Direito Hoje | Edição nº 62
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Aproveitamento das águas minerais

Conflitos gerados pela ausência de limites expressos do modo de aproveitamento e pela falta de integração das águas minerais na gestão de recursos hídricos no Brasil

06 de junho de 2023

Ana Letícia Lanzoni Moura

 Ana Letícia Lanzoni Moura 

Advogada, Pós-Graduada em Direito da Mineração pelo Centro de Estudo em Direito e Negócios – CEDIN e em Direito Ambiental e Direito Processual Civil pela Universidade Fundação Mineira de Educação e Cultura – FUMEC.

E-mail: analeticialanzoni@hotmail.com

imagem de fundo com tema de agua

Resumo

O presente artigo aborda o atual cenário do aproveitamento de águas minerais no Brasil, que tem sido objeto de muitos questionamentos e conflitos, haja vista a falta de definição expressa quanto aos limites desse aproveitamento (restrito ou não às hipóteses previstas no Código de Águas Minerais), assim como a ausência de integração das águas minerais na gestão de recursos hídricos no Brasil. Por meio da análise de casos práticos, buscou-se uma reflexão acerca do modo de aproveitamento das águas minerais, demonstrando a necessidade de haver uma atualização do Código de Águas Minerais e uma reestruturação institucional – que integre as águas minerais na gestão de recursos hídricos no Brasil –, a fim de alcançar uma exploração comercial sustentável das águas minerais.

Palavras-chave: Mineração.  Recursos minerais. Sustentabilidade. Águas subterrâneas. 

Summary

This article addresses the current scenario of the use of mineral waters in Brazil, which has been the subject of many questions and conflicts, given the lack of an express definition regarding the limits of this use (restricted or not to the hypotheses provided for in the Code of Mineral Waters), as well as the lack of integration of mineral waters in the management of water resources in Brazil. Through the analysis of practical cases, a reflection was sought on the way of using mineral waters, demonstrating the need for an update of the Code of Mineral Waters and an institutional restructuring – which integrates mineral waters in the management of water resources in the country Brazil – in order to achieve a sustainable commercial exploitation of mineral waters.

Keywords: Mining. Mineral resources. Sustainability. Groundwater.

Sumário: Introdução. 1 Conceito de águas minerais. 2 A tutela infraconstitucional das águas submetidas ao regime jurídico minerário. 3 O aproveitamento das águas minerais à luz do Código de Águas Minerais. 4 O aproveitamento das águas minerais e a gestão de recursos hídricos. Considerações finais. Referências.

Introdução

É sabido que as águas minerais e potáveis de mesa vêm sendo utilizadas há anos com finalidades distintas daquelas estabelecidas no Código de Águas Minerais, ensejando o seu aproveitamento de forma inconsequente e desarrazoada.

O presente estudo propõe, sumariamente, uma reflexão acerca dos questionamentos e dos conflitos atuais que envolvem o aproveitamento das águas minerais, decorrentes da ausência de definição dos limites do aproveitamento – restrito ou não às hipóteses previstas no Código de Águas Minerais –, assim como pela ausência de integração das águas minerais na gestão de recursos hídricos no Brasil.

O objetivo é que, a partir dessa reflexão, reste demonstrada a necessidade de as instituições gestoras dos recursos hídricos no Brasil estabelecerem, de forma integrada, uma limitação na exploração das águas minerais, considerando o potencial de exploração dos grupos empresariais, a sustentabilidade ecossistêmica, a distribuição justa e eficiente.

Ademais, o presente artigo pretende também fomentar a necessidade de atualização do Código de Águas Minerais e a integração das águas minerais na gestão de recursos hídricos no Brasil, na busca por explorações comerciais sustentáveis.

1 Conceito de águas minerais

As águas minerais podem ser definidas como uma espécie do gênero “recursos minerais”, que constituem direitos (ou bens) difusos, que não se coadunam à definição tradicional de bem público ou bem privado (COSTA, 2013) e, portanto, são bens caracterizados pela funcionalidade do direito de que são objeto, o que afasta a visão puramente patrimonial.

Pela nomenclatura científica, mineral significa “substância homogênea de composição química bem definida que se encontra já formada na natureza” (VIVACQUA, 1942, p. 533). No aspecto econômico, o conceito está voltado para a ideia de agregado de minerais diversos em que um deles possui valor comercial apto a superar os custos e o tratamento.

No âmbito jurídico, os recursos minerais são como as substâncias valiosas encontradas na superfície terrestre ou no interior do solo, cuja formação ou depósito ocorre apenas por processos naturais (VIVACQUA, 1942).

Segundo Poveda (2007), os recursos minerais, no sentido jurídico, são como “concentração natural de materiais sólidos, líquidos ou gasosos, à superfície ou no interior da crosta terrestre, de tal forma que a extração econômica de uma substância útil seja potencialmente viável”.

Ultrapassado o conceito do gênero “recursos minerais”, passa-se ao conceito da espécie “águas minerais”. Sua definição é dada pelo Código de Águas Minerais (BRASIL, 1945), em seu art. 1º, como águas provenientes de fontes naturais ou de fontes artificialmente captadas que possuam composição química ou propriedades físicas ou físico-químicas distintas das águas comuns, com características que lhes confiram uma ação medicamentosa.

As características de composição e propriedades das águas minerais foram estabelecidas pelo Código de Águas Minerais nos capítulos VII e VIII (BRASIL, 1945), que levam à classificação como oligominerais, radíferas, alcalino-bicarbonatadas, alcalino-terrosas, sulfatadas, nitratadas, cloretadas, ferruginosas e radioativas, toriativas, carbogasosas.

O código ainda prevê que as águas podem ser classificadas como minerais mesmo sem atingir os limites da classificação estabelecidos pelo Código de Águas Minerais (BRASIL, 1945), desde que possuam inconteste e comprovada ação medicamentosa. E, caso não atinjam os limites da classificação previstos no código, a ação medicamentosa deverá ser comprovada no local, mediante observações repetidas, estatísticas completas, documentos de ordem clínica e de laboratório, a cargo de médicos crenologistas, sujeitas as observações à fiscalização e à aprovação da Comissão Permanente de Crenologia.

O Código de Águas Minerais (BRASIL, 1945) também conceitua as “águas potáveis de mesa”, que são águas de composição normal, provenientes de fontes naturais ou de fontes artificialmente captadas, que preencham tão somente as condições de potabilidade para a região.

A previsão supracitada permitiu que as águas que fossem potáveis e que não atingissem os parâmetros estabelecidos para serem classificadas como minerais fossem comercializadas para consumo humano.

2 A tutela infraconstitucional das águas submetidas ao regime jurídico minerário

Antes de adentrar na legislação infraconstitucional em vigor, faz-se necessário ressaltar que, segundo a Constituição Federal de 1988, no parágrafo 1º do seu art. 176,[1] os recursos minerais (que incluem as águas minerais) só poderão ser aproveitados mediante autorização ou concessão da União.

Em consonância com o preceito constitucional acima, a legislação infraconstitucional em vigor, o Decreto-Lei nº 7.841/1945 (BRASIL, 1945), submete as águas minerais, termais, gasosas engarrafadas e/ou destinadas para fins balneários e as águas potáveis de mesa ao regime jurídico minerário – de autorizações sucessivas de pesquisa e lavra –, independentemente do domínio (público ou particular) da propriedade onde estão situadas, exceto para o aproveitamento das águas potáveis de mesa,  que é reservado aos proprietários do solo.

A autorização de pesquisa relativa às águas minerais engloba todos os trabalhos necessários ao conhecimento do valor econômico da fonte e de seu valor terapêutico, se existente. O Código de Águas Minerais prevê o conteúdo mínimo dos estudos a serem apresentados na fase de pesquisa, a fim de obter maiores informações da fonte pesquisada.

A autorização de pesquisa é concedida pelo diretor-geral da Agência Nacional de Mineração (ANM) às pessoas físicas, brasileiras, a empresário individual ou a pessoas jurídicas, constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e sua administração no país, mediante requerimento do interessado (BRASIL, 1967).[2]

A autorização de pesquisa poderá ser concedida pelo prazo de um a três anos (BRASIL, 1967),[3] admitida a prorrogação por até igual período, com base na avaliação do desenvolvimento dos trabalhos e desde que requerida até sessenta dias antes de o prazo da autorização vigente expirar, mediante apresentação de um relatório dos trabalhos efetuados e justificativa do prosseguimento da pesquisa (BRASIL, 2018).[4]

Com o fim do prazo da autorização de pesquisa, o autorizado deverá apresentar o relatório final de pesquisa, que a ANM poderá arquivar – quando ficar demonstrada a inexistência de jazida –, aprovar – quando ficar demonstrada a existência de jazida –, não aprovar – quando ficar constatada a insuficiência dos trabalhos de pesquisa ou deficiência técnica na sua elaboração – ou sobrestar – quando ficar caracterizada a impossibilidade temporária da exequibilidade técnico-econômica da lavra.

No que tange à concessão de lavra, para que seja obtida, é necessário que o relatório final de pesquisa tenha sido aprovado pela ANM e que a área da lavra seja apropriada à condução técnico-econômica dos trabalhos de extração e beneficiamento. Sua outorga é concedida pelo Ministro de Minas e Energia (DPNM, 2008),[5] por tempo indeterminado.

Além da necessidade de autorizações sucessivas de pesquisa e lavra, o Código de Águas Minerais prevê outras exigências para a exploração de águas minerais e potáveis de mesa, que restringem o modo do seu uso/aproveitamento, visando à sua tutela.

Segundo o código, o uso/aproveitamento das águas (minerais, termais, gasosas, potáveis de mesa) pode se dar das seguintes formas: balneoterapia (turismo de lazer ou crenoterapia), engarrafamento para consumo humano – ingestão direta – e preparo de sais minerais.

Entretanto, em 23 de setembro de 2008, o diretor-geral do DNPM (atual ANM) publicou a Portaria DNPM nº 388/2008[6]em decorrência da 13ª reunião da Comissão Permanente de Cronologia –, que autoriza as empresas mineradoras detentoras de concessão de lavra para água mineral e potável de mesa a utilizá-las como ingrediente no preparo de bebidas em geral, sem proceder, contudo, à sua desmineralização ou tratamento prévio.

Desse modo, a partir de 2008, o rol das hipóteses de aproveitamento das águas minerais foi ampliado pelo DNPM, ensejando muitos questionamentos (administrativos e judiciais), em especial dos setores de hotelaria (balneários) e indústria de bebidas, o que será melhor abordado a seguir.

3 O aproveitamento das águas minerais à luz do Código de Águas Minerais

Como mencionado acima, o Código de Águas Minerais disciplinou as águas minerais como recursos medicamentosos que, em razão dessas características, deveriam ter sua natureza preservada e protegida de agentes que, de alguma forma, pudessem alterar sua composição original desde as atividades de pesquisa até o processo de sua explotação.

Entretanto, com a publicação da Portaria DNPM nº 388/2008, as hipóteses de aproveitamento das águas minerais foram ampliadas e, consequentemente, segundo alguns autores, as águas minerais e potáveis de mesa deixaram de ser consideradas como um recurso medicamentoso diferenciado.

Nesse sentido, a Comissão Permanente de Crenologia e o DNPM (atual ANM) passaram a autorizar a comercialização da água mineral não apenas como um alimento, hipótese que mantém preservada a composição químico-física original da água na natureza, bem como sua pureza, mas também como um ingrediente de outras bebidas em geral, em que essa composição química, se relevante, o será para fins de formação de terceiro produto que não a água mineral e potável de mesa.

Muitos autores são contrários às disposições da Portaria DNPM nº 388/2008, como é o caso de Esteves (2012), que defende não ser razoável a utilização de uma água considerada nobre, em virtude de sua composição química e/ou propriedades físicas, na composição de bebidas ordinárias como sucos e refrigerantes (terceiro produto). Ademais, afirma que, a partir da publicação da Portaria DNPM nº 388/2008, as águas minerais não são consideradas prioritárias pelo governo da forma como o foi pelo legislador.

Portanto, é nítido que a publicação da Portaria DNPM nº 388/2008 alterou significativamente o aproveitamento das águas minerais e, consequentemente, gerou vários questionamentos, nos âmbitos administrativo e judicial.

No âmbito administrativo, a Procuradoria Especializada da Advocacia-Geral da União proferiu o Parecer nº 505/2009/FM/PROGE/DNPM, que, apesar de não fazer a abordagem mais precisa sobre o tema, concluiu pela necessidade de as águas minerais atenderem às características físico-químicas previstas no Código de Águas Minerais e reconheceu que a autorização ou concessão pelo Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM (atual ANM) está limitada ao aproveitamento e aos usos previstos no Código de Águas Minerais.

Posteriormente, a Procuradoria Federal junto ao DNPM (atual ANM) proferiu o Parecer nº 293/2014/HP/PROGE/DNPM, que aborda o entendimento do órgão acerca do aproveitamento das águas minerais para fins não mencionados no Código de Águas Minerais.

No caso concreto, um complexo turístico hoteleiro possuía uma concessão para lavrar água mineral e solicitou ao DNPM (atual ANM) a alteração do Plano de Aproveitamento Econômico, visando à inclusão de mais dois poços tubulares. Ao realizar a fiscalização no empreendimento, o DNPM (atual ANM) verificou que a pretensão do complexo turístico hoteleiro era abastecer o hotel (com quadras esportivas, piscina, spa e setenta casas) com as águas termais minerais – para uso nos lavatórios e banhos – e com água mineral fria para uso nos serviços e vasos sanitários.

A partir dessa constatação, foi expedida a consulta à Procuradoria Federal junto ao DNPM (atual ANM), que estabeleceu como premissa a necessidade de o recurso mineral ser objeto de pesquisa e lavra, mediante autorização ou concessão da União, nos termos previstos no parágrafo 1º do art. 176 da Constituição Federal, sendo admitido o aproveitamento somente nos moldes do Código de Águas Minerais e do Código de Mineração, veja:

Posto isso, diante dos questionamentos apresentados pela Diretoria de Fiscalização, parece lícito concluir que não se admite alternativa de distribuição de água de fonte objeto de concessão para abastecer residências particulares, dentro ou fora da área de lavra, ainda que para utilização em banhos ou lavatórios, uma vez que o vigente ordenamento jurídico somente permite o aproveitamento econômico segundo as destinações indicadas no 15º parágrafo deste parecer.

Por oportuno, sugere-se recomendar à unidade de fiscalização a imediata adoção das medidas cabíveis para fazer cessar a lavra em desconformidade com a disciplina legal e com o plano de aproveitamento econômico aprovado pela autoridade minerária.

Nesse sentido, o posicionamento da Procuradoria Federal junto ao DNPM (atual ANM) é que o aproveitamento econômico das águas minerais está restrito às hipóteses do Código de Águas Minerais – balneoterapia, engarrafamento para consumo humano e preparo de sais minerais.

No âmbito judicial, vale destacar uma decisão monocrática proferida pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, em 2018, que concluiu que o aproveitamento das águas minerais – para qualquer que seja sua finalidade – depende da autorização ou da concessão da ANM, por força do parágrafo 1º do art. 176 da Constituição Federal e do art. 23 do Código de Águas Minerais (BRASIL, 1942). E ainda mencionou que as águas minerais são um recurso mineral precioso e finito, motivo pelo qual deve ser empregado em finalidades essenciais.

A decisão supracitada foi proferida no âmbito de uma ação popular,[7] que objetiva impedir a lavra de água termo-mineral realizada pelas empresas rés. Segundo ela, as partes rés realizam “a extração de água termo-mineral não apenas para utilização no seu processo produtivo de café solúvel, mas, ainda para limpeza de pátios da fábrica, descarga de sanitários, higienização de caminhões e etc.

Embora o STJ, em análise monocrática, tenha adotado o entendimento de que a ANM é competente para autorizar o aproveitamento das águas minerais para qualquer que seja sua finalidade, a AGU-ANM se manifestou na referida ação de forma contraditória e, em síntese, defendeu que somente o uso comercial para envase e para fins balneários seria passível de autorização ou concessão pela União. Todavia, a conclusão da AGU-ANM no caso foi pontual e, de certa forma, desalinhado com os pareceres anteriormente proferidos – e aqui mencionados – pela própria AGU-DNPM (ANM).

Desse modo, fica claro que os questionamentos acerca do aproveitamento das águas minerais à luz do Código de Águas Minerais envolvem dois aspectos: a competência da ANM para autorizar ou conceder a explotação/aproveitamento das águas minerais e as possíveis limitações do seu modo de aproveitamento.

No que tange à competência da ANM, existem teses que questionam a sua competência para autorizar ou conceder a explotação/aproveitamento das águas minerais quando não utilizadas comercialmente para envase ou para fins balneários, todavia, em consonância com a decisão monocrática do STJ, entende-se que, se água subterrânea possui as características físico-químicas exigidas pelo Código de Águas Minerais, ela é classificada como um recurso mineral, pertencente à União, cujo aproveitamento deve necessariamente ser objeto de autorização ou concessão pela ANM, independentemente da finalidade pretendida.

Já com relação ao modo de aproveitamento das águas minerais, entende-se que, se tratando de um recurso finito, com propriedades físico-químicas próprias, cujo aproveitamento depende necessariamente de autorização ou concessão pela ANM, deve haver uma limitação, restringindo o aproveitamento às hipóteses legais.

Insta salientar que as águas minerais e potáveis de mesa vêm sendo utilizadas há anos com finalidades distintas daquelas estabelecidas pelo legislador em 1945, situação fomentada inclusive pela publicação da Portaria DNPM nº 388/2008 – que autorizou o uso das águas minerais como ingrediente no preparo de bebidas em geral –, ocasionando o aproveitamento das águas minerais de forma inconsequente e desarrazoada.

Nesse sentido, fica evidente a necessidade imediata de a ANM definir expressamente as restrições para o aproveitamento das águas minerais, exercer uma fiscalização mais efetiva e atualizar o acervo legal, a fim de compatibilizá-lo com a realidade.

4 O aproveitamento das águas minerais e a gestão de recursos hídricos

Outra questão que tem gerado muitas discussões e conflitos entre empreendedores é com relação às autorizações para o aproveitamento das águas minerais fora da gestão de recursos hídricos.

Muito tem se discutido sobre a necessidade de integração das águas minerais na gestão de recursos hídricos no Brasil. Segundo alguns autores, a ausência de articulação institucional e o quadro legal ultrapassado e fora da realidade de exploração comercial das águas minerais no Brasil ensejam conflitos e problemas graves nesse segmento, assim como o aumento nos custos de transação, prejudicando as empresas, os consumidores e, principalmente, a sustentabilidade ambiental.

Nos últimos anos, tem surgido muitos conflitos envolvendo controvérsias institucionais sobre o aproveitamento das águas minerais, dentre eles, Esteves (2012) em sua tese menciona: o caso da empresa Companhia Iguaçu de Café Solúvel no Estado do Paraná, o caso da Nestlé na cidade de São Lourenço/MG e o caso da Danone em Jacutinga/MG.

No que tange à Companhia Iguaçu de Café Solúvel, esta obteve autorização do DNPM (atual ANM) para lavrar água mineral, contudo, após um ano da autorização, a empresa não exerceu sua concessão, levando à caducidade de seu direito.

Em atenção ao procedimento legal, a área objeto da autorização foi colocada em disponibilidade, sendo vencedora do certame a empresa Mival Mineração Vale do Rio Tijucas. Contudo, nos autos do processo minerário, a Companhia Iguaçu alegou juridicamente que já realizava o aproveitamento econômico do referido recurso hídrico para a produção de café solúvel, tendo para isso a autorização do órgão competente do Estado do Paraná. Por conseguinte, o mesmo corpo hídrico obtinha duas autorizações: uma como água mineral e outra como água subterrânea.

Outro caso relatado por Esteves é o da Nestlé, responsável pela exploração das águas minerais de São Lourenço, tendo posse inclusive do Parque das Águas da cidade. Ao longo dos anos, foram ajuizadas várias ações de cunho ambiental, decorrente de alguns problemas, como ampliação da estrutura fabril no parque sem o necessário licenciamento ambiental, desmineralização da água extraída e adicionamento de outros sais e gaseificação de forma automatizada e artificial (considerado ilegal pela legislação brasileira) e extração do recurso acima da capacidade de reposição, causando rebaixamento do terreno, secamento e destruição de uma antiga fonte – há informações de que essa exploração chegou ao nível de 1 milhão de litros por dia.

E, por fim, o caso da Danone em Jacutinga/MG, que, após adquirir a empresa Icoara Indústria e Comércio de Águas S/A e o seu respectivo título minerário, passou a explorar águas minerais na Fonte Paineiras e, ao longo dos anos, expandiu e muito o potencial hídrico captado, sendo aprovado pelo DNPM (atual ANM) e pelo órgão ambiental responsável pelo licenciamento ambiental. Contudo, o fato chamou a atenção do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, que investigou as referidas ampliações, chegando à conclusão da real existência de danos ambientais e da irregularidade na exploração de algumas fontes minerais.

Nesse sentido, ao avaliar os casos supracitados, verifica-se uma sucessão de impasses e conflitos decorrentes da ausência de articulação nas institucionalidades que envolvem a exploração da água mineral no Brasil, provocando um descuido desse recurso quanto à vigilância e à fiscalização.

Segundo Portugal Júnior (2016), esses problemas ocorrem, principalmente, pelo fato de não estar devidamente estabelecido onde termina a responsabilidade e a competência de um órgão fiscalizatório e onde começa a ação de outro, consequência de uma má articulação institucional entre as leis e as regulamentações que envolvem esse segmento.

Sendo assim, é notório que o aproveitamento de águas minerais no Brasil necessita de mudanças, com o intuito de evitar as explorações irracionais que colocam em risco o referido recurso, que, além de ser um direito humano – reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU, s.d.) –, é a base para o turismo e a formação econômica e histórica de muitas regiões do Brasil.

Considerações finais

O estudo apresentado deixa evidente que o aproveitamento das águas minerais no Brasil gera muitos questionamentos e conflitos em razão da ausência de definição dos limites do aproveitamento (restrito ou não às hipóteses previstas no Código de Águas Minerais), assim como pela ausência de integração das águas minerais na gestão de recursos hídricos no Brasil.

Para tanto, apresentaram-se os conceitos legais trazidos pelo Código de Águas Minerais e os pareceres exarados pela Procuradoria Especializada da ANM acerca do aproveitamento das águas minerais, demonstrando que a pretensão do legislador – sustentada pela ANM em algumas manifestações – foi estabelecer limites para o aproveitamento das águas minerais, haja vista se tratar um recurso limitado, com as propriedades físico-químicas singulares.

Ademais, é imprescindível esclarecer que o Código de Águas Minerais foi instituído numa época em que as águas minerais figuravam como um tratamento medicinal, diferente de hoje, em que é tratada como um bem comercial e econômico.

Outro aspecto abordado neste estudo foram os conflitos e impasses decorrentes da ausência de comunicação e articulação entre as entidades envolvidas na gestão dos recursos hídricos no Brasil. Os conflitos citados demonstram uma série de controvérsias institucionais sobre as águas subterrâneas – sendo classificada por um órgão como mineral e por outro como recurso hídrico –, assim como os impasses ambientais causados pelo aproveitamento descontrolado ou desmedido da água mineral.

As considerações apresentadas só corroboram o entendimento quanto à necessidade de as instituições envolvidas na gestão dos recursos hídricos no Brasil estabelecerem, de forma integrada, uma limitação na exploração das águas minerais, considerando o potencial de exploração dos grupos empresariais, a sustentabilidade ecossistêmica, a distribuição justa e eficiente.

É perceptível, portanto, que o cenário atual que envolve o aproveitamento das águas minerais é temerário, cercado de arranjos institucionais ultrapassados e desunidos, com um acervo legal arcaico e desconexo com a realidade.

Outra questão que merece ser ressaltada – que também é criticada por alguns autores – é a ausência de abordagem sobre as águas minerais nos debates relativos ao novo Código de Mineração. Isso significa que, mesmo com todos impasses e conflitos que atualmente existem acerca do aproveitamento das águas minerais, ainda é um tema que não tem prioridade no âmbito político e decisório.

Por fim, não se pode deixar de destacar a importância dos recursos hídricos em geral, que, em suas diversas formas e usos, consistem em um direito humano, razão pela qual devem necessariamente ser protegidos e bem gerenciados pelas entidades envolvidas, visando ao uso consciente e, consequentemente, à sua preservação.

Nesse sentido, dada a importância do assunto, recomenda-se a atualização do Código de Águas Minerais e uma reestruturação institucional – que integre as águas minerais na gestão de recursos hídricos no Brasil –, a fim de alcançar uma exploração comercial sustentável das águas minerais.
 



Referências
 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Decreto-Lei nº 227/1967, Código de Mineração. Diário Oficial da União, 28 fev. 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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. Acesso em: 08 abr. 2021.

BRASIL. Decreto-Lei nº 7.841/1945, Código de Águas Minerais. Diário Oficial da União, 20 ago. 1945. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cciviL_03/
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BRASIL. Decreto-Lei nº 9.406/2018. Diário Oficial da União, 13 jun. 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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. Acesso em: 08 abr. 2021.

COSTA, Beatriz Souza. Meio Ambiente e minério de ferro como bem ambiental. In: THOMÉ, R. (org.). Questões controvertidas: direito ambiental, direitos difusos e coletivos e direito do consumidor. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 133-147.

DEPARTAMENTO NACIONAL DE PRODUÇÃO MINERAL. Portaria nº 388, de 19 de setembro de 2008. Diário Oficial da União, 23 set. 2008. Disponível em: https://www.dnpm-pe.gov.br/Legisla/Port_388_08.htm. Acesso em:  08 abr. 2021.

ESTEVES, Cristina Campos. O regime jurídico das águas minerais na constituição de 1988. 2012. 274 f. Tese (Doutorado em Geociências – Área de Geologia e Recursos Naturais). Instituto de Geociências da UNICAMP, Campinas, 2012.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. O direito humano à água e ao saneamento: marcos. [s.d.]. Disponível em: https://www.un.org/waterforlifedecade/
pdf/human_right_to_water_and_
sanitation_milestones_por.pdf
. Acesso em: 07 abr. 2021.

PORTUGAL JÚNIOR, Pedro dos Santos. A controvérsia sobre as águas: uma proposta de integração institucional e de políticas públicas para o segmento de águas minerais no âmbito da gestão de recursos hídricos. 2016. 190 f.  Tese (Doutorado em Desenvolvimento Econômico). Instituto de Economia da UNICAMP, Campinas, 2016.

POVEDA, Eliane Pereira Rodrigues. A eficácia legal da desativação de empreendimentos minerários. São Paulo: Signus, 2007. p. 14.

STJ. Recurso Especial nº 1.490.603 – PR (2014/0273633-4). Relator: Ministro Manoel Erhardt. DJ, 08 nov. 2018. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/
revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=
88947165&tipo_documento=
documento&num_registro=
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&formato=PDF
.  Acesso em: 08 abr. 2021.

VIVACQUA, Attilio. A nova política do subsolo e o regime legal das minas. Rio de Janeiro: Panamericana, 1942. p. 554.

 


Notas

[1] Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.

§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas.

[2] Código de Mineração: art. 15. A autorização de pesquisa será outorgada pelo DNPM a brasileiros, pessoa natural, firma individual ou empresas legalmente habilitadas, mediante requerimento do interessado.

[3] Art. 22. A autorização de pesquisa será conferida nas seguintes condições, além das demais constantes deste Código:

III – o prazo de validade da autorização não será inferior a um ano, nem superior a três anos, a critério do DNPM, consideradas as características especiais da situação da área e da pesquisa mineral objetivada, admitida a sua prorrogação, sob as seguintes condições:  (...)

[4] Decreto Federal nº 9.406/2018: art. 21. O prazo de validade da autorização de pesquisa não será inferior a um ano, nem superior a três anos, a critério da ANM, consideradas as características especiais da situação da área e da pesquisa mineral objetivada, admitida prorrogação única, nas seguintes condições:

I – a prorrogação poderá ser concedida por até igual período, com base na avaliação do desenvolvimento dos trabalhos; e

II – a prorrogação deverá ser requerida até sessenta dias antes de o prazo da autorização vigente expirar, e o requerimento deverá ser instruído com relatório dos trabalhos efetuados e justificativa do prosseguimento da pesquisa.

[5] Art. 7º O aproveitamento das jazidas depende de alvará de autorização de pesquisa, do Diretor-Geral do DNPM, e de concessão de lavra, outorgada pelo Ministro de Estado de Minas e Energia.

[6] Art. 1º As empresas mineradoras detentoras de concessão de lavra para água mineral e potável de mesa poderão utilizá-las como ingrediente no preparo de bebidas em geral, sem proceder, contudo, à sua desmineralização ou tratamento prévio.

[7] Ação Popular nº 2009.70.01.007032-6 (PR) / 0007032-41.2009.4.04.7001.

 


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