberta da verdade dos fatos e impedir (ou, pelo menos, reduzir os riscos) que inocentes firmem o acordo e assim se submetam ao cumprimento de condições restritivas de sua esfera de liberdade por um fato que não cometeram.[101] Ademais, a confissão – que pode ou não ser acompanhada da indicação ou da entrega de provas de autoria pelo investigado – facilita eventual ação penal subsequente ao descumprimento das cláusulas do acordo e assim estimula o cumprimento do ANPP pelo aceitante. Por fim, a confissão favorece a finalidade ressocializadora, já que a admissão da culpa é o primeiro passo em direção ao abandono do comportamento desviante.

É interessante observar, ademais, que a imposição de tal requisito, a despeito da configuração do ANPP em moldes semelhantes à evolução da transação penal – isto é, de alternativa eventual ao processo, dependente do cumprimento voluntário do acordo pelo investigado –, aliado à exigência de investigação prévia e detalhada dos fatos, talvez demonstre a abertura de um caminho que futuramente leve o Brasil à aplicação de pena por consenso das partes, com substituição definitiva ao processo.

Conclusão

A tradução do plea bargaining na Itália foi bastante fiel ao modelo norte-americano, e a evolução legislativa e jurisprudencial vem-se orientando cada vez mais ao reconhecimento da natureza condenatória da sentença que aplica a pena a pedido das partes, bem assim à compreensão de que o imputado assume culpa ao renunciar ao processo e preferir o acordo, realizando-se o accertamento dos fatos pela via consensual, como permite o art. 111 da Constituição italiana. Nessa estrada, parece-nos que a cultura italiana vem assimilando a premissa da declaração de culpa, mais coerente com a inflição da pena, e distanciando-se da declaração de nolo contendere que inicialmente inspirara a aplicação da pena a pedido das partes.

No Brasil, os institutos consensuais não representam uma alternativa definitiva ao processo. Todavia, embora o modelo legal da transação penal não o permita, por dispensar a justa causa, o ANPP aparentemente sinaliza um passo nesse sentido, ao exigir a investigação exauriente e formalizada dos fatos – com resultado positivo de lastro probatório – e a confissão detalhada do crime, respectivamente como pressuposto e condição do acordo.

Com efeito, parece-nos que a evolução da justiça negocial encontra-se no reconhecimento explícito de que, ao renunciar ao processo penal litigioso em troca de uma pena reduzida, o imputado admite sua culpa, que é acertada de maneira consensual e assim declarada na sentença. Uma vez que se permite o mais, que é a renúncia ao direito constitucional de resistir contra a inflição da pena, com todos os meios e os recursos do processo litigioso garantista, não se pode compreender por que razão não se admita a própria premissa lógica da condenação, sem a qual o sistema resvala em contradições e polêmicas, com a agravante de não se atingir a tão desejada eficácia deflativa que desde o início inspirou a adoção da negocialidade no processo penal e que revolucionou o sistema de justiça nos países da tradição da civil law.

A este ponto, deve ser enfatizado que a redução da pena e das consequências estigmatizantes do processo penal litigioso constituem ou devem constituir incentivo suficiente à adoção da via consensual pelo imputado. A ideia de que seja necessário, além desses prêmios, que o aceitante desfrute da isenção de reconhecimento judicial de culpa e dos efeitos penais e extrapenais decorrentes da condenação criminal, a nosso ver, sacrifica a credibilidade e a eficiência da justiça, especialmente no que diz respeito às reparações devidas à vítima, e a própria finalidade dos institutos negociais penais.

Assim, o ponto principal, parece-nos, é centrar o foco das preocupações nas garantias ao imputado de que sua manifestação de vontade, ao aceitar o acordo proposto pelo Ministério Público, seja feita de forma livre e devidamente informada.

A análise dos institutos negociais italiano e brasileiro – nomeadamente, do patteggiamento e do ANPP, excluída a transação penal, pelos motivos já analisados – permite entrever que há previsão de suficientes safeguards a preservar os direitos do imputado que prefira a via consensual, mesmo que se passe expressamente a reconhecer na sentença a admissão da culpa com todos os seus corolários.

A primeira delas, como não poderia deixar de ser, é o direito perene do imputado de preferir o processo penal litigioso com todas as suas garantias, sem que dessa escolha lhe possam advir prejuízos, salvo, como é natural, a inflição da pena sem a redução e outros prêmios que o teriam beneficiado se houvesse preferido a via negocial.

Ao lado disso, o princípio da obrigatoriedade da ação penal, seja ela consensual, seja litigiosa, continua a viger tanto no ordenamento italiano quanto no brasileiro, e, diante de suficientes elementos a indicar a prática de infração penal pelo investigado, o acusador continua preso ao exercício da ação penal, seja ela litigiosa, seja consensual.

Ademais, há rígidos limites legais e institucionais à discricionariedade e ao poder de barganha do Ministério Público, tanto com relação aos crimes que podem ser objeto do acordo quanto aos prêmios que podem ser propostos. No Brasil, como visto, há também a previsão de controles internos destinados a fiscalizar o membro do Ministério Público no exercício dessas atribuições, inclusive por pedido direto do próprio investigado.

No que diz respeito ao momento da avença, os acordos são firmados após a completa disclosure dos elementos de prova em mãos da acusação, e sempre mediante assistência técnica de advogado – cujo consentimento, no Brasil, é também uma condição da avença.

Ademais, ambos os ordenamentos preveem a fiscalização judicial dos acordos travados entre Ministério Público e imputado, a recair tanto sobre a legalidade do acordo, a voluntariedade da aceitação e a base fática da imputação quanto sobre a proporcionalidade das penas ou das condições avençadas pelas partes. E esse controle judicial, por tradição cultural da civil law, é exercido pelos juízes italianos e brasileiros de modo muito mais penetrante do que pelos colegas norte-americanos.

Todos esses fatores impedem, a nosso ver, que os acordos se transformem no jogo de poder e ameaça tão criticado na prática norte-americana do plea bargaining.

Em suma, parece-nos haver garantias suficientes para que os institutos evoluam cada vez mais em direção ao reconhecimento da responsabilidade do imputado, em procedimento célere e de acertamento consensual, capaz de fazer surtir efeitos para além da esfera penal, contribuindo, assim, para a pacificação social e a eficiência da justiça, sem o sacrifício do núcleo dos direitos e das garantias constitucionais do imputado.


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* Trabalho apresentado para conclusão do Master em Diritto Penale Dell’Impresa (MiDPI) da Università Cattolica Del Sacro Cuore/Milão. Por tal razão, as citações bibliográficas feitas neste artigo obedecem às regras italianas, e não às brasileiras.

[1] O artigo 112 da Constituição italiana é breve e incisivo: “Il pubblico ministero ha l’obbligo di esercitare l’azione penale”. No Brasil, o art. 129, I, da CR/88 enuncia que é função do Ministério Público “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”, e o princípio encontra-se insculpido no artigo 24 do Código de Processo Penal: “Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público” (destaque acrescentado). Cumpre destacar que não existe ação penal privada no direito italiano.

[2] Na célebre decisão adotada no Caso Natsvlishvili e Togonidze v. Georgia, em 08 de setembro de 2014, em que pela primeira vez a Corte Europeia de Direitos Humanos analisou a compatibilidade de institutos europeus similares ao plea bargaining com o direito ao justo processo, foi destacada a possibilidade de renúncia a direitos processuais por parte de imputados em troca de sanções mais brandas: “A Corte considera que, quando o efeito de plea bargaining é determinado por uma forma abreviada de exame judicial contra o acusado, isso equivale, substancialmente, à renúncia a vários direitos processuais. Isso não pode ser um problema em si, pois nem a letra, nem o espírito do artigo 6 impede uma pessoa de renunciar a essas salvaguardas por sua própria livre vontade (...)” [“The Court considers that where the effect of plea bargaining is that a criminal charge against the accused is determined through an abridged form of judicial examination, this amounts, in substance, to the waiver of a number of procedural rights. This cannot be a problem in itself, since neither the letter nor the spirit of Article 6 prevents a person from waiving these safeguards of his or her own free will (...)”]. Adiante, a Corte frisou que, para a validade desses acordos sobre a pena, é imprescindível o atendimento a três requisitos: 1. que a renúncia aos direitos processuais seja feita de modo inequívoco, 2. que sejam previstas salvaguardas mínimas para evitar o abuso e 3. que não haja contrariedade ao interesse público.

[3] Não apenas nesses dois países, mas em grande parte do globo. Analisando a justiça negocial em mais de 60 ordenamentos, M. Langer conclui que mecanismos alternativos ao processo (a “administrativização do processo penal”, seja pela condenação criminal a cargo de autoridades administrativas, seja pela renúncia do imputado a um processo com todas as garantias) “têm se expandido em uma parte substancial do mundo nas últimas cinco décadas”, e tendem a crescer ainda mais: M. LANGER, Plea bargaining, trial-avoiding conviction mechanisms, and the global administratization of criminal convictions, in Annu. Rev. Criminol. DOI: 10.1146/annurev-criminol-032317-092255, 2019, p. 38. É importante desde já destacar que a jurisdição brasileira não foi incluída no estudo, devido à ausência de imperatividade e coercitividade das sentenças que homologam a transação penal, do que se falará, mais adiante, no tópico 4.2: cit., p. 4.

[4] Na mesma decisão do Caso Natsvlishvili e Togonidze v. Georgia, a Corte Europeia de Direitos Humanos frisou que: “A Corte subscreve a ideia de que o plea bargaining, além de oferecer os importantes benefícios de um julgamento rápido de processos criminais e de aliviar a carga de trabalho de tribunais, promotores e advogados, também pode, se aplicado corretamente, ser uma ferramenta de sucesso no combate à corrupção e ao crime organizado e pode contribuir para a redução do número de penas aplicadas e, consequentemente, do número de presos” (“The Court subscribes to the idea that plea bargaining, apart from offering the important benefits of speedy adjudication of criminal cases and alleviating the workload of courts, prosecutors and lawyers, can also, if applied correctly, be a successful tool in combating corruption and organised crime and can contribute to the reduction of the number of sentences imposed and, as a result, the number of prisoners”).

[5] A denominação “tradução legal” é preferida por M. Langer a “transplante”, por melhor descrever o fenômeno da “circulação de ideias legais entre diversos sistemas legais”: M. LANGER, From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure, in Harvard International Law Journal,  v. 45, n. 1, 2004, p. 29-35.

[6] M. R. DAMAŠKA, The uncertain fate of evidentiary transplants: Anglo-American and continental experiments, in The American Journal of Comparative Law, v. 45, 1997, p. 839-840. O autor começa seu artigo advertindo gravemente que tais “transplantes legais” não se podem fazer sem a rigorosa observância das peculiaridades do ordenamento receptor, pois “o sentido e o impacto” da norma “se alteram em condições externas, mais diretamente no contexto institucional em que a justiça é administrada em um determinado país”. O desrespeito a esse contexto, segundo o autor, tendencialmente trará consequências não pretendidas, algumas das quais desapontadoras, até porque, em ambientes diversos, mesmo textos de lei idênticos adquirem novo significado e produzem efeitos diferentes daqueles produzidos no ambiente de origem.

[7] M. LANGER, From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure, cit., p. 1-64.

[8] Na Alemanha, por exemplo, a introdução de acordos sobre a pena deu-se por meio de acordos informais na prática forense, tendo por protagonistas não acusação e defesa, mas esta última e o juiz: M. LANGER, From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure, cit., p. 39-46; J. DELLA TORRE, La giustizia penale negoziata in Europa, in S. ALLEGREZZA, M. GIALUZ, K. LIGETI, L. LUPÁRIA, G. ORMAZABAL, R. PARIZOT (coord.), Giustizia penale europea, v. 9, Milano, 2019, p. 116-122; M. NARDELLI, A expansão da justiça negociada e as perspectivas para o processo justo. A plea bargaining norte-americana e suas traduções no âmbito da civil law, in Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 14, n. 1, 2014, p. 352-353; R. LEITE, Justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, tese de Doutorado em Direito Processual, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2009, p. 82-85. No Brasil, como será analisado em detalhe no tópico 5, inicialmente o acordo de não persecução penal foi introduzido por ato infralegal.

[9] Em países de civil law, mesmo naqueles que vêm adotando reformas em direção ao processo de partes, os juízes demonstram postura processual mais ativa do que nos Estados Unidos. M. Langer explica que o fenômeno decorre de diferentes estruturas de significado, disposições individuais, arranjos institucionais e de poder e sistemas de incentivos, dentre outros fatores, entre países da common law e da civil law. O autor cita o exemplo da Itália, onde o poder excepcional de determinar a produção de nova prova (art. 507 c.p.p.) vem sendo interpretado de maneira extensiva, enquanto a mesma faculdade, nas jurisdições em que é prevista, é exercitada com parcimônia pelos juízes norte-americanos, mais acostumados ao modelo adversarial: M. LANGER, From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure, cit., p. 31.

[10] M. Nardelli lembra que, nos países de civil law, o valor crucial da descoberta da verdade remonta às origens canônicas do processo, pois “o método inquisitivo se aperfeiçoou no seio das jurisdições eclesiásticas diante da necessidade de repressão da heresia, cujo fundamento era o poder papal e o direito de vigilância sobre os fiéis”: M. NARDELLI, A expansão da justiça negociada e as perspectivas para o processo justo. A plea bargaining norte-americana e suas traduções no âmbito da civil law, cit., p. 336.

[11] M. Caputo e M. Nardelli citam, a esse propósito, o pensamento de M. R. Damaška, para quem a maior ou menor ingerência do juiz na condução do processo e da produção probatória reflete a configuração do Estado. Para o autor, podem ser identificados dois modelos de Estado e, por conseguinte, dois modelos de direito penal e de processo penal: um, reativo, de origem liberal, cujo objetivo cinge-se à manutenção da paz social, mediante a tutela dos valores largamente reconhecidos pela sociedade como merecedores de proteção, no qual a autodeterminação individual é grandemente preservada; e outro, intervencionista, cujo escopo é o de conduzir a sociedade em direção a almejadas mudanças, inclusive com a introdução de valores ainda não reconhecidos pelo tecido social. No primeiro modelo, tendencialmente a atividade probatória será relegada às partes, limitando-se o Estado a discipliná-la; no segundo, o próprio Estado desenvolverá a função investigativa dos fatos, e os poderes instrutórios do juiz, por conseguinte, serão ampliados. O primeiro modelo, chamado Estado guardião ou reativo, é o campo no qual se desenvolvem os acordos entre as partes no processo penal. M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, Milano, 2008, p. 43-49; M. NARDELLI, A expansão da justiça negociada e as perspectivas para o processo justo. A plea bargaining norte-americana e suas traduções no âmbito da civil law, cit., p. 337-338.

[12] Em seu estudo sobre a história do plea bargaining, J. H. Langbein refere a tradição inglesa da acusação particular (private prosecution), com suas implicações de ampla discricionariedade e poderes de disposição persecutória, e o correlato poder de disposição do próprio defendant, cristalizado no direito de renunciar ao processo declarando-se culpado (pleading guilty), além da regra, de origem medieval, de que o sujeito não poderia ser julgado pelo júri sem o próprio consentimento: J. H. LANGBEIN, Understanding the short history of plea bargaining, in Faculty Scholarship Series, v. 544, 1979, p. 268.

[13] Pizzi e Marafioti explicam que a ênfase dos sistemas de civil law em resultados uniformes manifesta-se em uma forte aversão à discricionariedade acusatória, cuja simples ideia é “alheia ao ethos da civil law”: W. PIZZI, L. MARAFIOTI, The new Italian Code of Criminal Procedure: the difficulties of building an adversarial trial system on a civil law foundation, in The Yale Journal of International Law, v. 17, n. 1, 1992, p. 9-10.

[14] Nas palavras de M. Langer, as partes são verdadeiras “proprietárias da disputa”: M. LANGER, From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure, cit., p. 21.

[15] A respeito, anota J. H. Langbein que, quando o moderno processo criminal alemão vinha sendo moldado, a doutrina, conquanto estudasse o processo inglês como um possível modelo, rejeitava a ideia do guilty plea, pois “era errado um juiz sentenciar com base em ‘mera confissão’ sem se satisfazer sobre a culpa do acusado”: J. H. LANGBEIN, Understanding the short history of plea bargaining, cit., p. 267, nota (10).

[16] M. LANGER, From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure, cit., p. 10.

[17] Na tradição da common law, como explica M. Nardelli, a garantia para o atingimento da verdade reside no rigor das rules of evidence, aquele conjunto de regras que determina as provas a serem apresentadas ao júri, a instituição central do sistema de justiça anglo-saxão. M. NARDELLI, A expansão da justiça negociada e as perspectivas para o processo justo. A plea bargaining norte-americana e suas traduções no âmbito da civil law, cit., p. 336.

[18] A expressão é de M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 87.

[19] Como adverte R. Gamini Musso, citado por M. Caputo, “tra gli studiosi del plea bargaining il dilemma delle origini è ben lontano dall’essere univocamente risolto”: M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 110. Deve ser referido, porém, que pesquisas recentes indicam que, na Inglaterra elisabetana, entre 1587 e 1590, declarar-se culpado era rotineiro, e em um certo número de casos aparentemente houve reduções negociadas de acusações em troca de declarações de culpa: G. FISHER, Plea bargaining’s triumph: a history of plea bargaining in America, cit., p. 860, nota (1); J. H. LANGBEIN, Understanding the short history of plea bargaining, cit., p. 268, nota (11). Por isso, G. Fisher assevera que o plea bargaining surgiu na Inglaterra, mas triunfou nos Estados Unidos, de onde se expandiu para os países de civil law.

[20] Mais adiante, J. H. Langbein faz referência às chamadas crown witnesses, cuja existência na Londres do começo do século XVIII sugeriria uma prática mais antiga de não persecução negociada do que o plea bargaining. Em realidade, segundo o autor, tal prática não se confundiria com o plea bargaining, pois versava a colaboração do autor do fato criminoso com a justiça, para o fim de obtenção de provas contra terceiros: J. H. LANGBEIN, Understanding the short history of plea bargaining, cit., p. 266-267, nota (8).

[21] J. H. LANGBEIN, Understanding the short history of plea bargaining, cit., p. 261.

[22] R. LEITE, Justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, cit., p. 74.

[23] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 114.

[24] Como se sabe, a competência para legislar sobre direito penal e sobre direito processual penal nos Estados Unidos incumbe tanto à esfera federal quanto às estaduais, o que o torna extremamente complexo. Por tal razão, no presente trabalho, o instituto será analisado apenas tal como delineado pelo ordenamento federal, consoante a Rule 11 das Federal Rules of Criminal Procedure.

[25] Em alguns casos, tem lugar o bench trial, a cargo do juiz monocrático: M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 91.

[26] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 94.

[27] F. S. Andrade, citado por C. Tabosa, lembra que, ademais desses requisitos para a homologação judicial do acordo, figura também a publicidade: C. TABOSA, A plea bargaining norte-americana, in A. WALMSLEY, L. CCIRENO, M. BARBOZA (coord.), Inovações da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, Brasília, 2020, p. 271.

[28] V. G. VASCONCELLOS, Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro, citado por C. TABOSA, A plea bargaining norte-americana, cit., p. 271.

[29] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 88.

[30] M. Caputo esclarece que, embora o juiz não esteja vinculado à recomendação de pena formulada pelo prosecutor, nos termos da Rule 11 (c) (1) (B), na prática isso quase não acontece, vigendo “una regola non scritta in base alla quale la Corte non si discosta quasi mai dalla richiesta del prosecutor”: M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 99.

[31] R. LEITE, Justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, cit., p. 76.

[32] Essa peculiaridade deriva também da forma política de investidura e, por conseguinte, da atuação dos prosecutors americanos, que, nas jurisdições estaduais (state’s attorney), via de regra, são eleitos, e na federal (U.S. attorney) são indicados pelo presidente, com a posterior chancela do Senado; e ainda da grande autonomia do Ministério Público, cuja atuação nem sempre é fiscalizada ou direcionada: R. LEITE, Justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, cit., p. 76.

[33] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 233.

[34] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 235.

[35] N. B. LENVIN, E. S. MEYERS, Nolo contendere: its nature and implications, in The Yale Law Journal, v. 51, 1942, p. 1.255-1.268. Os autores citam a decisão no caso Commonwealth v. Horton, em que se declarou que, ao aceitar a declaração de nolo contendere, “não é necessário que o tribunal julgue que a parte era culpada, pois isso decorre por inferência legal necessária da confissão implícita” (“it is not necessary that the court should adjudge that the party was guilty for that follows by necessary legal inference from the implied confession” – cit., p. 1.257), além da decisão em State v. Herlihy, em que não foi aceita a argumentação da defesa de que a sentença que acolhera a declaração de nolo contendere não adjudicara culpa (cit., p. 1.265).

[36] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 235.

[37] N. B. LENVIN, E. S. MEYERS, Nolo contendere: its nature and implications, cit., p. 1.258-1.260.

[38] No caso, Henry Alford fora acusado de homicídio em primeiro grau, um crime para o qual era prevista a pena capital, e declarou-se culpado de homicídio em segundo grau, punível com detenção de dois a trinta anos. Condenado à pena máxima, recorreu da decisão, protestando inocência e alegando a involuntariedade da declaração de culpa, a qual teria sido motivada pelo temor da condenação à pena de morte.

[39] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 236.

[40] R. LEITE, Justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, cit., p. 74; M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 92.

[41] Entre as decisões mais relevantes, destacam-se os casos Patton v. United States (1930), Brady v. United States (1970), Santobello v. New York (1971), Blackledge v. Allison (1977) e Bordenkircher v. Hayes (1978).

[42] G. Fisher é incisivo: “Não existe glória no plea bargaining. Em lugar de um conflito nobre pela verdade, o plea bargaining nos oferece uma trégua furtiva. Advogados oponentes fogem à batalha, e a caixa vazia do júri sinaliza o desapontamento do sistema. Mas, ainda que sua vitória não mereça alarde, o plea bargaining triunfou. Sem derramamento de sangue e clandestinamente, ele varreu a paisagem penal e levou nosso júri vencido a pequenos bolsões de resistência. O plea bargaining pode ser, como afirmam alguns cronistas, o bárbaro invasor. Mas ele venceu mesmo assim” (“There is no glory in plea bargaining. In place of a noble clash for truth, plea bargaining gives us a skulking truce. Opposing lawyers shrink from battle, and the jury’s empty box signals the system’s disappointment. But though its victory merits no fanfare, plea bargaining has triumphed. Bloodlessly and clandestinely, it has swept across the penal landscape and driven our vanquished jury into small pockets of resistance. Plea bargaining may be, as some chroniclers claim, the invading barbarian. But it has won all the same”). G. FISHER, Plea bargaining’s triumph: a history of plea bargaining in America, cit., p. 859.

[43] J. H. Langbein assim sintetiza as cinco características essenciais do moderno plea bargaining, das quais derivam a maior parte das críticas que lhe são endereçadas: primeiro, trata-se de um modo de procedimento sem julgamento; segundo, o instituto subverte a garantia constitucional da Sexta Emenda, que garante a todos aqueles em face de quem é formulada uma imputação criminal o direito a julgamento por um júri imparcial; terceiro, para persuadir o imputado a não fazer uso de seu direito constitucional, aquele que insiste no julgamento pelo júri é punido de maneira mais severa em caso de condenação, para que assim sirva de exemplo aos demais; quarto, o acusado não pode apresentar defesa perante o júri e ter sua culpa provada além de qualquer dúvida razoável, o que representa a maior garantia contra o erro judiciário; e quinto, apesar de tudo isso, o plea bargaining é endossado e encorajado pela Supreme Court apenas por critérios de eficiência. J. H. LANGBEIN, Understanding the short history of plea bargaining, cit., p. 261-262.

[44] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 232-248.

[45] E. AMODIO, Processo penale diritto europeo e common law: dal rito inquisitorio al giusto processo, Milano, 2003, p. 220.

[46] E. AMODIO, Processo penale diritto europeo e common law: dal rito inquisitorio al giusto processo, Milano, 2003, p. 221.

[47] E. Amodio, citado por M. Nardelli, aponta para uma atual tendência de redefinição do princípio constitucional da obrigatoriedade da ação penal, que, em lugar de exigir o exercício da ação diante de todas as infrações penais, indicaria a necessidade de “transparência e controle jurisdicional dos critérios com base nos quais o Ministério Público faz a escolha entre pedido de arquivamento e formulação da acusação”: M. NARDELLI, A expansão da justiça negociada e as perspectivas para o processo justo. A plea bargaining norte-americana e suas traduções no âmbito da civil law, cit., p. 354.

[48] Nessa estrada, o legislador italiano foi influenciado pela Recomendação R (87), de 17 de setembro de 1987, do Conselho de Ministros da Justiça da Europa, sobre a adoção do procedimento de assunção de culpa para simplificar e acelerar a justiça criminal: M. NARDELLI, A expansão da justiça negociada e as perspectivas para o processo justo. A plea bargaining norte-americana e suas traduções no âmbito da civil law, cit., p. 351.

[49] Até porque, como anota M. Langer, o tradutor italiano foi mais poderoso do que outros tradutores europeus, tendo em vista que todas essas amplas reformas adversariais foram feitas por meio do Parlamento e gozaram de substancial apoio político: M. LANGER, From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure, cit., p. 47.

[50] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 202.

[51] R. LEITE, Justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, cit., p. 98.

[52] M. Langer aponta a influência do modelo de investigação oficial sobre essa possibilidade de o juiz conceder a redução de pena contra a vontade da parte acusadora, com a reafirmação dos poderes do magistrado sobre a definição da sanção penal e a consideração de que o patteggiamento “não é apenas um procedimento de barganha, mas também um benefício que o juiz pode conceder ao imputado”: M. LANGER, From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure, cit., p. 51.

[53] Sobre o conteúdo de tais discussões e posicionamento doutrinário e jurisprudencial, cf. M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 207.

[54] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 207 e 208.

[55] Trata-se de “determinadas causas de não punibilidade” que, no Brasil, acarretariam a rejeição ou o não recebimento da peça acusatória, a absolvição sumária ou a declaração da extinção de punibilidade.

[56] Nas palavras de M. Caputo, a questão girava em torno do “conflitto tra visioni di giustizia diametralmente opposte: l’una, quella continentale, risolutamente diretta alla ricerca della verità e perciò aliena da compromessi che ne possano inficiare l’ottenimento; l’altra, quella d’oltreoceano, votata a raggiungere una rapida soluzione dei processi penali anche attraverso la negoziazione fra le parti”. O mestre prossegue: “Da qui la difficoltà per il giudice italiano di abituarsi al nuovo costume di ‘guardiano passivo’, non più protagonista dell’accertamento sull’effettiva responsabilità dell’imputato: eccettuato lo scrutinio sull’esatta qualificazione giuridica del fatto e la possibilità di prosciogliere ex art. 129 c.p.p., il giudice del patteggiamento appariva fortemente depotenziato nelle sue prerogative”: M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 227-228. M. Langer considera a decisão da Corte Costituzionale como uma forte reação contra a mudança de poderes processuais das mãos do juiz para as partes: M. LANGER, From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure, cit., p. 52.

[57] A. Sana e M. Caputo enfatizam que, conquanto permita que o consenso entre as partes afaste a produção da prova em contraditório, a norma constitucional não afasta a necessidade do accertamento: A. SANNA, Il “patteggiamento” tra prassi e novelle legislative, Padova, 2018, p. 22-23; M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 211.

[58] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 211.

[59] Nos processos decorrentes de práticas criminosas em face de pessoas jurídicas – que, no sistema italiano, seguem o procedimento penal, embora as sanções sejam rotuladas como administrativas –, o patteggiamento é possível para todas as infrações sancionadas apenas com pena pecuniária. Todavia, para as infrações sancionadas com penas diversas desta, o procedimento é condicionado à não aplicabilidade, em via definitiva, de uma das sanções interditivas previstas no art. 16 do d.lgs. nº 231, de 8 de junho de 2001, conforme prevê o art. 63, c.3, do mesmo diploma.

[60] R. Orlandi alinha essa característica como outra vantagem comum às sentenças de patteggiamento em relação às demais sentenças condenatórias, capaz de induzir à escolha pelo rito, “soprattutto per imputati che, avendo una fama e una notorietà da difendere, preferiscono sottrarsi ai ‘riflettori’ della scena dibattimentale”: R. ORLANDI, Procedimenti speciali, cit., p. 605.

[61] Esse efeito da sentença foi acrescentado à disciplina do patteggiamento pela l. 12 de junho de 2003, nº 134. A exceção, relata R. Orlandi, foi considerada razoável pela Corte Costituzionale, sob o fundamento de que “il giudizio disciplinare ha una sua peculiarità e costituisce una species a sé stante, sì da giustificare una regolamentazione distinta rispetto ai giudizi civili o amministrativi soggetti all’effetto vincolante delle sole sentenze emesse a seguito di dibattimento o di giudizio abbreviato”: R. ORLANDI, Procedimenti speciali, cit., p. 614.

[62] O art. 444 c.3-bis c.p.p. permite que, nos procedimentos por tais delitos, o imputado subordine a eficácia de seu pedido à isenção dessas penas acessórias, ou a extensão dos efeitos da suspensão condicional a elas. Caso o juiz repute imprescindível a aplicação das penas acessórias no caso concreto, deve rejeitar o pedido de aplicação da pena acordada pelas partes. Tanto o art. 445 c.1-ter c.p.p. quanto o art. 444 c.3-bis c.p.p foram inseridos pela Lei nº 3, de 9 de junho de 2019, conhecida como legge spazzacorrotti, e refletem o constante esforço do legislador italiano na tutela da Administração Pública.

[63] Nesse caso, ao Ministério Público caberá analisar a suficiência do material probatório, pois o juiz que receber o pedido sempre poderá absolver o imputado por falta de justa causa ao exercício da ação penal, ex art. 129 c.p.p.: R. ORLANDI, Procedimenti speciali, in G. CONSO, V. GREVI, M. BARGIS (coord.), Compendio di procedura penale, Padova, 2016, p. 607. Por isso mesmo, o momento ideal ao pedido de patteggiamento é a udienza preliminare, na qual existe já a completa discovery dos elementos colhidos durante as investigações, inclusive aquelas defensivas, que podem ainda ser integradas pela atividade do próprio juiz: M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 217, nota (217).

[64] Neste último ponto, a Lei nº 479, de 16 de dezembro de 1999, alterou o art. 444 c.2 c.p.p. para implementar a já mencionada Decisão nº 313, de 02 de julho de 1990, da Corte Costituzionale.

[65] M. Caputo, com citação de decisão das Sezione Unite da Corte di Cassazione nesse sentido: Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 219; R. ORLANDI, Procedimenti speciali, cit., p. 612-613.

[66] O dispositivo é alinhado à já mencionada Decisão nº 120, de 30 de abril de 1984, da Corte Costituzionale. A respeito, V. Bonini, citada por R. Leite, explica que a justificativa está em que o patteggiamento é também considerado “uma modalidade de exercício do direito de defesa e, enquanto tal, irreprimível arbitrariamente pelo Ministério Público”, o qual, em compensação, poderá recorrer da decisão: R. LEITE, Justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, cit., p. 102-103.

[67] O dispositivo foi inserido pela Lei nº 103, de 23 de junho de 2017. Trata-se de “motivi atinenti all’espressione della volontà dell’imputato, al difetto di correlazione tra la richiesta e la sentenza, all’erronea qualificazione giuridica del fatto e all’illegalità della pena o della misura di sicurezza”. Recentemente, as Sezione Unite da Corte di Cassazione entenderam que é admissível o ricorso per cassazione tendo por objeto a aplicação de sanções administrativas acessórias e também com referência às misure di sicurezza, pessoais ou patrimoniais, que não tenham formado objeto do acordo das partes: Cass., Sez. Un., c.c. 26 de setembro de 2019, conforme informação provisória do servizio novità da Corte Suprema di Cassazione, in Diritto Penale Contemporaneo, 30 settembre 2019. A. Sanna aponta que a limitação do ricorso per cassazione e, de consequência, da atividade uniformizadora da Corte nessa matéria, a qual tem sido essencial à moldagem do instituto ao longo dos anos, poderá criar o “rischio che il modello di patteggiamento oggi affermatosi finisca per dissolversi in plurime varianti, tante quanti saranno gli indirizzi coltivati dai giudici di merito”. Adverte, ainda, que a inapelabilidade da sentença e a possibilidade muito restrita de ricorso per cassazione puntano a espellere il modello negoziale dall’area della giurisdizione”: A. SANNA, Il “patteggiamento” tra prassi e novelle legislative, cit., p. XI e XV.

[68] R. ORLANDI, Procedimenti speciali, cit., p. 615.

[69] R. ORLANDI, Procedimenti speciali, cit., p. 615-616.

[70] Citando copiosas decisões judiciais, A. Sanna afirma que a jurisprudência inclina-se sempre mais a “sgravare la procedura negoziata dal peso della componente cognitiva” e a “infatizzare l’impronta contrattualista del rito” (A. SANNA, Il “patteggiamento” tra prassi e novelle legislative, cit., p. XIII). Portanto, segundo a autora, “la pena applicata senza un previo giudizio di colpevolezza è accolta a pieno titolo dal sistema” (cit., p. XIV), que passou a considerar “moderatamente disponibili” determinados preceitos constitucionais (cit., p. XV), e, assim, a questão hoje é “individuare il limite al di là del quale la disponibilità delle garanzie si trasforma nella negazione dei fondamenti costituzionali” (cit., p. XVI).

[71] M. CAPUTO, Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 223-224; M. LANGER, From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure, cit., p. 50.

[72] M. LANGER, From legal transplants to legal translations: the globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure, cit., p. 50.

[73] M. Caputo aprofunda o tema: Il patteggiamento come problema per il Diritto Penale, cit., p. 232-248.

[74] Esse processo continua em marcha, a exemplo da recentíssima Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que promoveu reformas norteadas pelo art. 3º-A do Código de Processo Penal, segundo o qual “o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

[75] Exposição de motivos à Lei nº 9.099/95, portal da Câmara dos Deputados do Brasil: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1995/lei-9099-26-setembro-1995-348608-exposicaodemotivos-149770-pl.html.

[76] Trata-se de um instrumento consensual deflativo previsto para infrações punidas com pena mínima de até um ano, por meio do qual, ao oferecer a peça acusatória, o Ministério Público propõe ao imputado a suspensão do processo, por dois a quatro anos, mediante o cumprimento de determinadas condições legais, cujo adimplemento acarreta a extinção da punibilidade. Embora a aplicação do benefício exija o consenso entre as partes, as condições da suspensão descendem ex lege, com a possibilidade de que o juiz, e não o Ministério Público, proponha outra condição adequada ao fato, razão por que o instituto não é objeto do presente trabalho.

[77] A lei utiliza o termo “pena”. Todavia, como será mais bem detalhado adiante, a evolução do instituto privou as medidas acordadas pelas partes dos atributos de imperatividade e coercibilidade, essenciais à sanção penal. Por tal razão, utilizaremos as expressões “medida” ou “condição”, embora todas se refiram a penas regulamentadas no Código Penal brasileiro.

[78] Confirmando a tendência sempre expansiva da negociação na justiça penal, originalmente, a Lei nº 9.099, de 1995, previa a transação apenas para as infrações a que a lei cominasse pena máxima igual ou inferior a um ano. O instituto teve sua esfera de aplicação estendida após a Lei nº 10.259, de 2001, que disciplinou os juizados especiais federais, prevendo a transação para as infrações penais a que a lei cominasse pena máxima de até dois anos. A jurisprudência estendeu esse limite para as infrações da competência estadual, com base no princípio constitucional da isonomia, e a Lei nº 11.313, de 2006, incorporou essa orientação no artigo 61 da Lei nº 9.099, de 1995.

[79] O art. 93, IX, da Constituição Federal exige a fundamentação de todas as decisões judiciais.

[80] No sentido do texto, cf. A. P. GRINOVER, A. M. GOMES FILHO, A. S. FERNANDES, L. F. GOMES, Juizados especiais criminais, cit., p. 151-152: “A proposta de transação penal não é alternativa ao pedido de arquivamento, mas algo que pode ocorrer somente nas hipóteses em que o Ministério Público entenda deva o processo penal ser instaurado. Por conseguinte, o Ministério Público só formulará sua proposta imediata de aplicação de pena não privativa de liberdade quando, num juízo prévio ao oferecimento da denúncia, estiver convencido da necessidade da instauração do processo penal. Isso só indica, no entanto, a necessidade de um exame prima facie do que resulta do termo circunstanciado: assim, se houver falta de tipicidade, ocorrência de prescrição ou inimputabilidade, o Ministério Público deverá pedir o arquivamento. Mas a análise da justa causa, por exemplo, que envolve a existência de elementos probatórios, não poderá ser averiguada nesse momento: sobre o direito do envolvido a não ser investigado, antes da tentativa de acordo, v. retro, comentário nº 3 ao artigo 69”; R. LEITE, Justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, cit., p. 162.

[81] Reforça essa conclusão o artigo 77 da Lei nº 9.099, segundo o qual, “na ação penal de iniciativa pública, quando não houver aplicação de pena, pela ausência do autor do fato, ou pela não ocorrência da hipótese prevista no art. 76 desta lei, o Ministério Público oferecerá ao juiz, de imediato, denúncia oral, se não houver necessidade de diligências imprescindíveis” (destaque acrescentado). O dispositivo repisa que a transação pode ser proposta mesmo na ausência de elementos probatórios imprescindíveis à denúncia, ou seja, mesmo sem justa causa.

[82] R. LEITE, Justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, cit., p. 146.

[83] É o teor da Súmula Vinculante 35 do Supremo Tribunal Federal: “A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial”.

[84] Assim julgou o Pleno do Supremo Tribunal Federal no RE 795.567, relatado pelo Min. Teori Zavascki. Para efeitos de repercussão geral, foi fixada a seguinte tese: “As consequências jurídicas extrapenais previstas no artigo 91 do Código Penal são decorrentes de sentença condenatória. Tal não ocorre, portanto, quando há transação penal, cuja sentença tem natureza meramente homologatória, sem qualquer juízo sobre a responsabilidade criminal do aceitante. As consequências geradas pela transação penal são essencialmente aquelas estipuladas por modo consensual no respectivo instrumento do acordo”.

[85] Para um panorama dos debates doutrinários e jurisprudenciais em torno do assunto, cf. R. LEITE, Justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, cit., p. 161-166; A. P. GRINOVER, A. M. GOMES FILHO, A. S. FERNANDES, L. F. GOMES, Juizados especiais criminais, cit., p. 214-221.

[86] O leading case foi o HC 79.572, relator Min. Marco Aurélio, Segunda Turma, julgado em 29.02.2000, publicado no DJ de 22.02.2002.

[87] Superior Tribunal de Justiça, 6ª Turma, RHC 80.148-CE, rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, j. em 01.10.2019, ainda não publicada. A decisão pode ser acessada em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=101263806&num_registro=201700070846&data=20191004&tipo=5&formato=PDF.

[88] A. P. GRINOVER, A. M. GOMES FILHO, A. S. FERNANDES, L. F. GOMES, Juizados especiais criminais, São Paulo, 2005, p. 205; R. LEITE, Justiça consensual como instrumento de efetividade do processo penal no ordenamento jurídico brasileiro, cit., p. 147.

[89] A. P. GRINOVER, A. M. GOMES FILHO, A. S. FERNANDES, L. F. GOMES, Juizados especiais criminais, cit., p. 172-173.

[90] Súmula 640 do Supremo Tribunal Federal: “É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e criminal”.

[91] No sistema brasileiro, todas as manifestações do Ministério Público, tanto quanto as decisões judiciais, devem ser fundamentadas, ex art. 129, VIII e § 4º, da Constituição da República.

[92] É o teor da Súmula 696 do Supremo Tribunal Federal, cujas razões são válidas para a transação penal e para a suspensão condicional do processo: “Reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao procurador-geral, aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal”. Deve ter-se presente, porém, que o art. 28 do Código de Processo Penal foi alterado pela recentíssima Lei nº 13.964, de 2019, passando a prever procedimento inteiramente diverso, que retira do juiz o poder de interferir no alvitre ministerial. A eficácia do novo dispositivo, todavia, encontra-se suspensa por decisão liminar proferida na ADI 6.305/DF pelo Ministro Luiz Fux, do STF, e, portanto, ao menos por ora, mantém-se íntegra a Súmula 696, acima mencionada.

[93] Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004.

[94] O instituto fora originalmente previsto no art. 18 da Resolução 181, de 7 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, portanto por meio de ato infralegal, que foi alvo de sucessivas contestações de constitucionalidade. Hoje, o problema está superado pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019.

[95] O nome parece inspirado nos non prosecution agreements (NPA) norte-americanos, uma espécie de acordo de cooperação (cooperative agreement) muito utilizado em crimes corporativos (corporate crimes), no qual o investigado reconhece culpa por um ou alguns dos fatos e concorda em cooperar com o governo, em troca de tratamento mais benevolente. Descumprido o acordo, o investigado se sujeita a full prosecution. O ANPP, porém, não se confunde com o NPA, pois este último prescinde de homologação judicial. Ademais, o NPA impõe que o agente colabore com os órgãos de persecução, servindo, portanto, também como instrumento de investigação, o que não é da essência do ANPP, cuja finalidade precípua reside na resolução do caso sem o recurso ao processo. Cf. M. Y. XIAO, Deferred/non prosecution agreements: effective tools to combat corporate crime, in Cornell Journal of Law and Public Policy, v. 23, 2013, p. 248-252; C. TABOSA, A plea bargaining norte-americana, cit., p. 267-268.

[96] Por infrações insignificantes, segundo o Enunciado 30 do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM), órgão do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG), devem ser compreendidas as infrações penais de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099, de 1995).

[97] A. B. MENDONÇA, Acordo de não persecução penal e o Pacote Anticrime (Lei nº 13.694/2019), in A. B. GONÇALVES (coord.), Lei Anticrime: um olhar criminológico, politico-criminal, penitenciário e judicial, São Paulo, 2020, item 3.1; V. CUNHA, O devido processo consensual e os acordos de não persecução penal, in A. WALMSLEY, L. CCIRENO, M. BARBOZA (coord.), Inovações da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, Brasília, 2020, p. 302; P. QUEIROZ, Retroatividade da Lei Anticrime, 2020. Disponível em https://www.pauloqueiroz.net/retroatividade-da-lei-anticrime, acesso em 20.08.2020; BRASIL, Ministério Público do Estado de Goiás, Manual de atuação e orientação funcional: acordo de não persecução penal, disponível em www.mpgo.mp.br.

[98] A exigência de que tanto o investigado quanto seu defensor concordem com o ANPP (e que, como já mencionado, também comparece na transação penal) constitui aquilo que F. Fernandes, citado por V. Cunha, denomina “dupla garantia” de condições materiais para o exercício da autonomia da vontade:  V. CUNHA, O devido processo consensual e os acordos de não persecução penal, cit., p. 302.

[99] No sentido do texto, recente decisão da egrégia 1ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, prolatada no RESE nº 5002580-30.2020.4.02.5106/RJ, rel. Des. Federal Paulo Espírito Santo, em 03 de março de 2021, dotada da seguinte ementa: “PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL NO ÂMBITO DE IPL (ART. 28-A DO CPP). CLÁUSULAS ACORDADAS PROPORCIONAIS E ADEQUADAS. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE OU ABUSO. PROVIMENTO DOS RECURSOS. 1. Hipótese em que o Ministério Público Federal ofereceu acordo de não persecução penal ao investigado, que o aceitou formalmente, porém não homologado pelo juízo a quo por entender que as condições estabelecidas em algumas cláusulas do acordo não cumprem os requisitos estabelecidos no inciso IV do art. 28-A do CPP. 2. A reforma da legislação processual permite ao Poder Judiciário observar os aspectos objetivos da legalidade e da voluntariedade do acordo, sem que, contudo, o juiz possa intervir no conteúdo da negociação entre as partes envolvidas. Não obstante, a decisão atacada não se encontra suficientemente fundamentada de forma a justificar a intervenção. 3. Preenchidos todos os requisitos para celebração do acordo, sendo proporcional e adequado ao caso, e não havendo cláusula abusiva ou ilegal, deve ele ser homologado nos termos em que avençado pelas partes. 4. Provimento dos recursos em sentido estrito interpostos” (decisão pendente de publicação).

[100] A. B. MENDONÇA, Acordo de não persecução penal e o Pacote Anticrime (Lei nº 13.694/2019), cit., item 5.3.

[101] A. B. MENDONÇA, Acordo de não persecução penal e o Pacote Anticrime (Lei nº 13.694/2019), cit., item 3.4; V. CUNHA, O devido processo consensual e os acordos de não persecução penal, cit., p. 308-309.

 

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