Direito Hoje | A judicialização dos benefícios previdenciários por incapacidade: da negativa administrativa à retração judicial
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Paulo Afonso Brum Vaz
Desembargador Federal, Membro da Turma Regional Suplementar de Santa Catarina TRS/SC, Mestre em Poder Judiciário e Administração da Justiça pela FGV, Doutor em Direito Público pela UNISINOS, Membro da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social – ABDSS, Professor de Direito Previdenciário do Curso de Pós-Graduação da ESMAFE-RS, SC e PR

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 Paulo Afonso Brum Vaz 

14 de junho de 2021

Introdução

Neste ensaio, discuto as tendências de aumento da judicialização dos conflitos entre os segurados e o Instituto Nacional de Seguro Social – INSS acerca do direito fundamental aos benefícios por incapacidade, temporária ou definitiva. No âmbito do fenômeno maior judicialização dos direitos da seguridade social, tem-se observado a predominância de ações judiciais buscando tais benefícios não programados. Pretendo discutir as causas desse aumento e a íntima relação com a retração do nível das concessões administrativas. Fenômeno posto, analiso o papel do Poder Judiciário, seus limites e suas possibilidades no cumprimento do compromisso constitucional de solução dos inerentes conflitos humanitários e concretização dos direitos fundamentais sociais. Em que pese exista uma tendência de os juízes de primeiro grau negarem os benefícios a partir de perícias incompletas e superficiais, os tribunais, notadamente o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, têm reformado as sentenças, seja para determinar a realização de nova perícia, seja para, com base nos elementos constantes dos autos, dar provimento aos recursos para condenar o INSS a conceder os benefícios. Por fim, apresento algumas proposições para a desjudicialização e para a otimização das respostas judiciais, como condição de possibilidade para a atenuação dos crescentes riscos sociais correlatos à incapacidade para o trabalho.

1 A judicialização da seguridade social: panorama geral e contributos

Segundo os dados do CNJ – Justiça em números de 2019, que compilou dados até o final de 2018, o Poder Judiciário brasileiro finalizou o ano de 2018 com 78,7 milhões de processos em tramitação, aguardando alguma solução definitiva. Durante o ano de 2018, em todo o Poder Judiciário, ingressaram 28,1 milhões de processos e foram baixados 31,9 milhões. Em média, a cada grupo de 100.000 habitantes, 11.796 ingressaram com uma ação judicial no ano de 2018. [1]

O referido levantamento feito pelo Conselho Nacional da Justiça (CNJ) mostrou que o número de ações relacionadas ao direito previdenciário vem se elevando consideravelmente nos últimos anos. No que se refere às ações tendo como objeto apenas prestações previdenciárias e assistenciais, no período de 2015 a 2018, houve um acréscimo da demanda na ordem de 52%, passando de 1.364.081 para 1.740.047 processos. [2]

Estima-se que, diariamente, são ajuizadas, em média, 7 mil novas demandas previdenciárias na Justiça, onde cidadãos inconformados buscam reverter judicialmente decisões do INSS que lhes negaram a concessão ou a revisão de benefício previdenciário.

Tem-se hoje tramitando no Poder Judiciário em torno de 8 milhões de processos previdenciários, o que representa mais de 10% de todos os processos pendentes na Justiça brasileira. Só na Justiça Federal, têm-se 6,7 milhões de processos previdenciários em tramitação, com destaque para Rio Grande do Sul, São Paulo e Paraná, que concentram 38,6% do total. [3]

Segundo dados do CNJ, o acúmulo de recursos em ações previdenciárias é o maior responsável pelo congestionamento de processos na Justiça Federal: 40% da demanda nos cinco Tribunais Regionais Federais diz respeito a litígios em que é parte o Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS). [4]

Em relação ao atraso no exame dos pedidos na via administrativa, estima-se que hoje existam cerca de 2 milhões de pedidos represados no INSS, sendo 1,3 milhão com mais de 45 dias. Esse número foi impulsionado pela reforma previdenciária de 2019 (EC nº 103), que desencadeou verdadeira corrida ao INSS para diversos fins: requerimento de certidões, benefícios, contagem de tempo de contribuição, etc. Depois, a partir de março de 2020, a pandemia da COVID-19 fez com que esses números subissem assustadoramente com o fechamento do INSS para atendimento presencial.

É paradoxal a situação da judicialização para poder judicializar, a chamada “dupla judicialização”. Diante da demora do INSS em analisar na via administrativa os requerimentos formulados, o segurado é obrigado a impetrar mandado de segurança para suprir a omissão, porquanto a resposta administrativa é necessária, segundo um entendimento a partir da necessidade de prévio requerimento reconhecida pelo STF no precedente vinculante do RE 631.240, Tema 350, julgamento concluído em 2016. Por conta disso, estima-se que houve um incremento médio em torno de 300% nos mandados de segurança impetrados na Justiça Federal. Dados do Tribunal Regional Federal da 3ª Região mostram que, em 2019, esse aumento seria de 284%, passando de 4.832 para 16.805. [5]

O testemunho mais evidente da judicialização da Previdência Social está em que as concessões na via judicial têm aumentado consideravelmente. Para alguns benefícios, oito (8) entre dez (10) segurados obtiveram o benefício judicialmente. Esse reflexo da judicialização, tal como ela mesma, revela uma patológica inversão dos papéis funcionais do INSS e do Poder Judiciário. [6]

O quadro é alarmante. Auditoria recente do TCU mostra que a judicialização conduziu a uma autêntica substituição da esfera administrativa (INSS – Instituto Nacional do Seguro Social) pelo Poder Judiciário, notadamente a Justiça Federal. O levantamento de auditoria do TCU verificou que, somente em 2017, foram pagos R$ 92 bilhões em benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) mantidos por decisões judiciais, sendo R$ 86,6 bilhões para benefícios previdenciários e R$ 6,5 bilhões para benefícios assistenciais. A cifra representou mais de 15% da despesa total com benefícios previdenciários e assistenciais daquele ano. O TCU também constatou que, em dezembro de 2017, havia 3,8 milhões de benefícios judiciais (11,1%) na folha de pagamento da autarquia. [7]

Analisando mais profundamente a judicialização, tem-se um dado relevante, que diz respeito ao índice de concessões ou procedências. Mais da metade, exatamente 51% das ações são julgadas procedentes em primeiro grau, o que indica que a judicialização, além de se justificar, ainda representa um bom negócio. Os dados revelam a seguinte realidade diferenciada, mas muito próxima para os diversos tipos de benefícios (índices entre 44% e 58%), mostrando um valor discrepante bastante superior de provimento para as controvérsias envolvendo aposentadoria por tempo de contribuição (71%). O aumento, certamente, se deve às aposentadorias especiais, que estão computadas nessa tipologia.

Tabela do índice de provimento na 1ª instância da Justiça Federal por assunto, de 2014 a 2017

Artigo I.

Espécie

Total de decisões

Favoráveis

Percentual

Artigo II.

Auxílio-doença

1.160.915

529.684

46%

Artigo III.

Aposentadoria por idade

468.935

271.702

58%

Artigo IV.

Benefício assistencial (LOAS)

421.622

186.570

44%

Artigo V.

Aposentadoria por invalidez

399.236

180.166

45%

Artigo VI.

Aposentadoria por tempo de contribuição

271.920

193.939

71%

Artigo VII.

Pensão por morte

231.785

133.643

58%

Artigo VIII.

TOTAL

2.954.413

1.495.704

51%

FonteFonte: BRASIL. AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil. [8]

2 A judicialização intensa acerca de benefícios por incapacidade temporária e definitiva: multiplicidade de fatores

Uma recente investigação sobre as possíveis causas da judicialização de benefícios previdenciários e assistenciais no Brasil apontou que a judicialização mais intensa é sobre benefícios que demandam perícia (questão de fato). Além dos problemas estruturais do Instituto Nacional de Seguro Social, entidade concessora e mantenedora dos benefícios, o nível elevado de concessões judiciais revela o complexo descompasso entre as perícias feitas pelo órgão e as realizadas pelo Judiciário.

No relatório A judicialização de benefícios previdenciários e assistenciais, elaborado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER), [9] por encomenda do Conselho Nacional de Justiça, sobre as causas, os problemas e as políticas públicas indicadas como soluções, apresentado em 20 de outubro de 2020, durante a 320ª sessão ordinária do CNJ, apontou-se o que já se sabia. Conflitos sobre direitos da seguridade social representam mais da metade dos novos processos que ingressam na Justiça brasileira.

A pesquisa revelou que a intensidade e o perfil da judicialização da seguridade social estão relacionados tanto às condições socioeconômicas do local, como ao nível de renda e desenvolvimento do mercado formal de trabalho. Além disso, o aumento do tempo médio de análise de benefícios incentiva a mais nova modalidade de judicialização contra a demora da autarquia em responder às solicitações dos segurados. A demora é relacionada à redução do quadro de pessoal técnico e de procuradores do INSS.

A pesquisa é muito importante porque coletou dados em uma amostragem de 9.253.045 processos administrativos e 593.772 concessões em decorrência de decisão judicial do período entre dezembro de 2018 e dezembro de 2019, assim como dados administrativos agregados para os dez anos anteriores; dados de gestão processual da Justiça de 9.027.825 processos judiciais de 2015 a 2019; textos de decisões judiciais referentes a 1.334.814 processos de 2015 a 2018; e entrevistas semiestruturadas com 47 representantes dos sistemas de justiça e previdenciário.

A partir da análise dos processos administrativos, o relatório aponta seis características principais das concessões e dos indeferimentos:

• ao menos 11% dos benefícios concedidos pelo INSS advêm de decisões judiciais, especialmente de ações do sul e do sudeste;

• há prevalência da judicialização do benefício de auxílio-doença (hoje benefício por incapacidade temporária), preponderando a insatisfação dos segurados sobre a validade e a qualidade das perícias médicas realizadas na via administrativa, confrontadas pelas perícias judiciais, que, em um número muito considerável, chegam a conclusões diversas;

• o percentual dos benefícios que requerem perícia é maior entre as concessões por decisão judicial em comparação às decisões administrativas, indicando maior propensão à judicialização;

• a proporção de pessoas desempregadas, que perderam ou não a condição de segurado, é consideravelmente maior nos casos de indeferimento;

• nos últimos dez anos, observou-se aumento no tempo médio de análise dos requerimentos de benefícios por parte do INSS.

A partir dos dados coletados, o relatório elenca quatro macroproblemas identificados na pesquisa. São eles: dificuldade de acesso à instância administrativa para requerer o benefício; dificuldade de internalização da jurisprudência pelo INSS; subaproveitamento na via administrativa; e subaproveitamento das informações apuradas no processo administrativo em sede judicial.

Como resultado da análise das informações e das entrevistas, o relatório indica 16 (dezesseis) ações destinadas a resolver ou minimizar os macroproblemas e reduzir a judicialização, valendo destacar as seguintes: acesso presencial às agências do INSS em regiões de maior exclusão digital; adoção de uma política de informação sobre o uso da plataforma “Meu INSS”; maior acesso e simplificação do processo administrativo, com ampla informação ao segurado; transição para o processo digital com atenção à qualidade das análises; e mais informações ao segurado sobre o andamento das análises administrativas.

As principais propostas me parecem ser: o reforço na qualidade de análise do material probatório e verificação de informações sobre o segurado; a uniformização dos critérios de análise probatória e pericial; o compartilhamento de sistemas do INSS e do Judiciário; o acesso pelo Judiciário às análises e aos documentos do processo administrativo; e a ampliação dos esforços do Judiciário para a consolidação da sua jurisprudência.

Ao apresentar as conclusões do estudo, o relatório alerta para o risco de a epidemia da COVID-19 agravar a situação da judicialização dos benefícios previdenciários e assistenciais. A partir das informações, a equipe de pesquisa do INSPER considerou que a ampliação da demanda pelos benefícios previdenciários e assistenciais, nas vias administrativa e judicial, além do desencontro entre as esferas administrativa e judicial, está relacionada com o desemprego em níveis mais altos e o contingenciamento fiscal (EC 95).

A referida pesquisa toca em pontos fundamentais da judicialização da seguridade social. Realmente, houve um aumento dramático da judicialização das pretensões cujo objeto é a concessão de benefícios por incapacidade, temporária ou definitiva. A explicação para este fenômeno é complexa, mas dois fatores são incontroversos: o adoecimento da população e o aumento das negativas na via administrativa.

3 O aumento dos índices de adoecimento da população brasileira

Há um aumento do adoecimento da população brasileira, decorrência de múltiplos fatores. Os hospitais estão sempre cheios, e têm-se, sintomaticamente, farmácias em todas as esquinas. Cada vez mais pessoas necessitam usar drogas para controlar suas doenças. Cada vez mais os médicos apostam nos medicamentos. São felicidades artificiais.

Apesar dos avanços da medicina, os tratamentos mais eficazes não são acessíveis às camadas mais pobres da população. Tratamentos pelo Sistema Único de Saúde, apesar de gratuitos, são demorados e precários. Marcar um exame complementar, obter um medicamento, fazer uma cirurgia ou outro procedimento médico é sempre muito difícil e demorado. Esse dado, mostrando que se têm duas medicinas no Brasil, uma dos ricos e outra dos pobres, revela o motivo da corrida ao INSS para postular benefícios por incapacidade. Problemas de saúde que poderiam ser resolvidos sem afastamento do trabalho culminam por se agravar e levam os indivíduos à incapacidade e à necessidade de utilizar o seguro social.

O aumento do adoecimento psíquico, por exemplo, é muito expressivo. A OMS estima que atualmente a depressão afeta cerca de 350 milhões de pessoas, sendo que a taxa de prevalência na maioria dos países varia entre 8% e 12%. É a principal causa de incapacitação dos indivíduos no mundo quando se considera o total de anos perdidos (8,3% dos anos para homens e 13,4% para mulheres) e a terceira principal causa da carga global de doenças. A previsão é de que subirá ao primeiro lugar até 2030. [10]

Competição, disputas de todo tipo, desigualdades imensas, preconceito, violência física e psicológica, um distanciamento cada vez maior entre os seres humanos e a busca e a cobrança por status, carreira, dinheiro – ou até mesmo pela sobrevivência – têm levado os indivíduos a quadros depressivos graves, com um razoável número de suicídios e índices de absenteísmo no trabalho absurdos.

O adoecimento chamado profissional é também uma realidade muito pungente, levando milhares de trabalhadores à incapacidade. Clima organizacional e ambiente de trabalho nocivos, pressão por produtividade, carga excessiva de trabalho, inexistência de programas de qualidade de vida e bem-estar, falta de investimento em recursos humanos, etc. são fatores que, cada vez mais, provocam o adoecimento no ambiente de trabalho. Essas evidências demandam uma profunda reflexão sobre a relação entre as deficitárias políticas públicas de saúde pública, o absenteísmo e a corrida ao seguro social.

4 A retração da concessão administrativa provocando judicialização

Dados nos mostram que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) negou 3.311.615 benefícios entre fevereiro e outubro deste ano, marcado pela crise da pandemia do novo coronavírus. O benefício por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença) representa 53,4% do total de benefícios indeferidos no mesmo período, perfazendo 1.786.450 benefícios desta espécie denegados na via administrativa para 1.687.537 concessões. [11]

O nível de concessões de prestações da seguridade social tem se reduzido drasticamente nas últimas décadas, enquanto aumenta exponencialmente o número de cancelamentos administrativos. O INSS, autarquia federal encarregada de conceder os benefícios previdenciários e assistenciais, transforma-se, em velocidade acelerada, em uma via de mão única. Somente saem e não entram novos beneficiários.

Ainda que seja salutar e necessário o cancelamento de benefícios indevidos, percebe-se um esforço do Executivo, convalidado pelo Legislativo, dirigido ao cancelamento de benefícios, principalmente aqueles concedidos judicial ou administrativamente em razão de incapacidade, fazendo uso de incentivos escancaradamente tendenciosos ao não reconhecimento de incapacidade laboral, como são os bônus concedidos aos peritos federais (que incentivam a superficialidade e a negativa).

Também se verifica, icto oculi, por orientação superior institucional, uma retração na concessão de novos benefícios, cujos índices são reduzidíssimos para algumas espécies de benefícios, como as aposentadorias especial e por incapacidade definitiva. A propósito, constata-se que as concessões na via judicial, já maiores do que as administrativas, analisadas sob o ponto de vista da concretização dos direitos da seguridade social, têm um importante papel no incremento da cidadania e da democratização social. Milhares de pedidos aguardam apreciação na via administrativa. Com a pandemia da COVID-19, as agências fecharam, e os pleitos dos segurados estão paralisados. Ao contrário do Poder Judiciário, que aumentou a sua produtividade durante a pandemia, o INSS estagnou. [12]

São escandalosos os casos de negativa de concessão de benefícios sob o argumento da falta de prova dos requisitos prescritos em lei, como tempo de contribuição e/ou de trabalho rural, incapacidade laboral ou demonstração do exercício de atividade especial, decorrentes de postura da autarquia previdenciária calcada em interpretação meramente literal das leis previdenciárias – desconsiderando princípios constitucionais e entendimentos consolidados nos tribunais. [13] Não é sem causa que hoje se indefere muito mais do que se concede, não custa repetir.

Essa tendência de indeferimento, que assume uma característica de quase “orientação institucional”, decorre, em boa medida, da hiperativa e exuberante sanha legislativa em matéria previdenciária. Sem contar as frequentes emendas constitucionais, a cada ano são aprovadas dezenas de leis, medidas provisórias, decretos e normas de hierarquia inferior disciplinando o acesso e as condições de elegibilidade aos benefícios e aos serviços da seguridade social.

Em qualquer ramo do direito, a inflação legislativa, típica do Estado do Bem-Estar Social, conforme já discuti alhures, representa um fator que conspira contra o cumprimento e a exata compreensão dos textos legais. Na matéria previdenciária, têm-se alguns agravantes. Além da insegurança jurídica, que dificulta a compreensão pelas pessoas destinatárias das normas, a mudança frequente dos padrões de segurança social culmina por frustrar todos os projetos de vida dos indivíduos e das famílias seguradas/dependentes, suas expectativas legítimas de direito e a confiança que deve nortear as relações entre o Estado e os cidadãos. Gera, ademais, duas outras externalidades negativas: (1) uma corrida às agências do INSS, em busca da concessão de benefícios ainda sob a égide da lei revogada mais benigna, muitas vezes com palpáveis prejuízos aos direitos do segurado, e (2) outra corrida ao Poder Judiciário, decorrência dos conflitos previdenciários que se instalam em razão de dúvidas, inconsistências, ilegalidades e inconstitucionalidades que costumam acompanhar as reformas legislativas neoliberais.

Toda essa “normatização exagerada”, analisada em sua essência, tende a limitar o acesso aos referidos direitos previdenciários. São “leis” mais duras e seletivas. Assim, em razão da hiperlegiferância, que, por si só, gera infindáveis dúvidas interpretativas não só de direito intertemporal, mas também de validade e consonância constitucional, todas essas “reformas legislativas” têm o potencial implícito de produzir litigiosidade. [14]

Para além do problema da “normatização exagerada”, temos o que Alexandre S. Triches chamou de “excessiva subjetivação” na análise dos pedidos administrativos de benefícios previdenciários. O referido previdenciarista ilustra seu pensamento com demonstração estatística de injustificáveis discrepâncias de tratamento a casos idênticos em diversas agências da Previdência Social de diversas cidades com perfis socioeconômicos iguais, a reforçar a total ausência de padrões objetivos de indeferimento. [15]

Por esses aspectos, parece acertada a conclusão de Bruno Takahashi suspeitando que o sistema administrativo de solução dos conflitos previdenciários talvez não seja baseado em filtros que limitem o número de casos que chegam ao Poder Judiciário, mas, ao contrário, culmina por incrementar os conflitos a serem repetidos na esfera judicial. [16]

5 O problema das perícias administrativas e judiciais

Percebe-se uma cada vez maior tendência de improcedência no primeiro grau de ações sobre benefícios por incapacidade. Essa orientação vetorial está intimamente relacionada com a dificuldade que os juízes encontram para lidar com a prova pericial, esta que é a única e derradeira prova a ser produzida nesse tipo de processo. O deslinde desse tipo de conflito passa necessariamente pela perícia médico-judicial. Portanto, se a perícia não é bem feita, se ela não é informativa e conclusiva ou mesmo se ela é preconceituosa, superficial ou tendenciosa, o resultado é a improcedência da ação. Resta o segurado jogado em limbo previdenciário/trabalhista: não se encontra incapaz para o INSS nem para Judiciário, embora não tenha condições de competir no seletivo mercado de trabalho ou prosseguir trabalhando a despeito do esgotamento dos seus limites físicos e mentais.

As perícias administrativas – e muitas vezes as judiciais – nutrem um certo preconceito velado com relação ao reconhecimento da incapacidade para o trabalho. Apenas em casos muito graves o benefício é concedido na via administrativa. A judicialização é inerente a esta injustificada retração.

Um laudo pericial administrativo somente será válido, convincente e aceitável se atender a todos os requisitos formais e materiais da boa perícia. Os laudos, se é que se pode chamar de laudo alguns exames que tenho visto em processos previdenciários, precisam: 1. demonstrar que o médico perito realmente examinou o periciando, estudou o caso e envidou científicos esforços para chegar a um diagnóstico preciso de (in)capacidade; 2. estar subsidiados com os exames complementares necessários hoje disponíveis no mercado (laboratoriais, de imagem, etc.); 3. atentar para o histórico médico do periciando e sua vida pregressa espelhada em laudos particulares, atestados de afastamentos do trabalho e prescrições de tratamentos medicamentosos e fisioterapias; 4. apresentar fundamentação adequada e convincente, não se compadecendo com evasivas e respostas demasiadamente objetivas, do tipo “sim” ou “não”; 5. lançar um olhar mais holístico e compreensivo sobre as circunstâncias pessoais do periciando. Sobretudo, na projeção da incapacidade, levar em conta o trabalho habitual, a idade, a escolaridade e outros fatores que possam influenciar no normal desempenho do ofício do periciando.

No confronto entre laudos particulares, laudos administrativos e laudos judiciais, percebem-se diferenças de resultados que, muitas vezes, tornam difícil acreditar que se trata da mesma pessoa (segurado) que foi submetida às perícias. Algo há de muito preocupante nas discrepâncias que se encontram nos diversos laudos que são acostados aos autos dos processos judiciais.

Em razoável medida, é essa notória discrepância que provoca a judicialização, hoje a mais intensa e onerosa. As ações sobre benefícios por incapacidade, porque demandam a realização de perícia médica judicial, contemplam um custo adicional milionário para a Justiça. Como os autores, na sua esmagadora maioria, litigam sob o pálio da assistência judiciária gratuita, os honorários periciais são antecipados às expensas do orçamento da Justiça Federal.

Portanto, as perícias tendenciosas realizadas na via administrativa, quase sempre não reconhecendo a incapacidade, considerando que em um número elevado de casos a perícia judicial chega a um resultado diverso e a sentença é de procedência do pedido (46%), [17] constituem um fator indutor de judicialização, que não pode ser resolvido pela via processual destinada às demandas repetitivas, porque se trata de questões de fato.

Essa limitação, somada ao adoecimento da população, torna muito difícil a busca de soluções para este tipo de judicialização, que, diga-se de passagem, é a mais intensa e a que mais produz externalidades negativas para o Judiciário.

6 A atuação do Poder Judiciário na concretização do direito aos benefícios por incapacidade: respostas jurisdicionais adequadas

Felizmente, os tribunais de segundo grau têm sido bastante sensíveis a esta problemática que se pode chamar de “crise das perícias”. Em inúmeros casos, revertem decisões de primeiro grau, seja no sentido de anular a sentença para a realização de nova perícia, nas hipóteses em que esta é imprestável, seja para conceder imediatamente o benefício, quando há no caderno processual elementos de prova suficientes. Neste caso que reporto, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região anulou a sentença para que outra perícia fosse realizada por médico especialista e esclarecendo as dúvidas deixadas pela primeira:

DIREITO PROCESSUAL PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE. LAUDO PERICIAL INSUFICIENTE. PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO. SENTENÇA ANULADA. COLEGIADO AMPLIADO. ART. 942, CPC.

1. A perícia é muito mais uma anamnese qualificada e um estudo da patologia desde o seu início (instalação), progressão e projeção para o futuro (perspectiva de cura, estabilização ou avanço da doença) do que outra coisa. Perícias incompletas, vai-se repetir à exaustão, ao invés de ajudarem, tornam a decisão judicial mais complicada e, às vezes, impossível. Ao olvidar o futuro, conectado com o passado e o presente, o perito-médico atua de forma imprevidente. Vale dizer, sem a devida atenção aos princípios universais da prevenção/precaução. Não cogita os riscos (evitáveis) de sua decisão (laudo é tomada de decisão) na perspectiva daqueles que serão afetados por ela (as consequências).

2. Quando a perícia judicial não cumpre os pressupostos mínimos de idoneidade da prova técnica, ela é produzida, na verdade, de maneira a furtar do magistrado o poder de decisão, especialmente quando elaborada por médico ortopedista que possui um grande histórico de perícias desconsideradas por este Tribunal em face de reiteradas afirmações de que segurados que exercem atividades profissionais que demandam intenso esforço físico (v.g. agricultores, pedreiros, empregados domésticos, auxiliares de produção, trabalhadores de serviços gerais) podem seguir trabalhando, desde que ergonomicamente, independentemente do estágio da doença e das condições pessoais, configurando efetivamente cerceamento de defesa, pois não traz segurança sobre a eventual incapacidade da parte-autora.

3. Não havendo a menor dúvida de que o perito não está efetivamente auxiliando o juízo, e aqui se deve considerar o Tribunal, limitando-se a responder objetivamente aos quesitos formulados, mostrando-se a prova técnica insuficiente para firmar o convencimento do juízo, ante a sua deficiência, mister se faz a reabertura da instrução processual, como vem sendo feito neste colegiado nos processos em que também atuou o mesmo expert (v.g. AC 5018145-16.2018.4.04.9999, relator Des. Federal Jorge Antonio Maurique, juntado aos autos em 11.10.2019; AC 5000800-66.2020.4.04.9999, relator Juiz Federal Convocado João Batista Lazzari, juntado aos autos em 08.06.2020). 4. Hipótese em que foi anulada a sentença para a realização de prova pericial por médico especialista. (TRF4, TRS/SC, Apelação Cível nº 5006497-68.2020.4.04.9999/SC, relator para o acórdão Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz, j. 30.06.2020)

Em artigo que escrevi em parceria com Diego Henrique Schuster, sob o título “O princípio da prevenção (“lato sensu”) nos benefícios por incapacidade” (Revista JurisFIB, a. IX, v. 9, p. 193-212, dez. 2018), apresentamos os fundamentos teóricos e práticos da incidência do princípio da prevenção/precaução, típico do direito ambiental, no direito previdenciário, para a solução das dúvidas científicas quanto à incapacidade para o trabalho. A seguir, de modo reduzido, reproduzo nossas considerações.

Casos há em que o segurado, embora não tenha sido cientificamente identificada a sua incapacidade para o trabalho pelo perito do juízo, é portador de patologias que recomendam a cessação de determinadas atividades físicas (trabalho) que possam, pelo esforço ou pelo tipo de movimento, levar ao agravamento ou mesmo à irreversibilidade do quadro sintomático, desencadeando a incapacidade definitiva. Sobre esse quadro fático, apurado pericialmente (não sendo, portanto, um palpite infeliz do juiz), é que vai incidir o enunciado do princípio da prevenção/precaução, consubstanciado na possibilidade (não certeza) de a continuidade do trabalho potencialmente agravar a patologia.

Note-se, por outro lado, que o princípio da precaução tem aplicabilidade quando existe a dúvida científica, e a prevenção, quando existe a certeza do dano. Essa diferença, tal como antes delineada, vai ter importância porque muitas vezes sequer a perícia consegue identificar a relação de causalidade entre a atividade desenvolvida pelo segurado e as patologias ou morbidades que o acometem. Comumente, esta relação de causalidade é deixada de lado pelo perito, que negligencia no seu mister de auxiliar o juiz, deixando de prestar uma informação de capital importância ao deslinde do conflito. Perícia incompleta, que obriga o juiz a avançar por uma seara da qual não tem o domínio seguro.

Definir o que é tarefa do perito e o que é tarefa do juiz não é mister simplório quando se trata da definição da (in)capacidade. O certo é que a prevenção/precaução, enquanto princípio superior de aplicação subjetiva e objetivamente universalizada que deveria ter sido aplicado pelo perito, se não o for, resulta submetida ao juiz, ao qual é vedado declarar o non liquet, pois precisa decidir o indecidível (Luhmann).

Embora o juiz utilize a sua condição de ser-no-mundo, a sua experiência, a sua vivência e a tradição como subsídios para encontrar a melhor compreensão da relação fato-direito, o ideal é que tais supostos sejam previamente manejados e avaliados pelo profissional médico, vale dizer, pelo próprio sistema sanitário (médico). A experiência, embora com ele não se confunda, sempre é subsídio do conhecimento científico. É, podemos dizer, um pressuposto inafastável para a ele se chegar.

É isto que os peritos recusam: deixar-se levar pela experiência e pela vivência como suportes do conhecimento científico que precisam ter e exercitar, auscultando os sentidos das inconfundíveis observações individuais sobre o mesmo fenômeno como movimento dialético que altera o seu saber e o respectivo objeto e que precisam ser desvelados. Melhor dizendo, submetidos ao crivo do processo dialógico, para debate das partes e avaliação judicial.

A experiência, enquanto essência histórica do homem, permite uma melhor aproximação com a coisa como ela é. No dizer de Gadamer, ela ensina “a reconhecer o que é real”. Na sua obra Verdade e método, Gadamer ressalta o aspecto indispensável da realização da experiência que concretize uma condição de possibilidade de adentrar, interpretar e conhecer uma circunstância por meio da via hermenêutica, conferindo a esta o status reflexivo e crítico (isto é, filosófico). Esse adentramento cognoscitivo acontece para penetrar no estado de espírito das coisas, e nesse adentrar pressupõe-se a experiência que se autocompreende a partir da reflexão no (e sobre o) contexto (na facticidade) em que se encontra, pois a penetração de espírito, disse Gadamer, “contém sempre um retorno de algo em que estávamos presos por cegueira. Nesse sentido, implica sempre um momento de autoconhecimento e representa um lado necessário que chamamos experiência num sentido autêntico”. [18]

A advertência de Gadamer, com relação à consciência histórica efeitual, ensina a fugir do axioma da mera habitualidade (“as coisas têm de ter sido sempre tal como são entre nós e ao nosso redor, porque é tudo tão natural”). Ela “vai mais além da ingenuidade do mero comparar e igualar, deixando que a tradição se converta em experiência e mantendo-se aberta à pretensão da verdade que lhe vem ao encontro nela”. E arremata: “A consciência hermenêutica tem sua consumação não na certeza metodológica sobre si mesma, mas na pronta disposição à experiência que caracteriza o homem experimentado face ao que está preso dogmaticamente”. [19]

A tentativa de conhecer a coisa (as circunstâncias) como ela é, ou seja, “reconhecer o que é real”, torna indispensável ao perito e depois ao juiz, nas suas tarefas cognitivas, primeiro, superar o dogma do exame do corpo como suficiente para a definição de uma suposta incapacidade para o trabalho. Esquecer o “trabalho” e concluir apenas com base em diagnóstico do corpo representa ao perito e ao juiz ficarem pelo meio do caminho na tarefa pretendida. Com efeito, se a incapacidade é para o “trabalho”, importa, tanto quanto diagnosticar ou não uma patologia e seus sintomas, avaliar as condições do exercício deste trabalho. Qual o nível de esforço a ser despendido e qual a condição de limitação que a patologia impõe ao periciando? Parece ser isso o que tem faltado em nossas perícias médicas: mais uso da experiência de vida do que um suposto conhecimento científico que nunca se debruçou seriamente sobre tais aspectos, em seu autismo sectário que reluta em conectar realidades imbricadas: corpo (análise física) e condições de trabalho (e suas barreiras).

Ademais, precisam peritos e juízes de um pouco mais de outridade (alteridade no sentido cunhado por Levinas). A decisão judicial não precisa ser consequencialista apenas do ponto de vista econômico. O consequencialismo para valer é aquele que reflete as consequências da decisão em um sentido amplo (holístico). O segurado, como qualquer autor de uma demanda judicial, sofre os efeitos negativos e positivos da decisão judicial. A pergunta é: até que ponto se pode, respeitada a dignidade da pessoa, impingir ao segurado o castigo de ter que trabalhar com sofrimento, dores, falta de forças e submetido a tratamentos farmacológicos (analgesia) que atenuem as dores resultantes de suas limitações para determinadas atividades, mas que sempre impõem efeitos colaterais graves? Têm-se visto laudos periciais que asseveram ser possível o trabalho de rural, por exemplo, nada obstante os problemas sérios na coluna, mediante analgesia e fisioterapia e posturas ergonômicas, como se tais paliativos não tivessem custo e não demandassem tempo, muitas vezes incompatível com as condições e o local de trabalho.

Um vício dos mais graves das perícias está em referir o perito que “no momento da perícia o segurado não apresentou sintomas que pudessem induzir à incapacidade”. Quando assim age, o perito culmina por congelar o quadro (em uma fotografia!), como se as doenças não tivessem “antes”, “durante” e “depois” (passado, presente e futuro). Essa atitude apaga o passado, celebra o presente e mata o futuro. Com efeito, a perícia é muito mais uma anamnese qualificada e um estudo da patologia desde o seu início (instalação), progressão e projeção para o futuro (perspectiva de cura, estabilização ou avanço da doença). Perícias incompletas, vai-se repetir à exaustão, ao invés de ajudarem, tornam a decisão judicial mais complicada e, às vezes, impossível.

Ao olvidar o futuro, conectado com o passado e o presente, o perito-médico atua de forma imprevidente. Vale dizer, sem a devida atenção aos princípios universais da prevenção/precaução. Não cogita os riscos (evitáveis) de sua decisão (laudo é tomada de decisão) na perspectiva daqueles que serão afetados por ela (as consequências). Também ao juiz, no seu decidir, revela-se imperdoável não inserir a variável prevenção/precaução dirigida a inibir ou atenuar os riscos de a decisão desencadear uma situação de prejuízo insuperável ao segurado que se encontre em vias de incapacidade.

Causará prejuízos também ao Estado-Previdência, que, ali na frente, resultado do trabalho em condições desumanas imposto ao segurado, terá que arcar com os ônus de uma incapacidade definitiva e as decorrências de contar com um indivíduo desabilitado que demandará tratamento mais oneroso, benefício mais dispendioso e, provavelmente, impossibilidade de readaptação para outras atividades.

Nessa perspectiva, cito aqui julgado de minha relatoria:

PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE. VINCULAÇÃO AO LAUDO. INOCORRÊNCIA. PROVA INDICIÁRIA. AUXÍLIO-DOENÇA. REQUISITOS. COMPROVAÇÃO. PRINCÍPIO DA PREVENÇÃO APLICÁVEL NO PROCESSO PREVIDENCIÁRIO. ART. 942, CPC.

1. O juízo não está adstrito às conclusões do laudo médico pericial, nos termos do artigo 479 do NCPC (“O juiz apreciará a prova pericial de acordo com o disposto no art. 371, indicando na sentença os motivos que o levaram a considerar ou a deixar de considerar as conclusões do laudo, levando em conta o método utilizado pelo perito”), podendo discordar, fundamentadamente, das conclusões do perito em razão dos demais elementos probatórios coligidos aos autos e das regras da experiência.

2. Ainda que o caderno processual não contenha elementos probatórios conclusivos com relação à incapacidade do segurado, caso não se possa chegar a uma prova absolutamente conclusiva, consistente, robusta, é adequado que se busque socorro na prova indiciária e nas evidências.

3. Em que pese os laudos periciais realizados tenham concluído pela aptidão laboral da parte-autora, a confirmação da existência das moléstias incapacitantes referidas na exordial (tendinite, tenisinovite, lúpus eritematoso sistêmico, hipertireoidismo, fibromialgia, bursite de ombro e depressão), corroborada pela documentação clínica apresentada, associada às suas condições pessoais – habilitação profissional (faxineira) e idade atual (46 anos) –, demonstra a efetiva incapacidade temporária para o exercício da atividade profissional, o que enseja, indubitavelmente, a concessão de auxílio-doença, desde o indevido cancelamento até a reabilitação para outra atividade profissional compatível com as comorbidades da segurada.

4. Aplicação ao caso, de comorbidades graves comprovadas, do princípio da prevenção, porquanto a continuidade do trabalho em condições de saúde precárias e com sofrimento poderá agravar o quadro patológico e levar à incapacidade definitiva, desenlace indesejado pela sociedade e mais oneroso para a seguridade social. (TRF4, TRS/SC, Apelação Cível nº 5010121-2.2019.4.04.9999/SC, relator Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz, j. em 30 de junho de 2020)

Outra tendência, quanto aos benefícios por incapacidade, é a recursividade a ficções e presunções para a fixação da data de início da incapacidade (DII), em prejuízo do segurado. Tem-se adotado amiúde a “data da realização da perícia”. Em autêntica confusão entre a doença e o diagnóstico, toma-se um dado alheio à morbidade incapacitante quando se pode recorrer a outros elementos que se encontrem nos autos e mesmo à experiência, aos indícios e a outras evidências que se pode extrair do histórico médico do segurado. A presunção legal é que a incapacidade retroage à data do requerimento, e esse dado deveria ser considerado na hipótese de dúvida científica. No julgado que segue, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região rechaçou tentativa de aplicação de uma ficção prejudicial ao segurado:

PROCESSO PREVIDENCIÁRIO. JULGAMENTO NO COLEGIADO AMPLIADO DO ART. 942, CPC. TERMO INICIAL DO BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE. DATA DA PERÍCIA. FICÇÃO EM MALAN PARTE. PRESUNÇÃO DE BOA-FÉ DO SEGURADO.

1. Hipótese em que o termo inicial do benefício foi fixado na data da perícia, porque o perito, comodamente, limitou-se a afirmar que não poderia precisar a época de início da moléstia, confundindo a data do início da incapacidade com a data do diagnóstico e presumindo a má-fé do segurado, que teria então ajuizado a ação capaz, contando que até a data da perícia estivesse incapaz. O ajuizamento da ação faz presumir a incapacidade, se não for possível definir a data precisa.

2. Existindo indícios nos autos de que o quadro mórbido já estava instalado nessa época, deve ser provido o apelo da parte-autora para retroagir a DIB para a DER, porquanto a data da perícia é uma ficção que recorre à variável menos provável. O momento da perícia é o momento do diagnóstico, e dificilmente, exceto uma infeliz coincidência, a data da instalação da doença e da provável incapacitação.

3. Quando se recorre às ficções, porque não é possível precisar a data da incapacidade a partir de elementos outros, sobretudo os clínicos-médicos, é preciso levar em conta um mínimo de realidade, e esta indica a relativa improbabilidade do marco aleatório.

4. O histórico médico e outros elementos contidos nos autos, inclusa a DER e as regras da experiência sobre a evolução no tempo de doenças, devem se sobrepor às ficções, notadamente aquelas que se estabelecem in malan parte, consoante inúmeros julgados deste colegiado. (TRF4, TRS/SC, Apelação Cível nº 5024047-47.2018.4.04.9999/SC, relator para o acórdão Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz, j. 30.06.2020)

7 Proposições para a desjudicialização da incapacidade laboral previdenciária

Um detalhe fundamental que muitas vezes é olvidado por aqueles que se dedicam ao estudo da judicialização dos direitos fundamentais da seguridade social diz respeito à distinção entre controvérsias de fato e de direito. Quando nos deparamos com questões de direito, é perfeitamente viável a solução das demandas de massa pela via dos mecanismos processuais que o Código de Processo Civil estabelece no âmbito do microssistema de demandas repetitivas (arts. 927-928 do CPC): incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), recurso especial e recurso extraordinário com repercussão geral.

Já com relação às controvérsias exclusivamente de fato, são elas incompatíveis com a sistemática de julgamentos moleculares prevista nesses mecanismos, obviamente. As questões de fato demandam sempre análise particularizada e apreciação específica da prova que for produzida, portanto, são insuscetíveis de serem objeto de IRDR ou recurso especial ou extraordinário nos tribunais superiores. O parágrafo único do art. 928 dispõe: “O julgamento de casos repetitivos tem por objeto questão de direito processual ou material”.

Uma das características dos litígios que compõem a judicialização dos conflitos sobre direitos da seguridade social é justamente a circunstância de essas causas terem como objeto mais questões de fato do que de direito. Com o aumento exponencial das ações sobre benefícios previdenciários por incapacidade, assistenciais (BPC), do segurado especial rural e de aposentadorias especiais, envolvendo, na maioria dos casos, análise da prova dos fatos constitutivos do direito do autor, torna-se mais complexa a solução do problema da judicialização individual que compromete as estruturas do Poder Judiciário.

É preciso encontrar soluções por outras vias. Penso que o maior remédio para controlar a judicialização dos benefícios por incapacidade é o incremento das concessões na via administrativa. O aumento da judicialização é diretamente proporcional às negativas e à retração das instâncias administrativas concessoras, sabidamente comprometidas com as orientações institucionais de negar os direitos.

Portanto, a solução para o “problema” de judicialização da incapacidade laboral passa por uma virada comportamental (atitudinal) e hermenêutica na via administrativa, de modo que as decisões sejam mais consentâneas com a realidade dos fatos deduzidos, as interpretações, menos positivistas, mais razoáveis e aderentes aos princípios constitucionais de proteção social, e as perícias administrativas, menos tendenciosas e mais completas, analisando todas as circunstâncias do periciando, não só as relacionadas ao seu corpo físico, mas também as do ambiente em que vive e trabalha (aspectos socioeconômicos, profissionais e culturais, como recomenda a jurisprudência). Sobretudo, é preciso sepultar o péssimo vezo de não se desincumbir a administração previdenciária do dever legal de esclarecer, subsidiar e conceder o melhor benefício ao segurado.

Reflexões finais

A judicialização, ao que se vê, não é boa nem ruim! Ela é o que não pode deixar de ser, muito mais a consequência (sintoma) da falta de investimentos em políticas públicas sociais (ninguém ignora isso!) do que propriamente uma tendência deliberada da sociedade contemporânea.

A solução para a redução da judicialização ou desjudicialização dos conflitos sobre questões de fato passa pela otimização das perícias administrativas. Os médicos peritos federais que prestam serviços nos processos administrativos, elaborando laudos sobre a incapacidade para o trabalho, precisam despir-se dos seus preconceitos e, honrando a fé dos seus graus, dedicar-se ao trabalho pericial de forma isenta e imparcial.

Precisam, ademais, compreender que a perícia médica não é uma simples consulta, supondo também uma análise da eventual morbidade no contexto laboral do segurado, a partir do conjunto indissociável das suas circunstâncias pessoais (idade e escolaridade), sociais (grau de inserção social), econômicas (condições financeiras) e laborais (ambiente de trabalho). É necessária sempre a projeção para o futuro, talvez esta a mais importante pergunta a que o perito precisa responder. Há possibilidade de agravamento do quadro mórbido se o segurado persistir no trabalho que desempenha? A ingestão de medicamentos para suportar a carga de trabalho pode desencadear outras doenças (side effects)?


Referências bibliográficas

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[1] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números. 2019. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf. Acesso em: 18 out. 2020.

[2] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Competência delegada de direito previdenciário: uma comparação entre a Justiça Estadual e a Justiça Federal nas ações previdenciárias. 2020. Disponível em: https://www.ieprev.com.br/assets/docs/RelatorioCompetenciaDelegada.pdf20. Acesso em: 18 out. 2020.

[3] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Competência delegada de direito previdenciário: uma comparação entre a Justiça Estadual e a Justiça Federal nas ações previdenciárias. 2020. Disponível em: https://www.ieprev.com.br/assets/docs/RelatorioCompetenciaDelegada.pdf20. Acesso em: 18 out. 2020.

[4] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números..., p. 158.

[5] BRANCO, Ana Paula; CASTELANI, Clayton. Ações para sair da fila do INSS disparam na Justiça Federal. Portal Folha de S. Paulo, 22 jan. 2020. Disponível em: https://agora.folha.uol.com.br/grana/2020/01/acoes-para-sair-da-fila-do-inss-disparam-
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. Acesso em: 19 out. 2020.

[6] ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO BRASIL – AJUFE. Judicialização contra o INSS. 2019. Disponível em: http://ajufe.org.br/images/pdf/AJUFE__Arrazoado_Tcnico__Judicializacao_INSS_.pdf. Acesso em: 20 out. 2020.

[7] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Audiência pública no TCU trata da judicialização dos benefícios do INSS. 2018. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/audiencia-publica-no-tcu-trata-da-judicializacao-dos-beneficios-do-inss.htm. Acesso em: 20 out. 2020.

[8] ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO BRASIL – AJUFE. Judicialização contra o INSS...

[9] AZEVEDO, Paulo Furquim; VASCONCELOS, Natália Pires; INSPER. Desajustes favorecem judicialização previdenciária. Má sintonia entre Justiça e INSS e lentidão administrativa estão entre os problemas. A judicialização de benefícios previdenciários e assistenciais. Disponível em: https://www.insper.edu.br/conhecimento/direito/desajustes-favorecem-judicializacao-previdenciaria/. Acesso em: 29 abr. 2021.

[10] WORLD HEALTH ORGANIZATION. Mental health action plan 2013-2020. Geneva: WHO, 2012. Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/89966/1/9789241506021_eng.pdf?ua=1. Acesso em: 04 nov. 2020.

[11] LORRAN, Tácio. INSS: veja quais são os benefícios mais negados em 2020 e como evitar o problema. Metrópoles, 2020. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/economia-br/inss-veja-quais-sao-os-beneficios-mais-negados-
em-2020-e-como-evitar-o-problema
. Acesso em: 20 jan. 2020.

[12] Com o recrudescimento da crise, foi autorizada a concessão de benefícios por incapacidade mediante a apresentação de atestados médicos unilaterais, em medida que deve ser comemorada e aplaudida.

[13] Por todos, refiro elucidativo artigo de Marco Aurélio Serau Jr. (SERAU JR., Marco Aurélio. Conflito previdenciário: raízes, características e motivos do excesso de litigiosidade. In: COSTA, José Ricardo Caetano; VASCONCELOS FILHO, Oton de Albuquerque (coord.). Direitos sociais, seguridade e previdência social [Recurso eletrônico]. Florianópolis: CONPEDI, 2015. p. 376-392).

[14] Ver, a propósito, TAKAHASHI, Bruno. Reformas previdenciárias como prováveis causas de litigiosidade...

[15] TRICHES, Alexandre Schumacher. Direito processual administrativo previdenciário..., p. 156.

[16] Ver, a propósito, TAKAHASHI, Bruno. Reformas previdenciárias como prováveis causas de litigiosidade..., p. 33.

[17] ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS DO BRASIL – AJUFE. Judicialização contra o INSS...

[18] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Traduzido por Flávio Meurer. Petrópolis (RJ): Vozes, 1997. p. 526.

[19] Op. cit., p. 533.

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