Resumo A linguagem jurídica tradicional parece não corresponder às necessidades da sociedade moderna, caracterizada pela ampliação do acesso à justiça e pelo grande avanço dos meios de comunicação. A escrita excessivamente formal, carregada de expressões técnicas e burocráticas, afasta a população do debate jurídico e contraria a expectativa social de compreensão das decisões judiciais, prejudicando o desenvolvimento da cidadania. O emprego de linguagem simples, direta e compreensível torna-se um dever ético para os juízes e os demais operadores do Direito. Palavras-chave: Linguagem jurídica. Comunicação. Dever ético. Cidadania. Abstract The traditional legal language does not seem to correspond to the needs of modern society, characterized by the expansion of access to justice and the great advance in the media. Excessively formal writing, loaded with technical and bureaucratic expressions, distances the population from the legal debate and goes against the social expectation of understanding judicial decisions, affecting the development of citizenship. The use of simple, direct and understandable language becomes an ethical duty for judges and other legal professionals. Keywords: Legal language. Communication. Ethical duty. Citizenship. Sumário: Introdução. 1 Direito, comunicação e linguagem. 2 O vocabulário jurídico. 3 O interesse do leigo, a cidadania e a dignidade. 4 A função educadora da decisão judicial. 5 O papel do advogado na relação com o Judiciário. 6 A linguagem de cada tempo. 7 O compromisso ético com a evolução. 8 O compromisso institucional da magistratura. 9 A especialização do conhecimento. 10 As barreiras de linguagem como fator de subdesenvolvimento. Conclusão. Referência das fontes citadas. Introdução Este artigo é fruto da releitura de uma produção acadêmica idealizada pela Escola Paulista da Magistratura, sob a coordenação do Desembargador José Renato Nalini. O trabalho tem a qualidade dos seus colaboradores: Ives Gandra da Silva Martins, Miguel Reale, Sydney Sanches, José Goldemberg e mais uma dezena de outros brilhantes convidados que contribuíram para a publicação dos livros Curso de deontologia da magistratura e Uma nova ética para o juiz. O enfoque deste texto é a investigação do papel da linguagem nos documentos jurídicos, especialmente nas decisões judiciais. Os atributos da clareza, da simplicidade e da objetividade recebem maior atenção. Os esforços relacionados à pesquisa foram facilitados pela produção do juiz de carreira, desembargador paulista e ministro do Superior Tribunal de Justiça Sidnei Agostinho Beneti, que, conforme o prefácio de Ives Gandra, [1] apresentou “significativo estudo sobre a deontologia da linguagem do magistrado e sua relevância”. Deontologia, de maneira resumida, é a parte da Filosofia que estuda os fundamentos morais e os deveres éticos. Em seu artigo, Beneti [2] revelou o quão sofisticado é o desafio da comunicação jurídica: “a linguagem processual é a mais complexa, é a linguagem da polêmica, porque necessariamente contém a contradição dialética”. Destacou ainda: “na linguagem do contraditório processual, a transmissão da mensagem complica-se extraordinariamente”. As reflexões aqui apresentadas buscam relacionar o tema com aspectos comportamentais observados nas últimas décadas na sociedade brasileira. Duas perspectivas centrais influenciam particularmente a abordagem: a popularização do acesso ao Judiciário após 1988 e o surgimento das mais recentes tecnologias de comunicação, capazes de democratizar os debates jurídicos e sinalizar a evolução natural do idioma. 1 Direito, comunicação e linguagem A atividade judicial possui natureza estritamente comunicativa, a exigir o comprometimento dos operadores do Direito com a eficiência na transmissão da informação. O Professor Beneti [3] destacou que “a decisão judicial legitima-se inclusive pela linguagem utilizada”. Fez pertinente análise da legislação alemã, referindo que “o parágrafo 311, inciso 1, do Código de Processo Civil alemão chega a preocupar-se em reforçar a ideia de legitimação de cada sentença pela expressa verbalização de que a sentença é publicada ‘em nome do povo’”. E concluiu de maneira emblemática: “a sentença deve conter manifestação do juiz como se por seu intermédio falasse o povo, de modo que será bom que o povo compreenda a decisão”. Em linha semelhante, José Renato Nalini [4] abordou o papel do juiz na sociedade e destacou que é seu dever buscar a emancipação política e jurídica daqueles em cujo nome exerce o poder: “Dessa concepção de cidadania extrai-se que o juiz não somente deve empenhar-se em servir à comunidade, a real detentora do único poder juridicamente legitimado, do qual é mero exercente por delegação”. Prosseguiu dizendo que o juiz também é responsável por “assegurar efetiva participação do povo nas práticas de gerir a res publica”. E concluiu com importante afirmação: “constitui dever ético do juiz para com o semelhante habilitá-lo a ter direitos, a possuir a exata noção de que é titular de direitos fundamentais”. Uma breve síntese reúne as duas análises acima: não há como uma pessoa do povo ter a exata noção de que é titular de direitos se não compreender as decisões tomadas pelos juízes de seu país. 2 O vocabulário jurídico A linguagem jurídica brasileira encontra-se invadida por um excessivo número de expressões protocolares que, na maioria das vezes, não exercem uma função textual intrínseca e servem apenas como elemento de estilo. Significa dizer que a mesma informação poderia ser transmitida de outra forma, mais simples, sem prejuízo para a compreensão. Alguns pontuais exemplos podem ilustrar a reflexão. Antes, porém, é necessário registrar que este breve exercício acadêmico não tem a pretensão de marginalizar nenhuma palavra da língua portuguesa. O objetivo é voltado para o campo prático: conscientizar no sentido de que a simplificação da linguagem contribui para a democratização do debate jurídico e fortalece a cidadania. É presumida a disposição do leitor para acompanhar esta análise. O parágrafo seguinte serve apenas para delimitar a crítica. Depois dele, nada semelhante será encontrado neste texto. Os destaques em negrito indicam expressões encontradas com certa frequência em textos jurídicos, aqui consideradas como barreiras comunicativas. Em uma manifestação forense típica, a conhecida petição inicial torna-se peça exordial ou proemial, na qual o autor da ação pugna pela condenação do réu. Tem início o processo, chamado de lide, querela, contenda ou cizânia. O tema debatido aparece em testilha, e, na contestação, ou peça de revide, outrem surge redarguindo os argumentos, aqui e alhures. Outrossim, superada a fase do contraditório, fica autorizada a prolação da sentença, que começará com: isso posto. Se algo está sobrando, então sobeja nos autos. Um fato grave costuma causar espécie. A decisão recorrida é o decisum objurgado. O posicionamento de uma autoridade intelectual torna-se o seu escólio, e o fundamento, seu espeque. A penitenciária vira ergástulo público. O Código Penal transforma-se em Codex repressivo. A Constituição Federal, maior alvo de todos, torna-se Carta Magna, Diploma Fundamental, Lei Maior, Carta da Primavera ou Pergaminho Superior. A compreensão desse peculiar vocabulário não costuma ser um problema para quem tem formação jurídica. Porém, as expressões destacadas são exemplos de barreiras comunicativas para a população em geral. Fica claro que o modelo cultural predominante entre os operadores do Direito é descomprometido com quem não tem intimidade com as práticas forenses. Segundo o Professor Beneti, [5] tal complexidade é desnecessária em um texto jurídico. “O melhor é denominar os institutos pelos nomes que possuem, como denúncia, mesmo, petição inicial, sentença, decreto, ação possessória, e assim por diante, em vez de tentar a invenção de pretensos sinônimos alegóricos.” Não há nenhum problema em cultivar um grande vocabulário ou um estilo sofisticado de escrita, o que pode ter grande valor no campo literário. Mas o diálogo processual não precisa de expressões que escapam ao conhecimento geral. Mesmo os termos técnicos, na maioria das ocasiões, podem ser substituídos por palavras mais simples e usuais, eliminando uma barreira que compromete a ampliação do debate jurídico, pertencente a toda a sociedade. 3 O interesse do leigo, a cidadania e a dignidade Parece razoável dizer que um consumidor que perdeu uma disputa judicial tem interesse no conteúdo da sentença. A ausência de uma explicação direta e compreensível sobre a questão decidida gera a sensação de desamparo institucional e inconformidade, que pode se transformar nos sentimentos de injustiça e revolta. A pessoa que teve negado pelo juiz um pedido de aposentadoria também tem o direito de entender minimamente os fundamentos da decisão. Isso serve não apenas para legitimar o ato perante o cidadão, mas, também, para que essa pessoa consiga planejar o próprio futuro, buscando preencher os requisitos para a obtenção do benefício. Além disso, a compreensão da decisão permite que a pessoa transfira para amigos e familiares o conhecimento obtido sobre as exigências legais para a aposentadoria, em um claro exercício de emancipação coletiva sobre esse importante direito socialoletiva mancitadoria, em um claro exercs familiares, advertindo sobre a necessidade de atenç. Por sua vez, o empresário que submete uma questão contratual ou tributária a julgamento deve receber uma sentença que esteja minimamente ao seu alcance. Também aqui é possível identificar mais de um aspecto relevante: a decisão compreensível serve para legitimar socialmente a atividade judicial e, ao mesmo tempo, para oferecer informações importantes sobre os aspectos jurídicos da atividade empresarial, norteando futuras relações comerciais. No que diz respeito à legitimidade social das decisões, Luiz Antonio Nunes [6] fez interessante reflexão a partir de pesquisas que revelam índices elevados de insatisfação social quanto à atividade jurisdicional. Concluiu o autor que o julgamento negativo da população está relacionado à “dificuldade de entender o que se passa em termos processuais no Judiciário”. Em síntese: as características excessivamente formais da linguagem jurídica retiram do sistema de justiça a possibilidade de contribuir de maneira mais direta e eficiente para o aprimoramento das instituições democráticas. Citando Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o magistrado José Renato Nalini [7] destacou a vocação cidadã do texto constitucional e o seu declarado propósito de inclusão de toda a sociedade na construção dos caminhos a serem percorridos coletivamente: “a nova Constituição brasileira quer apontar a indispensabilidade da participação popular na tomada de decisões políticas”. Referiu ainda que “o povo brasileiro deve ser composto de cidadãos, participantes ativos do exercício do poder democrático, não de súditos de qualquer poder, mesmo democrático”. Se a Constituição traz a cidadania como símbolo e a dignidade da pessoa humana como fundamento, [8] é razoável o estabelecimento de uma relação entre a emancipação do indivíduo e a promoção da dignidade. Desde a obra de J. J. Gomes Canotilho, [9] tem-se entendido que o conceito de dignidade humana está ligado à possibilidade de o indivíduo conduzir a sua vida de maneira autônoma, “segundo o seu próprio projeto espiritual”. Torna-se dever estatal, portanto, proporcionar o ambiente institucional adequado para que o indivíduo exerça suas escolhas pessoais e conduza a própria existência com a liberdade consciente que caracteriza a dignidade. O Judiciário exerce função de destaque na construção do ambiente para o exercício das liberdades existenciais. É adequada, então, a análise de Nalini, [10] segundo a qual “o juiz, agente estatal, tem o dever de construir a dignidade de seu próximo”. Uma das formas de cumprimento desse dever é a utilização de uma linguagem que o indivíduo possa compreender. 4 A função educadora da decisão judicial O Direito é o espaço comunitário que aproxima diversos fenômenos: sociológico, político, jurídico, filosófico e ético. É missão natural de seus operadores a promoção de mudanças comportamentais de acordo com o progresso cultural. O fortalecimento das instituições é condição para o desenvolvimento da democracia, e a desejada solidez institucional pressupõe que as autoridades intelectuais exerçam um papel educador. Citando Alceu Amoroso de Lima, [11] o magistrado paulista José Renato Nalini observou que o juiz “não deve conhecer apenas por conhecer. Sua atividade intelectual opera sempre não no terreno especulativo, mas no terreno prático. Estuda para os outros, e não para si. Enriquece para distribuir. Aprende para ensinar”. Nesse contexto, são precisas as considerações de José Goldemberg [12] sobre a missão institucional do Judiciário, em especial quanto ao dever de participação ativa no processo de emancipação cidadã. Destacou o autor que “o papel ético do juiz nesta tarefa educacional está se tornando ainda mais importante nos dias que correm, devido às mudanças tecnológicas e sociais que ocorrem rapidamente”. Sobre a vocação pedagógica das decisões judiciais, parece importante reconhecer que a cultura jurídica de outros países pode servir como referência para o profissional brasileiro. José Goldemberg fez expressa menção ao “conteúdo educacional das sentenças judiciais”, que refere ter aprendido a valorizar durante os períodos em que trabalhou nos Estados Unidos, onde cabe à Suprema Corte enfrentar questões de grande alcance para a sociedade. O surgimento das mais recentes tecnologias de comunicação tem potencial para, em poucas gerações, resgatar o Brasil do colonialismo cultural ao qual parece ter sido condenado. De um momento para o outro, juízes, promotores e advogados passaram a ter a possibilidade de influenciar decisivamente os caminhos da sociedade por meio de algo antes inimaginável: uma rede comunicativa que alcança a grande maioria da população, individualmente. Então, em uma simples decisão, o juiz pode não apenas resolver o conflito sob julgamento, mas entregar uma poderosa mensagem de educação institucional, carregando também a fala dos advogados e dos demais atores processuais. Porém, para que tais profissionais consigam efetivamente cumprir essa missão cidadã, precisam se fazer compreender. 5 O papel do advogado na relação com o Judiciário O profissional da advocacia desempenha uma função essencial na comunicação com o Judiciário. A representação não é um ato meramente formal, como se a exclusividade reservada aos advogados [13] fosse uma restrição simplista ao direito de livre acesso à justiça. A relação com o cliente tem o seu elemento central na consultoria jurídica. Trata-se da aplicação do conhecimento teórico e da experiência prática de maneira direcionada a um caso concreto. O advogado possui uma capacidade argumentativa sobre assuntos jurídicos que o cliente normalmente não tem. Após conhecer os elementos do caso, o profissional emprega a sua habilidade com o objetivo de influenciar no convencimento do juiz. É esperado, portanto, que a manifestação técnica de um advogado empregue linguagem especializada em comparação ao vocabulário leigo do cliente. Existe uma função, no entanto, que não cabe, ou não deveria caber, ao advogado: a de tradutor. Disso decorrem duas conclusões, a partir dos diferentes ângulos pelos quais o diálogo pode ser observado. A primeira das conclusões é que o advogado não precisa nem deve converter a linguagem original dos fatos da vida em um novo idioma, o criticado “juridiquês”, como se tal transformação fosse uma exigência processual. A segunda é no sentido de que a decisão judicial deve privilegiar a simplicidade textual, para que o advogado não seja obrigado a traduzir – ou decifrar – o julgamento para o seu cliente. Se for indispensável para a adequada fundamentação do pronunciamento, os temas mais técnicos podem ser aprofundados em capítulos específicos da manifestação, o que é plenamente justificável. Convém, no entanto, algum esforço no sentido da simplificação da linguagem, para que o cidadão tenha pelo menos uma chance de entender o assunto. A essência da petição ou do julgamento deve ser clara, direta e facilmente compreensível. 6 A linguagem de cada tempo Enquanto este texto é escrito, a Justiça Federal recebe petições iniciais a partir de mensagens instantâneas de telefone celular, em processos movidos sem a representação de advogados. Nos casos mais extremos, algumas informações complementares chegam ao processo por meio de mensagens de áudio enviadas pelos aplicativos do momento. Os despachos e as sentenças, por sua vez, são encaminhados diretamente para o endereço eletrônico da pessoa interessada, na maioria das vezes alguém que jamais leu uma decisão judicial antes. O exemplo acima retrata uma situação muito excepcional, é verdade. Tais providências foram adotadas para garantir a continuidade dos serviços judiciários após o início da pandemia de 2020. Milhares de pessoas ajuizaram processos em busca de benefícios assistenciais de emergência, tudo sob o procedimento dos juizados especiais, que autoriza o pedido “direto no balcão”. Porém, como o atendimento presencial foi suspenso por longo período, a alternativa encontrada foi disponibilizar um meio popular para o acesso ao Judiciário: mensagens de telefone. Este esclarecimento é importante para que não surjam conclusões apressadas a respeito de nulidades processuais, ou mesmo no sentido da invasão da área privativa da advocacia, tema referido no tópico anterior. Surge aqui um excelente tema para reflexão: é razoável que o Judiciário flexibilize dessa maneira as formalidades processuais, aceitando uma mensagem de telefone como petição inicial? E como contornar as consequências práticas de uma eventual resposta negativa, diante da situação de extremo desamparo narrada em muitas de tais “petições”? Tais questões rendem um bom debate, mas devem ficar para outro texto. Foram trazidas apenas para lembrar que, neste momento, o juiz dialoga diretamente com o cidadão, mesmo que, muitas vezes, continue escrevendo como se o leitor fosse um jurista. Fica evidente que a linguagem forense tradicional não cumpre o papel esperado em uma sociedade dinâmica como a nossa. O diálogo com a população, nas circunstâncias acima descritas, exigiu grande atenção judicial a respeito do vocabulário a ser empregado. Mesmo deixando de lado a situação excepcional do caso narrado, parece estar autorizada a conclusão de que os tempos atuais reclamam a modernização da comunicação jurídica. Não se trata apenas da mudança do processo físico para o eletrônico ou do uso de novas tecnologias. O fenômeno é muito mais amplo, tem relação com uma profunda transformação cultural e diz respeito ao conteúdo das manifestações judiciais. A dinâmica das relações sociais mudou, e o Judiciário não pode seguir utilizando uma linguagem que correspondia a uma sociedade de um século atrás. Um episódio pode ajudar na compreensão de todas essas mudanças. Uma advogada paulista, pretendendo conversar sobre um pedido urgente, agendou visita por telefone e encaminhou-se ao Aeroporto de Congonhas. Na forma de costume, a assessoria repassou a informação ao gabinete: “às 14h haverá atendimento sobre o processo número tal”. Nada extraordinário. O trabalho seguiu ininterrupto até o horário marcado, e o bilhete com o número do processo ficou aguardando sobre a mesa. Pouco antes da decolagem, mas já dentro da aeronave, a advogada juntou ao processo eletrônico a petição que pretendia defender pessoalmente. Uma hora depois, já em Santa Catarina, pegava um táxi até a Justiça Federal de Itajaí. Sem demora, foi recebida e começou a explicar o caso, quando, então, apareceu a surpresa: “doutora, receio que a decisão sobre este pedido já tenha sido publicada”. De fato, a movimentação eletrônica tinha sido mais ágil do que o bilhete e, minutos antes, o caso tinha sido apreciado. Para completar, antes mesmo do fim da conversa, o sistema processual indicava que a parte contrária já havia acusado ciência da decisão. O caso serve apenas para ilustrar que o Judiciário vem sendo convidado a uma atuação condizente com a sua época. E essa noção aplica-se não apenas ao tempo dos trâmites processuais, mas à essência de sua atividade: o teor das manifestações. O diálogo precisa ser dinâmico e objetivo, como exigem os tempos atuais. Não há mais tempo para longos exercícios retóricos. Impressiona saber que a linguagem de uma peça forense dos dias atuais não é muito diferente daquela observada em um documento equivalente de 25 anos atrás – até porque muitos dos juízes e advogados ainda são os mesmos que atuavam “naquela época”. A estrutura e os termos são semelhantes, mudando apenas o suporte: do papel para uma tela. Por outro lado, neste mesmo quarto de século houve uma revolução nos meios de comunicação, com a modernização dos tradicionais veículos de imprensa e o surgimento das populares redes sociais. Então, uma decisão publicada por um órgão judiciário (de primeira instância ou a própria Suprema Corte) estará sujeita ao imediato exame público, dispensada qualquer adaptação textual ou mesmo a sua transcrição, pois a própria imagem da decisão original é replicada em milhões de telas de telefones de maneira instantânea. É a voz do juiz chegando diretamente ao povo sem passar por nenhum filtro dos profissionais do jornalismo, que, historicamente, tentaram fazer a adaptação dos complexos textos jurídicos para a publicação em massa. O Professor Sidnei Beneti [14] manifestou-se sobre o específico tema do convívio entre a linguagem jurídica e a jornalística, esta com a pretensão de ser amplamente compreensível. Evidenciando a necessidade de uma aproximação entre esses dois mundos, sustentou a necessidade de cuidado na redação das decisões judiciais: “Não devem ser usados termos complicados, nem mesmo os da técnica jurídica, salvo, naturalmente, se impostos pela necessidade de precisão da mesma técnica, em momento conveniente”. E concluiu revelando a verdadeira crise: “os profissionais da imprensa às vezes reclamam da linguagem judiciária, que não entendem”. Na sua crítica, ainda relatou episódio emblemático, citando passagem de Moura Bittencourt, ao referir uma sentença que, publicada em jornal, “provoca risadas e, depois, piedade do magistrado que a proferiu”: Parece, pelo estilo, proferida em algum século distante. No entanto, é material forense recentíssimo. Impressiona pelo amontoado de palavras esquisitas, em português também bom, mas rebuscado, desusado no tempo e no espaço. O palavreado difícil (diga-se assim, para empregar-se a expressão costumeira) não é coisa que fique bem na sentença. Vale a orientação de Volnei Ivo Carlin [15] sobre a necessidade de redefinição da função de julgar: deve o juiz “abreviar as formalidades com a simplificação da redação dos julgamentos, quando a matéria assim o permite”. 7 O compromisso ético com a evolução É de Miguel Reale [16] a seguinte afirmação: “O juiz que não está atualizado com a problemática do seu tempo não está em dia com o seu dever ético”. A autoridade intelectual desse filósofo do Direito traz conforto para que se possa avançar na crítica, por vezes contundente, reservada a este capítulo. Os operadores do Direito não podem recusar os deveres próprios das suas posições na estrutura democrática. Se a Constituição Federal conferiu a esses personagens um papel de destaque no desenho institucional, seja como alicerce da República (Judiciário), seja como função essencial para o alcance da justiça social (advocacia), é legítima a expectativa de que tais profissionais demonstrem atenção permanente à marcha evolutiva da sociedade. As funções próprias das carreiras jurídicas são incompatíveis com a acomodação intelectual ou com o conformismo institucional. Todo juiz em exercício prestou um juramento no ato de sua posse, comprometendo-se a concretizar os valores constitucionais e a dedicar o seu brilho intelectual para o progresso da sociedade. Advogados, promotores, defensores e procuradores também assumiram os respectivos compromissos. Parece razoável, então, esperar que esses operadores estimulem em si o papel de agentes do desenvolvimento social, com sensibilidade às mudanças culturais que impulsionam a sociedade em grande velocidade. Ainda na visão de Miguel Reale, [17] “a ética do juiz não pode ser reduzida a um catecismo de deveres abstratos, pressupondo, ao contrário, a vivência do Direito em sua circunstancialidade cultural”. Fica evidente que o juiz não pode transformar o seu ofício em uma ilha distante do continente social. Deve manter estreita conexão entre a atividade decisória e as necessidades concretas da população para a qual presta o seu serviço. Tal proximidade diz respeito, também, ao modo como se comunica com a população. Ao negar a necessidade de evoluir em sintonia com o seu tempo, o juiz frustra o papel que a sociedade lhe confia. E se a linguagem é ferramenta nuclear para o desempenho da função – pois a decisão judicial é um ato essencialmente comunicativo –, impõe-se ao juiz o dever de comunicar-se como alguém que acompanha os movimentos culturais de sua época. Qualquer comportamento diverso revela acomodação e desinteresse, um abandono negligente que exclui do debate jurídico a população, detentora originária do poder. [18] Para Nalini, [19] “o juiz não pode agir mecanicamente. É-lhe defeso artificializar a distribuição da justiça. Não pode considerar a prestação jurisdicional uma atuação burocrática”. A autoridade que um juiz recebe para decidir as questões sobre a vida coletiva é motivo de grande honra e distinção social. O exercício desse poder, portanto, deve se dar em conformidade com os interesses da sociedade. Não há espaço para caprichos e vaidades pessoais, ainda que sempre haja liberdade para a expressão da bagagem cultural do julgador. Sobre os limites a serem respeitados pelo juiz no emprego da linguagem sentencial, parece novamente adequada a conclusão de Nalini [20] : “O censor do magistrado não é a comunidade, ou os órgãos correcionais, senão o seu próprio compromisso com a missão de concretizar o justo”. 8 O compromisso institucional da magistratura Em 2008, o Conselho Nacional de Justiça instituiu o Código de Ética da Magistratura Nacional. [21] O documento apresenta justificativas para a sua criação, e algumas delas merecem referência. O Conselho considerou que o código é um “instrumento essencial para os juízes incrementarem a confiança da sociedade em sua autoridade moral”. De fato, é fundamental que a sociedade confie em seus juízes. Um dos meios para a população reforçar a confiança na autoridade de um juiz é a partir da leitura de suas decisões. Também ficou registrado que o código “traduz compromisso institucional com a excelência na prestação do serviço público de distribuir justiça e, assim, mecanismo para fortalecer a legitimidade do Poder Judiciário”. O tema já foi abordado acima, sob o enfoque da expectativa do cidadão em compreender os fundamentos das decisões. Não há como reconhecer a excelência de algo que não se consegue decifrar. O mesmo vale para a legitimidade, que repercute na eficácia social da decisão, no campo da sociologia jurídica. Especificamente sobre o compromisso assumido pelos juízes no sentido da permanente qualificação da atividade judiciária, Nalini [22] observou: “oferecer o seu talento para tornar o Judiciário mais eficiente é imperativo ético inquestionável para o juiz brasileiro”. A simplificação da linguagem para o efetivo contato com a população é aspecto que pode ser facilmente relacionado com a noção de eficiência referida pelo autor. Ainda nas justificativas, identifica-se que a magistratura deve “cultivar princípios éticos, pois lhe cabe também função educativa e exemplar de cidadania em face dos demais grupos sociais”. Superada a introdução do código, merece referência pelo menos uma passagem de suas disposições. O Capítulo VII destina expresso tratamento ao aspecto da linguagem do magistrado. Trata-se do artigo 22, em seu parágrafo único: “Impõe-se ao magistrado a utilização de linguagem escorreita, polida, respeitosa e compreensível”. É muito emblemática a exigência do uso de linguagem compreensível. Naturalmente, as decisões judiciais devem seguir a língua culta e não precisam ser simplistas no sentido de sacrificar os enfrentamentos necessários. Mas devem ser democráticas: escritas de modo a permitir à população o direito de ler e tentar entender o que os juízes dizem. Em síntese, conforme destacado pelo Professor Beneti, [23] “é importante que o escrito do despacho ou da sentença seja adequado, digno, nobre, elevado, claro, simples, inteligível por técnicos e por leigos, os destinatários, todos, do escrito judiciário”. 9 A especialização do conhecimento A especialização do conhecimento é um fenômeno que não ocorre somente na área jurídica. Veja-se o exemplo da medicina: um século atrás, os médicos eram basicamente clínicos gerais. Em 2018, porém, o Conselho Federal de Medicina publicou um estudo chamado Demografia médica indicando a existência de 54 especialidades. [24] Uma breve ilustração pode ajudar a entender que o Direito tem realidade semelhante: do Direito Civil desprendeu-se o Direito Comercial, que originou o ramo da Propriedade Intelectual, que possui como subdivisão a Propriedade Industrial, sendo uma de suas especialidades o Direito Marcário. Do Direito Administrativo originou-se o Direito Econômico, que possui como especialidade o Direito Concorrencial, dentro da qual existem profissionais que atuam somente com os Atos de Concentração Econômica. As estruturas administrativas refletem isso muito bem: no Executivo, são incontáveis os órgãos existentes para o atendimento das demandas cada vez mais específicas da sociedade, enquanto os tribunais adotam crescente especialização das unidades de julgamento, sendo cada vez mais rara a competência geral nas cidades que possuem mais de um juiz. Luiz Antonio Nunes [25] entendeu que a questão está relacionada ao tamanho das instituições formais, que, “com o aumento da complexidade, tornaram-se monstruosas em dimensões e acabaram, por isso, criando subsistemas internos de especialização”. Essa tendência, ainda em curso, foi sinalizada há décadas pela sociologia jurídica e não é isenta de preocupações: mantidos esses níveis de afunilamento técnico, as áreas especializadas ficarão sob o domínio de um grupo cada vez mais restrito de pessoas. O exemplo da Medicina informa que, dos 452.801 médicos registrados no país em 2018, apenas 305 atuavam na especialidade da Genética Médica, sendo razoável concluir que esses profissionais fazem uso de um vocabulário altamente especializado, desconhecido não apenas da população, mas dos médicos de outras áreas. A grande diferença entre o Direito e as demais áreas do conhecimento, como a Medicina, está no fato de que o fenômeno jurídico se passa no campo das Ciências Sociais. Em termos simples: a democracia não corre maiores riscos pelo fato de a grande massa populacional não entender a linguagem especializada da Engenharia Civil, da Fisioterapia ou da Agronomia. Porém, quando a dificuldade de compreensão recai sobre os debates que regem a vida em sociedade, cria-se um ambiente que conduz à alienação política e institucional. Vale recordar o ensinamento de Volnei Ivo Carlin [26] : “Os que não tiverem a sorte de ter acesso à educação, continuando desinformados, permanecerão presas fáceis de demagogos e aproveitadores”. 10 As barreiras de linguagem como fator de subdesenvolvimento Apesar das preocupações acima expostas, não há como fugir ao fenômeno da especialização do conhecimento, cabendo aceitá-lo como uma realidade própria ao desenvolvimento científico. É uma decorrência da complexidade da vida moderna, algo que se manifesta de modo bastante evidente na área jurídica. Parece adequado, no entanto, ter consciência de que a especialização dos temas jurídicos tem potencial para induzir um distanciamento ainda maior entre o Poder Judiciário e a sociedade, em razão da barreira imposta pela linguagem cada vez mais setorizada. Nesse contexto, vale a advertência de Edgar Morin, seguida de mais uma conclusão do Professor Beneti: se os debates técnicos ficarem reservados aos experts, “o cidadão perde o direito ao conhecimento”. [27] “Daí a preocupação que deve nortear o juiz ao proferir a decisão: comunicar-se bem com o maior número de pessoas”. [28] Em última análise, é possível estabelecer uma relação entre a falta de acessibilidade da linguagem jurídica e o subdesenvolvimento cultural do país, a revelar evidente falha dos profissionais do Direito, que não se comprometem com a democratização dos temas jurídicos. Nesse sentido, parece irrecusável dizer que “o baixo nível de institucionalização dos valores cívicos caracteriza fuga ao compromisso democrático com a ética”. [29] Conclusão A manutenção do modelo cultural atualmente difundido, que tolera a condução dos debates jurídicos com o uso de termos e expressões incompreensíveis aos leigos, parece não considerar as necessidades da vida em sociedade no século XXI. Trata-se de uma cultura que desatende a vocação cidadã da Constituição de 1988, impondo atraso ao desenvolvimento da nação e conduzindo o Judiciário ao exílio social, com o esvaziamento de sua legitimidade perante a população. A modernização da linguagem jurídica é um dever ético dos profissionais do Direito, compromisso que recai de maneira especial sobre os magistrados, porque são os responsáveis pelo pronunciamento das decisões que devem ser cumpridas por todos. Referência das fontes citadas BENETI, Sidnei Agostinho. Deontologia da linguagem do juiz. In: NALINI, José Renato (coord.). Curso de deontologia da magistratura. São Paulo: Saraiva, 1992. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Brasília: Senado Federal, 2019. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. CARLIN, Volnei Ivo. Deontologia jurídica: ética e justiça. Florianópolis: Conceito, 2007. GOLDEMBERG, José. A ética do juiz educador. In: NALINI, José Renato (coord.). Uma nova ética para o juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Traduzido por Eloá Jacobina. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. NALINI, José Renato. O juiz e a ética no processo. In: NALINI, José Renato. Uma nova ética para o juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. NUNES, Luiz Antonio. O Poder Judiciário, a ética e o papel do empresariado. In: NALINI, José Renato (coord.). Uma nova ética para o juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. REALE, Miguel. A ética do juiz na cultura contemporânea. In: NALINI, José Renato (coord.). Uma nova ética para o juiz. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. [9] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 225. [13] Art. 1º, I, da Lei 8.906, de 1994: “Art. 1º São atividades privativas de advocacia: I – a postulação a órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais”. |