Introdução Richard Susskind previu que, por volta de 2030, talvez um pouco antes, as cortes do mundo inteiro seriam transformadas por tecnologias que ainda sequer existiam ao tempo de sua clarividência.[1] A pandemia fez essa previsão se concretizar dez anos antes, e, diversamente do que estimado, por meio de ferramentas que já estavam disponíveis, mas não utilizadas em todo seu potencial: o processo eletrônico, o trabalho remoto e as audiências por videoconferência, conhecidas por audiências telepresenciais ou audiências virtuais. É sobre as últimas que se pretende lançar um olhar, uma tentativa preliminar de inventariar seu uso durante a emergência sanitária, por meio de uma comparação breve entre os cenários pré e pós-pandemia, tendo por base a experiência vivenciada pelas varas de competência cível da Justiça Federal da 4ª Região. 1 A pandemia e a mudança das bases de funcionamento do Judiciário Até março de 2020, a realidade judiciária era marcada por pessoas circulando nos fóruns. E uma das principais razões para deslocamentos aos fóruns era a necessidade de participar de audiências, que apenas esporadicamente se valiam de meios digitais para sua realização. Com a chegada da COVID-19, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu regime de plantão extraordinário em todos os órgãos do Judiciário (salvo STF e Justiça Eleitoral), por meio da Resolução 313/2020.[2] Esse ato normativo, ao tempo em que se preocupou em garantir o funcionamento da Justiça durante a emergência sanitária, suspendeu qualquer atendimento presencial a partes ou advogados, desde então só passíveis de ocorrer por meio digital (art. 3º); e autorizou magistrados e servidores a trabalhar remotamente, inclusive para prática de atividades pelo meio virtual (art. 6º). À referida resolução se seguiram diversos outros atos normativos, expedidos pelo CNJ e por tribunais ao redor do Brasil, disciplinando e detalhando o funcionamento dos órgãos judiciários durante a calamidade sanitária. Os fóruns foram fechados, o trabalho passou a ser realizado de casa, com suporte no sistema processual informatizado, no telefone, no WhatsApp e, no que tange às audiências, no Cisco Webex, aplicativo inicialmente empregado pela maior parte do Judiciário para realizar audiências virtuais. O que se viu nos momentos seguintes foi que, em maior ou menor escala, o Judiciário não parou. E duas ferramentas, exploradas com velocidade e desenvoltura impressionantes, foram essenciais para manter a Justiça em funcionamento: o processo eletrônico, amplamente difundido em território nacional antes da pandemia;[3] e as audiências telepresenciais (virtuais).[4]-[5] 2 O que se constata até aqui Especialmente em relação às audiências virtuais, é evidente que a transição para o novo modelo, implantado emergencialmente, não foi livre de desafios e percalços. Um tempo de acomodação foi necessário, e uma diminuição do ritmo de audiências foi verificada, como denota o quadro a seguir, elaborado pela Corregedoria do TJRJ,[6] que permite visualizar uma queda vertiginosa na quantidade de audiências a partir de março de 2020, patamar que permaneceu bem abaixo do anterior até julho daquele ano: Fenômeno semelhante ocorreu na Justiça do Paraná. Mas, naquele âmbito, a retomada foi mais acelerada, pelo menos na esfera dos juizados especiais e do núcleo de conciliação[7]: Nas varas de competência cível da Justiça Federal da 4ª Região, também se constatou queda no número de audiências. Antes de apresentar os resultados, é necessário esclarecer que os dados a seguir apresentados: a. foram coletados no painel de estatísticas mensais de 1º grau[8] e se circunscrevem a processos de competência cível, excluídas ações de naturezas previdenciária e criminal; b. quanto ao período de apuração, levou-se em consideração os 16 meses anteriores e os 16 posteriores a março de 2020, mês em que a pandemia afetou o funcionamento do Judiciário, cujos dados não foram levados em conta justamente por sua atipicidade (adaptação recente à nova realidade) e por ser inviável apurar seus números de forma fracionada (parte do mês fluiu em regime normal, e outra parte, em regime de plantão extraordinário); c. em relação à conciliação, a indicação de sua ocorrência ou não é informada pelo próprio juízo presidente do processo ao sistema eproc, com base no que o relatório estatístico é gerado. Foram considerados como “com conciliação” também os processos em que esta foi obtida apenas parcialmente. Há um número relevante de casos, contudo, em que a realização de audiência é registrada no eproc, mas não é informado se houve ou não conciliação. O número de processos em que não foi informado se houve ou não conciliação aumentou muito no período pós-pandemia, como será abaixo detalhado, o que impede afirmar com um mínimo de segurança que as conciliações de fato diminuíram e, mais ainda, atribuir às audiências telepresenciais qualquer efeito negativo nesse sentido. A Seção Judiciária do Paraná teve seu ritmo de audiências e conciliações afetado na maneira espelhada pelo quadro a seguir: No período pós-pandemia, o número de audiências caiu para 33,06% do total anterior. O índice de processos com conciliação era de 30,22% no período prévio à pandemia e diminui para 19,12% entre 04/2020 e 07/2021. Agora, veja-se a situação na Justiça Federal do Rio Grande do Sul: No período posterior a março de 2020, o número de audiências decresceu para 27,86% do total anterior. A média de processos com conciliação era de 25,10% no período prévio à pandemia e diminuiu para 15,87% entre 04/2020 e 07/2021. Na Justiça Federal de Santa Catarina, ocorreu fenômeno semelhante: O número total de audiências pós-pandemia representa 17,73% do total anterior. Entre 11/2018 e 02/2020, a conciliação se verificou em 23,02% dos casos. Já no período seguinte, o índice foi para 17,61%. De outro lado, em 2021 já é possível detectar um movimento de aumento do número de audiências. Para ilustrar, tomem-se os dados da SJSC, de abril de 2021 a julho de 2021. Nesse período, foram realizadas 672 audiências em processos cíveis, ante 2.089 feitas em todo o período pós-pandemia (04/2020 a 07/2021). Assim, de 04/2021 a 07/2021, tem-se uma média de 168 audiências por mês, contra 130 audiências por mês no interregno de 04/2020 a 07/2021. 3 O que se pode cogitar Com base nos dados da Justiça Federal da 4ª Região acima apresentados, muito embora coletados em universo limitado (competência e abrangência territorial dos juízos) e em base que carece de maior detalhamento, fica evidente que: a. o volume de audiências diminuiu sensivelmente, o que também se verificou nas Justiças dos estados do Rio de Janeiro e do Paraná; b. as estatísticas apontam para diminuição do número de processos em que se obteve conciliação no período de pandemia, mas a informação não é precisa e não permite nenhum juízo seguro quanto à efetiva redução das conciliações, nem sobre qualquer interferência do meio virtual nesse campo. Na JFPR, antes da pandemia (de 11/2018 a 02/2020), a quantidade de processos sem informação sobre ocorrência ou não de conciliação (única informação existente é no sentido de que houve realização de audiência) representava 9,27% do total de audiências. Assim, no período em questão, para cada 100 audiências realizadas, em pouco mais do que 9 é inviável saber se houve ou não conciliação, pois esse dado não foi lançado no eproc e, portanto, não integra o relatório informatizado que baseia este estudo. Já no período de pandemia (04/2020 a 07/2021), a quantidade de audiências sem informação sobre a ocorrência ou não de conciliação saltou para 20,26% do total, mais do que o dobro do volume anterior. Na JFRS, tem-se 13,96% de audiências sem informação sobre conciliação no período pré-pandemia e 26,81%, praticamente o dobro, durante a pandemia. E, na JFSC, o volume sem informação sobre conciliação era de 8,94% antes da pandemia e passou para 28,19% durante a pandemia, mais do que o triplo. Como se vê, nas três seções judiciárias cresceu muito o número de audiências em que não se informou o resultado – ocorrência ou não de conciliação. Dentro desse volume de processos, pode ser que tenha havido muitas conciliações, em montante até superior ao que ocorria antes da pandemia, mas isso só é possível apurar por meio da análise individualizada de cada processo, o que não é comportado no âmbito deste trabalho. Desse modo, tem-se por inconclusivo o ponto, ou seja, não se pode afirmar com segurança nem que as conciliações diminuíram nem que foram incrementadas no período coberto pela pandemia. Com as observações acima, algumas hipóteses e reflexões podem ser levantadas. 3.1 Quanto à redução do número de audiências É notório que as audiências virtuais não começaram a ser realizadas maciçamente logo ao início do regime de plantão extraordinário. Enquanto alguns magistrados mais adiantados realizaram suas primeiras audiências virtuais em maio de 2020,[9] muitos outros começaram a designar seus atos apenas no segundo semestre daquele ano, pois ficaram no aguardo da melhora da condição sanitária, com o que seria possível realizar as audiências pelo modo usual. Esse represamento inicial certamente teve impacto decisivo na redução de audiências, acima verificada. Também é possível cogitar uma insegurança em se adaptar ao novo modelo. Com efeito, as transformações foram enormes ao longo de 2020, inclusive no modo de vida de cada um. No trabalho, a migração para um regime integralmente remoto já foi por si impactante. Some-se a isso a necessidade de realizar audiência (ato cercado de formalidades essenciais, cuja inobservância pode levar à inutilidade da prova produzida) da própria residência, muitas vezes sem um espaço adequado para abrigar um ato público, registrado e disponível posteriormente na rede mundial de computadores. Ainda, houve a necessidade de migrar para um aplicativo desconhecido e para o qual não se fora capacitado[10] previamente e que fica à mercê da estabilidade do sinal de Internet. Tem-se aí um contexto que facilmente desestimula uma incursão ao novo. Ainda, é possível cogitar que a prova oral, produzida em audiência, tenha sido, em muitos processos, substituída por outros meios. Esse é um fenômeno bem percebido no Direito Previdenciário, âmbito em que a Nota Técnica Conjunta nº 01/2020, produzida pelos Centros Locais de Inteligência das Justiças Federais do RS, do PR e de SC, atentou para o fato de que novas tecnologias e outros meios de prova previstos na legislação previdenciária tornam, em muitas situações, desnecessária a produção de prova em audiência.[11] Fenômeno semelhante foi captado em diversos países, como Bélgica, França e Polônia, que migraram da audiência para atos escritos, colocando em evidência que “algumas audiências têm sido redundantes e apenas acrescem custo e atraso à Justiça”.[12] Em tema específico de conciliação e mediação, já há meios efetivos para alcançá-las que dispensam a realização de audiências, o que influencia na diminuição do número destas. Veja-se o exemplo do Fórum de Conciliação Virtual, gerenciado pelo Sistema de Conciliação da 4ª Região (SISTCON), que “reúne as partes e, se necessário, o conciliador” e “ocorre de forma não simultânea”, dispensando a reunião das partes em audiência.[13] Já quanto a novos meios de prova e seu impacto na redução das audiências de instrução, é muito perceptível que as pessoas vivem sob constante escrutínio digital. Câmeras, sensores de localização e redes sociais registram quase tudo, de acidentes de carro a agressões físicas, e permitem saber com segurança onde um indivíduo esteve em certo momento. Assistentes pessoais virtuais têm sido chamados a produzir provas em processos,[14] para dizer quem esteve numa certa residência ou para exibir gravações de áudio sobre o momento da realização de um crime.[15] No Brasil, a Justiça do Trabalho já tem aproveitado toda essa documentação digital para reduzir a necessidade de realizar audiências. Como ressalta Rogério Neiva, “produzir prova para saber se o reclamante fez ou não hora extra ouvindo testemunha é algo que já não se mostra indispensável, ao se considerarem os mecanismos e recursos que existem hoje”.[16] Algo semelhante já pode estar ocorrendo em outros ramos do Judiciário (sobretudo diante do “estímulo” trazido pelo isolamento social para repensar antigos procedimentos), o que tem potencial impacto no número de audiências realizadas. Igualmente, é possível inferir que, com o passar dos meses, os magistrados foram se familiarizando com a novidade e o número de audiências voltou a crescer, como exemplificam os números da SJSC referentes a abril/21 a julho/21. Se é certo que houve um represamento inicial, há indicativos de que as razões de resistência estão sendo mitigadas. 3.2 Quanto às conciliações Até esta quadra, nada indica que as conciliações tenham sido prejudicadas pelo meio virtual de realização de audiências. Pelo contrário, tudo sugere que a virtualização seja um facilitador na busca de soluções consensuais. Não por outra razão o CNJ editou a Resolução nº 358/2020,[17] determinando aos tribunais a implementação de sistemas informatizados para a resolução de conflitos por mediação e conciliação. A prática tem demonstrado o sucesso das conciliações com amparo em tecnologia. Mutirão de audiências virtuais realizado pela JFPA teve êxito de 59,4%.[18] Na Comarca de Jundiaí/SP, a Vara de Família realizou acordo em 60% das audiências ocorridas entre abril e outubro de 2020.[19] No Paraná, mutirão realizado virtualmente obteve conciliação em 80% das audiências.[20] Aliás, mesmo soluções heterodoxas têm alcançado bons resultados, como um mutirão de “conciliação ‘assistida’ por e-mail”, realizado no Rio de Janeiro, que obteve sucesso em 76% dos casos.[21] E, mesmo fora do Judiciário, métodos alternativos de solução de conflitos baseados em tecnologia têm se mostrado altamente efetivos, como o sistema de ODR (online dispute resolution) do eBay,[22] que funciona com base em inteligência artificial e prescinde de intervenção de um humano como “julgador” em quase todas as situações. Ao que tudo indica, o meio virtual não prejudica, antes facilita, a obtenção de acordos. Inclusive, de um modo geral, a tecnologia não deixará o Judiciário quando a pandemia finalmente terminar. Há uma sensação de que a incorporação de novas ferramentas, em especial a audiência virtual, arejou, agilizou e tornou menos onerosa a prestação jurisdicional, em uma disrupção que se afigura maior do que as experimentadas com a introdução da datilografia, do fax e do computador ao serviço judiciário.[23] É bem disseminada a impressão de que as tecnologias em geral, e as audiências virtuais em especial, vieram para ficar, como exemplificam conclusões de grupo de trabalho formado por juízes canadenses criado para examinar as regras do processo civil na província de Ontário. Referido grupo, baseado nas experiências vividas na pandemia, recomendou um câmbio do modelo tradicional de audiências presencias para um novo, baseado, como regra, em audiências virtuais. De acordo com o estudo, “a apresentação de argumento na corte não pode mais ser considerado o modo padrão ou mesmo superior; ao invés, o padrão deve ser o meio mais rápido e econômico, atento às peculiaridades do caso”.[24] Aliás, as audiências, sejam exclusivamente de conciliação, sejam também de instrução, vão seguir admitindo múltiplas formas de implementação, presenciais, virtuais ou híbridas, com suporte em videoconferência ou teleconferência.[25] O essencial não é o meio em si, mas garantir que a forma adotada seja a mais consentânea para a justa e eficiente solução da causa. Conclusões As audiências em processos cíveis diminuíram com a pandemia. Dentre os fatores determinantes, insegurança inicial com a inovação e adoção de outros meios de prova em lugar da testemunhal parecem estar no centro do fenômeno. Com certeza, o tema demanda mais pesquisas para explorar essas e outras hipóteses, como, por exemplo, a possibilidade de que juízes estejam sendo mais criteriosos na designação de audiências de instrução, pela eventual constatação de que a prova oral pode ser inócua ou desnecessária em certos tipos de casos em que antes era adotada. As audiências telepresenciais, que, juntamente com a informatização processual e o trabalho remoto, mantiveram o Judiciário operando plenamente na pandemia, são um legado positivo de um cenário aterrador. Seu uso deve ser ainda mais estudado, para verificação e superação de deficiências que possam estar impedindo um resultado melhor; e estimulado como regra (sempre que o ato presencial não seja fundamental para a justa solução do litígio), pois representa agilidade e diminuição de custos, especialmente para os destinatários da jurisdição. |