Direito Hoje | Transjudicialismo ambiental: diálogo judicial transnacional nas cortes constitucionais do Brasil e dos EUA
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Daniel Raupp

Juiz Federal, Doutorando e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, em regime de dupla titulação com a Widener University – Delaware Law School (EUA).

 
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 Daniel Raupp 

18 de novembro de 2021

Resumo

O artigo examina a existência, os desdobramentos e a prática do “transjudicialismo ambiental” nas cortes constitucionais do Brasil e dos EUA. Para tanto, discorre sobre os fenômenos da transnacionalidade e do direito transnacional no surgimento do diálogo transjudicial; descreve o significado de comunicação transjudicial e sua contribuição para o aprimoramento do processo de tomada de decisão; analisa o transjudicialismo no campo do direito ambiental; e investiga o uso de fontes estrangeiras em decisões do STF e da Suprema Corte dos EUA.

Palavras-chave: Direito ambiental. Transnacionalidade. Transjudicialismo..

Sumário: Introdução. 1 Transnacionalidade e direito transnacional. 2 Diálogo judicial transnacional ou “transjudicialismo”. 3 Transjudicialismo ambiental. 4 Transjudicialismo em prática nas cortes constitucionais do Brasil e dos EUA: uma experiência pragmática. 4.1 Suprema Corte dos EUA. 4.2 Supremo Tribunal Federal. Considerações finais. Referências.

Introdução

O dano ambiental não respeita fronteiras geográficas. Uma proteção ambiental efetiva depende muitas vezes da cooperação de diversos atores, estatais e não estatais. Nesse sentido, uma jurisdição ambiental de qualidade e o implemento concreto de decisões judiciais passam pelo diálogo judicial transnacional, na busca de melhores decisões para problemas comuns da humanidade.

O objetivo deste artigo é demonstrar a importância da comunicação transjudicial na tomada de decisão e no cumprimento de decisões em matéria ambiental, principalmente no âmbito das cortes constitucionais. Em um cenário de globalização jurídica, à luz de demandas transnacionais como a do meio ambiente, “qualquer decisão postula coerência em seus pressupostos e motivação condizente”. [1] A legitimidade da decisão não se sustenta mais apenas pela publicação ou divulgação do resultado, mas se ampara em uma motivação adequada e abrangente, com olhos no contexto fático e nas suas consequências. Nesse aspecto, levar em conta pontos de vista diversos, experimentados em realidades distintas, mostra-se um passo importante em direção ao aperfeiçoamento da tomada de decisão ambiental.

Na primeira parte do artigo, buscam-se no fenômeno da transnacionalidade e nas raízes do direito transnacional os fundamentos para o “diálogo judicial transnacional”, ou “transjudicialismo”, destacando a importância da comunicação e da troca de ideias e experiências entre os tribunais na qualificação da tomada de decisão. Características como a desterritorialização e a consensualidade, nascidas no contexto da globalização, são mencionadas como circunstâncias atuais e relevantes para a solução de problemas comuns da humanidade, como a proteção do meio ambiente, de caráter difuso, transfronteiriço, e relacionado ao valor da solidariedade.

Na segunda parte, examina-se o conteúdo do transjudicialismo, partindo da concepção de Anne-Marie Slaughter sobre “comunicação transjudicial”. [2] Apontam-se as vantagens dessa teoria no âmbito argumentativo, sem omitir as críticas baseadas no seu aparente otimismo excessivo. Infere-se, contudo, que, mesmo na feição mais simples da comunicação transjudicial, realizada em forma de monólogo, há evidente benefício para a deliberação sobre problemas comuns e o proveito de experiências alheias sobre a melhor solução a ser adotada em questões semelhantes, desde que se levem em consideração opiniões de tribunais diversificados, com concepções e vivências múltiplas, renunciando à tendência de olhar apenas para as cortes do mundo desenvolvido.

A terceira parte trata especificamente da aplicação do transjudicialismo na seara do direito ambiental. Destaca-se o papel do Judiciário na promoção e na orientação sobre o equilíbrio entre proteção ambiental e desenvolvimento econômico, a quem cabe tomar decisões muitas vezes complexas por envolverem diversos campos do conhecimento humano e interesses sociais conflitantes. A interdependência global em questões ambientais recomenda, assim, a cooperação e o compartilhamento de experiências e informações entre juízes de diferentes jurisdições na qualificação do processo de tomada de decisão.

A quarta parte explora o transjudicialismo na prática das cortes constitucionais do Brasil e dos EUA, com foco na jurisdição ambiental. Inicia relacionando a autoridade persuasiva buscada no emprego de precedentes estrangeiros com os fundamentos do pensamento pragmático, pois, ao se abrir para uma experiência internacional, a corte local parte de um conhecimento acumulado que antevê a viabilidade de determinada solução jurídica para o caso concreto. A seguir, menciona o debate travado na Suprema Corte dos EUA sobre a possibilidade de utilização do direito internacional e estrangeiro no contexto da interpretação constitucional interna, identificando certa hesitação pela corte quanto ao emprego do diálogo transjudicial. Na sequência, o artigo analisa a relevância do transjudicialismo no STF. Cita pesquisa sobre o uso pelo tribunal de precedentes estrangeiros no decorrer da argumentação, acrescentando lista de julgados sobre matéria relacionada ao meio ambiente. Conclui que, por se tratar de um tema de grande importância para a humanidade, envolvendo interdependência e solidariedade entre os povos, há um uso ainda tímido de fontes estrangeiras pelo STF, com espaço para o incremento do diálogo transjudicial.

1 Transnacionalidade e direito transnacional

Tradicionalmente, jurisdição é uma expressão da soberania do Estado. A jurisdição territorial consiste na função do Estado de “dizer o direito” (jurisdictio) dentro de suas fronteiras. É apenas dentro de seus limites territoriais que o Estado detém o monopólio do uso legítimo da força, sendo-lhe autorizada a aplicação da lei por meio da coerção. Quando um Estado exerce, ou tenta exercer, jurisdição sobre um território estrangeiro, surge o conceito de jurisdição extraterritorial. [3]

Nesse sentido, o alcance territorial da validade de um ordenamento jurídico coincide com o território de um Estado. O princípio da territorialidade, entretanto, não exclui a possibilidade de que o âmbito de aplicação de uma norma se estenda ao território de outros Estados. O princípio da territorialidade exige de cada Estado o dever de respeitar o território de outros Estados e limita a jurisdição a seu próprio território. Assim, a expansão territorial dos limites tradicionais de validade do direito nacional constitui uma mudança profunda do conceito de soberania. [4]

Nesse passo, em um mundo globalizado, o direito não pode mais ser visto através de uma lente puramente nacional. [5] Compreender o direito unicamente como resultado da vontade hierarquizada posta pelo Estado não atende às demandas contemporâneas. [6] A transnacionalização nasce, assim, no contexto da globalização, caracterizada essencialmente por “desterritorialização, expansão capitalista, enfraquecimento da soberania e emergência de ordenamento jurídico gerado à margem do monopólio estatal”. [7] O conceito moderno de direito sem, ou além, do Estado significa direito transnacional (prefixo trans: além de, através, para além de), um termo amplamente invocado, mas raramente definido com precisão. Não é nem o direito do Estado-nação, nem o direito internacional, mas uma terceira categoria que se encontra em algum lugar intermediário. [8] Não desconstitui o direito nacional, não ignora o direito internacional nem nega o direito supranacional, mas “dialoga com cada um deles conforme os fenômenos a serem regulados”. [9] Os sujeitos de direito transnacional não são necessariamente os Estados, mas também indivíduos e entidades privadas.

Philip Caryl Jessup (1897-1986), juiz norte-americano da Corte Internacional de Justiça em Haia, foi o primeiro a definir “direito transnacional”, em sua monografia homônima publicada em 1956, como todo direito que regula ações ou eventos que transcendem fronteiras nacionais, incluindo direito internacional público e privado, além de outras regras que não se encaixam inteiramente nessas categorias. [10] Para Harold Koh, [11] o direito transnacional representa uma espécie híbrida entre direito doméstico e direito internacional, que pode ser “baixado” (downloaded), “carregado” (uploaded), ou transplantado de um sistema nacional para outro. Cresce em importância na medida em que cada vez mais regula e influencia a produção legislativa e as políticas nacionais, produzindo respostas mais satisfatórias aos fenômenos globais contemporâneos, ante sua “capacidade não apenas da justaposição de instituições ou da superação/transposição de espaços territoriais, mas a possibilidade da emergência de novas instituições multidimensionais”. [12]

Nos dias atuais, o conceito de direito transnacional abrange uma variedade de áreas do direito, com fecunda aplicação no direito ambiental, no qual standards globais têm sido não só reconhecidos, mas também integrados e internalizados em sistemas jurídicos nacionais. [13] Reconhece-se, com isso, que uma proteção ambiental efetiva não pode, muitas vezes, “ser viabilizada eficazmente por intermédio das instituições nacionais, comunitárias ou internacionais atualmente existentes”. [14]

De acordo com Marcos Leite Garcia, os direitos relativos ao meio ambiente são demandas transnacionais “por excelência”, pois se justificam “a partir da necessidade de criação de espaços públicos para tratar de questões referentes a fenômenos novos, que serão ineficazes se tratados somente dentro do espaço do tradicional Estado nacional”. [15] A transnacionalização dos direitos fundamentais é, assim, um processo diferente e posterior ao da sua internacionalização. E, como direito fundamental de terceira geração, relacionada ao valor da solidariedade, a proteção do meio ambiente é um direito difuso e transfronteiriço, e, portanto, transnacional. [16] De nada adianta, por exemplo, rigorosa proteção ambiental de um país sobre um rio fronteiriço se a nação vizinha se omite quanto à sua degradação. A questão, assim, perpassa a definição do Estado nacional: é difusa, pois atinge indivíduos indeterminados; transfronteiriça, pois não se detém nos limites geográficos de um país; e solidária, pois os interesses e os efeitos são compartilhados, independentemente de quem ocasionou o dano. O direito transnacional surge, então, como um espaço adequado para superação de problemas difusos e globais, incapazes de serem resolvidos de forma individual.

Outra característica importante do direito transnacional para a tomada de decisão em matéria ambiental é a consensualidade, presente quando oportunizadas informações suficientes e participação de todos os interessados. Ao dispensar a imposição pela força, a construção da decisão ambiental no espaço transnacional depende, em uma sociedade de riscos incertos, globais e futuros, da participação e da cooperação dos interessados. O indivíduo precisa ser informado de sua responsabilidade com a proteção do meio ambiente e das consequências da degradação. A participação é, nesse aspecto, “o ponto de partida para a proteção efetiva de bens jurídicos relevantes”, e, portanto, “o direito global não pode abrir mão da parceria efetiva do humano e da sociedade civil na tutela do ambiente”. [17] Desse modo, o diálogo entre os atores envolvidos, estatais e não estatais, com foco na proteção ambiental como um bem relevante a ser buscado pela humanidade, confere maior legitimidade às decisões e amplia a chance de sucesso quanto ao seu cumprimento, principalmente quando baseadas no consenso.

Em resumo, ao examinar o processo de tomada de decisão em casos difíceis em matéria ambiental, é importante destacar, primeiro, a participação de atores não estatais no processo de tomada de decisão, como ONGs, blocos econômicos, empresas multinacionais e organismos internacionais, vozes que têm impacto no mundo contemporâneo e influenciam a tomada de decisão em diversos níveis. Segundo, ter em mente que a proteção ambiental efetiva vai além dos territórios nacionais, pois o dano ambiental não conhece fronteiras ou linhas no mapa. A jurisdição geográfica, do jeito que estabelecida tradicionalmente, pode não satisfazer a ideia de proteção integral do meio ambiente, havendo a necessidade de transnacionalização dos direitos fundamentais de terceira geração. Uma jurisdição temática, menos “geográfica”, atenderia melhor ao tema ambiental no que diz respeito a impactos transnacionais. Terceiro, levar em conta que temas como publicidade, transparência, governança, desterritorialização e mesmo derrogação de atributos clássicos da administração pública são questões a serem consideradas no novo modelo de tomada de decisão em âmbito global, [18] que deve levar em conta outros campos do conhecimento humano, em uma abordagem transdisciplinar e pragmática. Quarto, que, do ponto de vista normativo, o aumento da interdependência global e seu efeito no campo jurídico exigem um incremento na análise comparativa entre decisões de cortes estrangeiras, não só pelo efeito persuasivo que podem conter, mas também pelo potencial de melhor gerir as relações jurídicas globais. [19]

Sobre esse último ponto, o diálogo entre tribunais de diferentes jurisdições, que se convencionou chamar de “diálogo judicial transnacional” ou “transjudicialismo”, ganha força com a desterritorialização advinda do direito transnacional. Assim, ao cotejar decisões judiciais ambientais no Brasil e em outros países, é relevante destacar a importância da comunicação e da troca de ideias e experiências entre as respectivas cortes.

2 Diálogo judicial transnacional ou “transjudicialismo”

O termo “globalização” sinaliza mais a imagem de corporações do que a de tribunais. A redução de distâncias e a dissolução de fronteiras impulsionadas pela globalização se mostraram mais eficientes na criação de mercados globais do que de uma “justiça global”. A palavra jurisdição ainda soa inerentemente nacional. No entanto, apesar dessa percepção, os juízes também estão se globalizando, com implicações importantes para o direito doméstico, comparado e internacional.

As interações entre juízes e cortes estrangeiras não são fenômeno novo na prática judiciária. No âmbito acadêmico, porém, a expressão “comunicação transjudicial” é relativamente recente e foi cunhada por Anne-Marie Slaughter em seu artigo científico denominado “A tipology of transjudicial communication”. [20] Outras designações surgiram para descrever o fenômeno da troca de ideias e experiências entre juízes de diferentes jurisdições, como “diálogo judicial internacional”, “diálogo judicial global”, “transjudicialismo” e “comparativismo constitucional”. [21] Opta-se aqui pelo termo “transjudicialismo” por ser o que melhor identifica o “movimento intelectual” que defende a ampliação de um fenômeno detectado empiricamente. [22]

A comunicação transjudicial proposta por Slaughter pode ocorrer em nível horizontal, ou seja, entre tribunais de mesma estatura, como, por exemplo, cortes supremas de dois Estados soberanos, que não são obrigadas a seguir ou mesmo levar em conta a jurisprudência uma da outra por qualquer relação formal; ou em nível vertical, quando há subordinação hierárquica, como cortes nacionais e supranacionais.

O Brasil admite apenas a comunicação horizontal, pois, embora reconheça a jurisdição de tribunais internacionais, inclusive propugnando “pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos”, [23] não há subordinação do Poder Judiciário nacional a cortes internacionais, ressalvada a submissão do país “à jurisdição do Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. [24]

Do mesmo modo, as vias tradicionais de cooperação internacional, como o auxílio direto e as cartas rogatórias, [25] ainda que inseridas na categoria de comunicação horizontal, são situações de colaboração institucionalizada entre os países, portanto escapam ao âmbito estritamente argumentativo examinado neste trabalho.

O modo mais comum de comunicação transjudicial se dá na forma de monólogos, “consistentes em empréstimos constitucionais e na utilização da experiência estrangeira ou internacional como ilustrações úteis ao convencimento acerca da correção da decisão”. [26] Nessa situação, não há propriamente um diálogo, pois um tribunal cujos argumentos ou conclusões são utilizados por tribunais estrangeiros não é um participante autoconsciente em uma conversa contínua. [27] O tribunal originário pode realmente ter pouca ou nenhuma consciência de que suas opiniões têm um público estrangeiro. Já a corte receptora se vale de tais argumentos sem preocupação com a reação da corte que os proferiu. Os motivos são “incorporados ao discurso de fundamentação, porém sem esperar por repercussão da própria decisão na jurisprudência da corte originadora do precedente citado”. [28]

Slaughter sugere a metáfora da “fertilização cruzada”, em que o tribunal emissor lança os argumentos aos “ventos transnacionais” sem qualquer conhecimento particular ou preocupação de onde eles germinarão. Cabe à “corte ouvinte” determinar quais partes desse monólogo adotará, o que só acontece se for persuadida a isso ou se concluir que o conteúdo da decisão lhe permitirá persuadir melhor seu próprio público. [29]

Nesse sentido, a menção ao julgamento de um tribunal estrangeiro como autoridade persuasiva pressupõe que o público de uma determinada decisão reconheça o tribunal estrangeiro como suficientemente semelhante ao tribunal nacional. De acordo com Slaughter, a verificação de que tribunais em todo o mundo chegaram a conclusões semelhantes sobre um mesmo problema jurídico constitui uma evidência de que a decisão em questão é uma solução adequada. Ou seja, a persuasão sobre uma decisão em particular pode ser reforçada por uma simples demonstração de que outros trilharam um caminho semelhante. [30]

Assim, entre as vantagens do transjudicialismo estão a deliberação coletiva sobre problemas comuns e o proveito de experiências alheias sobre a melhor solução a ser adotada em questões semelhantes, em nítida aplicação do pensamento pragmático. Nesse campo, questões envolvendo a proteção de direitos fundamentais, como a higidez do meio ambiente, ganham contornos especiais com o aumento da comunicação transjudicial, já que os tribunais poderão conceber uma compreensão pluralista e contextualizada do tema em análise. [31]

Além disso, a referência a decisões de tribunais estrangeiros renomados pode servir como forma de proteção da corte local contra pressões econômicas, políticas e jurídicas, como exemplifica André Lupi [32] :

[...] No subcontinente indiano, as referências cruzadas de precedentes das cortes superiores da Índia, do Paquistão, do Sri Lanka e de Bangladesh deram a todos munições argumentativas para reforçar as débeis normas de proteção ambiental contidas nos respectivos ordenamentos internos. Faltando desenvolvimento legislativo para delimitar o alcance da proteção ambiental, a corte indiana, por exemplo, embrenhou-se em forte ativismo judicial, recorrendo a julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da congênere europeia, bem como a decisões das Filipinas, da Colômbia e da África do Sul, para afirmar o direito ao meio ambiente sadio como direito humano e disso extrair consequências inovadoras para o Direito indiano.

Essa interação ou fertilização cruzada entre decisões judiciais nacionais pode, ao longo do tempo, harmonizar a aplicação da lei nos países envolvidos, de modo que surja uma prática geral e consistente dos Estados. Logo, as decisões judiciais nacionais que representam a prática individual dos Estados podem, coletivamente, influenciar o direito internacional. [33] Com isso, a qualidade da tomada de decisão tende a melhorar em todo o mundo, pois os tribunais que compartilham insights com seus homólogos serão forçados a examinar seus próprios sistemas jurídicos em perspectiva comparada.

Os críticos desse movimento consideram utópica e excessivamente otimista a visão de Slaughter de criação de “uma comunidade transnacional de direito”. [34] Argumentam que os juízes geralmente não têm tempo, expertise e habilidades linguísticas para realizar pesquisas significativas e comparativas de decisões judiciais estrangeiras. Isso aumenta a possibilidade de que os juízes utilizem decisões judiciais estrangeiras de forma aleatória e seletiva, escolhendo apenas aquelas que favoreçam as inclinações do intérprete. Acaba-se optando pelas decisões mais facilmente disponíveis, que tenderão a ser as de países desenvolvidos e em idiomas mais acessíveis. [35] Além disso, corre-se o risco de “eliminar o filtro criado pelos Estados para não sofrer imposições diretas de movimentos políticos operados no plano externo, sobre os quais pode haver efeitos colaterais da política de poder das grandes potências”. [36]

A intenção, no entanto, não é de que o direito estrangeiro substitua formalmente o direito interno, mas que este não seja interpretado de tal forma que faça surgir um conflito normativo com o direito internacional. O transjudicialismo é, na verdade, o propulsor pelo qual os tribunais nacionais se envolvem coletivamente em um processo dinâmico de criar e harmonizar o direito internacional e garantir que as normas internacionais moldem e informem as normas nacionais. [37]

Assim, não se deve fazer da comunicação transjudicial um modo de uniformização, mas “de filtragem, de mediação de tais pressões sobre o ordenamento interno, concedendo liberdade ao intérprete nacional para traduzir a norma ao seu próprio sistema jurídico”. [38]

Ademais, não se devem desprezar experiências estrangeiras bem-sucedidas sobre o enfrentamento e a solução de problemas comuns da humanidade apenas porque não são vinculantes no ordenamento jurídico interno. Considerando que as decisões devem ser convincentes para evocar obediência, [39] a decisão da corte nacional ganha legitimidade ao se voltar para decisões estrangeiras na busca por diferentes perspectivas em temas similares. Para isso, é importante que se levem em consideração opiniões de cortes diversificadas, com concepções e vivências múltiplas, renunciando à tendência de olhar apenas para as cortes do mundo desenvolvido. Somente isso permitirá enriquecer o debate sobre temas comuns, não utilizando referências estrangeiras apenas para confirmar e sofisticar o discurso, em forma de argumento de autoridade.

No que toca especificamente ao direito ambiental, a colaboração entre membros do Judiciário pode ainda auxiliar no compartilhamento de conhecimento sobre avanços nas ciências ambientais, construir consenso sobre as melhores práticas processuais, desenvolver uma base para a cooperação mais ampla no tratamento de casos ambientais que transcendem fronteiras, abordar o papel do Judiciário na promoção do cumprimento e da fiscalização ambiental, além de fornecer um fórum para capacitação e troca de informações relevantes para a tomada de decisão ambiental. [40]

Como reconhece o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a cooperação entre Estados em processos judiciais pode ser facilitada pelo desenvolvimento de canais apropriados de comunicação, respeitando os diferentes ordenamentos dos Estados, para troca oportuna de informações relevantes à identificação de violações ao direito ambiental. [41]

Nesse cenário, é possível dizer que parte do sucesso da governança ambiental global depende de um Judiciário treinado, motivado e atento à sua capacidade de influenciar a percepção pública e o discurso sobre preocupações ambientais, pois “o que os juízes tratam como importante, a sociedade passa a julgar como importante”. [42]

Desse modo, mostra-se necessário promover o diálogo judicial transnacional no âmbito do direito ambiental, ou, de forma abreviada, o “transjudicialismo ambiental”, no intuito, principalmente, de qualificar a tomada de decisão nessa área.

3 Transjudicialismo ambiental

O processo de internacionalização da proteção ambiental é um fenômeno relativamente recente, originado no último século, mas que deve perdurar. Não tem por objetivo a substituição dos sistemas nacionais, mas “se situa como norma subsidiária e suplementar [...], visando à superação de possíveis omissões ou deficiências”. [43]

Alerta-se para a necessidade cada vez mais presente de não tratar o problema ambiental de forma isolada, como uma “coleção de partes dissociadas”, mas a partir de um novo paradigma, “baseado na concepção do mundo como um todo integrado”, interligado e interdependente. [44]

O Judiciário, nessa conjuntura, preenche um papel vital de coerção e de incentivo ao cumprimento das normas ambientais. De fato, o equilíbrio entre proteção ambiental e desenvolvimento depende de uma boa governança; boa governança depende do Estado de Direito; e o Estado de Direito depende do respeito, da aplicação e do efetivo cumprimento das leis. [45] O Judiciário desempenha, portanto, um papel de liderança na promoção e na orientação direcionadas ao desenvolvimento sustentável, baseado, principalmente, no aprimoramento do processo de tomada de decisão.

Por outro lado, a complexidade das questões ambientais, que muitas vezes envolvem diversos campos do conhecimento humano e interesses sociais conflitantes, pode tornar sinuoso o caminho para os juízes, individualmente, alcançarem a melhor decisão.

Além disso, a interdependência em questões ambientais, por vezes de caráter transfronteiriço, exige cooperação, seja por meio de estruturas formais ou de redes informais, para ajudar a resolver e prevenir problemas ambientais globais. Isso exige que os órgãos judiciais coordenem e colaborem entre si, na busca de oportunidades para uma implementação bem-sucedida de medidas de conformidade e de execução. [46]

Conforme afirmado no Relatório GEO-4 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente,

These (environmental) issues transcend borders. Protecting the global environment is largely beyond the capacity of individual countries. Only concerted and coordinated international action will be sufficient. The world needs a more coherent system of international environmental governance. [47]

Além de uma ação internacional concertada e coordenada, a obrigação de informar “é pedra de toque do sistema contemporâneo das normas (internacionais e internas) de cunho ambiental”, uma vez que a preservação ambiental “somente se efetiva quando se tem (na prática) participação pública nas decisões ambientais com amplo acesso à informação ambiental, bem assim das organizações não governamentais”. [48]

De fato, no processo de tomada de decisão ambiental, a ampla informação e a ampla participação auxiliam na produção de conhecimento relevante para o julgamento. O compartilhamento de experiências e informações resulta em ações coordenadas entre os atores participantes, do que deriva um sistema decisório cooperativo e integrado, desenvolvido em processos públicos, plurais e participativos. Assim, as interações entre juízes e tribunais nacionais, regionais e internacionais produzem um complexo processo de “globalização da jurisdição” [49] e de convencimento recíproco.

É nesse campo a contribuição do transjudicialismo ambiental, que, ao criar uma cultura global de informação e de cooperação, facilitada pelo desenvolvimento tecnológico quanto à pesquisa e à troca de conhecimento, “favorece a formação e a organização de instituições capazes de melhor solucionar os conflitos ambientais, contribuindo para o fortalecimento de uma imagem de Estado ambiental nos planos nacional e internacional”. [50]

Assim, valendo-se da disponibilidade de pesquisa jurisprudencial proporcionada pela tecnologia, o próximo item examinará o transjudicialismo na prática das cortes constitucionais do Brasil e dos Estados Unidos.

4 Transjudicialismo em prática nas cortes constitucionais do Brasil e dos EUA: uma experiência pragmática

A Constituição da África do Sul prescreve que a Suprema Corte do país utilize o direito internacional para interpretar sua própria declaração de direitos fundamentais (Bill of Rights), e preconiza que o direito doméstico estrangeiro seja consultado em circunstâncias similares. [51] As Constituições do Brasil e dos Estados Unidos não possuem previsão semelhante. No entanto, tanto o Supremo Tribunal Federal no Brasil como a Suprema Corte dos EUA se valem, em alguns momentos, do direito internacional e estrangeiro como autoridade persuasiva para interpretar disposições de suas próprias Constituições.

Nesse aspecto, visto que a decisão de uma suprema corte não vincula o julgamento de outra, a disposição de citar precedentes estrangeiros sugere que os tribunais reconhecem a relevância e a natureza persuasiva da jurisprudência um do outro. As cortes constitucionais miram instituições semelhantes ao responder a um caso difícil ou inédito, para o qual há pouco precedente interno.

Estudo interessante realizado por Jonathan S. Hack sobre “citações transjudiciais” entre supremas cortes estaduais nos EUA [52] concluiu que as referências ocorrem com mais frequência quando há proximidade geográfica e semelhança ideológica entre os tribunais. Segundo a pesquisa, os juízes dessas cortes tendem a recorrer a precedentes “externos” de tribunais geograficamente mais distantes quando a corte citada possui inclinação ideológica similar. Diante dessa constatação, o autor inferiu que, embora se possa argumentar que olhar para tribunais de mesma estatura é, em sua essência, uma espécie de aprendizado, os resultados sugerem que os juízes olham para os pares como um meio de justificar suas decisões.

Partindo dessa premissa, pode-se dizer que o emprego de precedentes internacionais em decisões internas com o objetivo de fortalecer as conclusões alcançadas pela corte receptora é, conceitualmente, pragmático, já que o pragmatismo avalia o sucesso de uma filosofia não em termos de sua correspondência com verdades eternas, mas com base em sua utilidade como uma ferramenta prática para produzir experiências melhores e mais satisfatórias. [53]

Assim, o pensamento pragmático que fundamenta o uso de materiais internacionais como autoridade persuasiva apenas reflete uma filosofia que se baseia em ações, experimentações e soluções viáveis em vez de construções teóricas, [54] ou seja, enfatiza a ação, a experimentação e a preocupação com o que “funciona” na experiência humana.

Do mesmo modo, a expansão das fontes de autoridade persuasiva para incluir o direito transnacional serve para encorajar uma jurisprudência que avança com base na experiência passada, sem abrir mão do impulso progressivo de experimentação cautelosa. Como afirmou o ex-juiz da Suprema Corte dos EUA Oliver Wendell Holmes Jr. (1841-1935), “a vida do direito não tem sido lógica, tem sido experiência”. [55] A experiência é baseada no tempo e é individual e coletiva, conquanto a primeira se mostre mais limitada do que a segunda. A experiência de qualquer momento tem seu horizonte, na medida em que a experiência de cada homem pode ser acrescida pela experiência de outros homens, que estão vivendo em sua época ou já viveram antes. Assim, um mundo comum de experiência, maior do que o de sua própria observação, pode ser vivido por cada homem. [56]

No entanto, por mais amplo que seja, esse mundo comum também tem seu horizonte, e nesse horizonte uma nova experiência está sempre aparecendo. Ao se abrir para uma experiência internacional que já resolveu questões que estão sendo confrontadas pela primeira vez, a corte nacional parte de um conhecimento acumulado que antevê a viabilidade de determinada solução jurídica, o que, por sua vez, conforta o julgador quanto a possíveis consequências de sua decisão. [57]

Além disso, as decisões resultantes da análise comparativa de precedentes de outros tribunais nacionais, ao enriquecer o rol de opções disponíveis para a promoção de direitos fundamentais, têm potencial de adquirir certa legitimidade doméstica que as decisões dos tribunais internacionais, distantes da população em geral, não têm. [58] Também aqui há uma certa dose de pragmatismo, pois, quanto maior a legitimidade interna, maior a chance de observância (compliance) das decisões e de aceitação perante a comunidade internacional.

4.1 Suprema Corte dos EUA

A questão de como e quando o direito estrangeiro e o direito internacional devem ser utilizados como autoridade persuasiva no contexto da interpretação constitucional tem ganhado relevância nos EUA. Nos últimos anos, diversos membros (justices) da Suprema Corte demonstraram interesse crescente em considerar fontes jurídicas estrangeiras na análise constitucional. Segundo Melissa Waters, [59] isso ocorreu, principalmente, como resposta dos juízes a um emergente “diálogo judicial transnacional”, refletindo o desejo de se tornarem participantes ativos em uma espécie de conversa judicial com seus colegas estrangeiros.

Em Lawrence v. Texas, [60] a Suprema Corte dos Estados Unidos considerou a jurisprudência estrangeira ao invalidar uma lei que proibia a sodomia. O Juiz Anthony Kennedy, hoje aposentado, citou casos semelhantes em que a Corte Europeia dos Direitos Humanos invalidou leis que proibiam a conduta homossexual consensual. Ele observou que a jurisprudência estrangeira era prova de que o direito de se envolver em conduta homossexual consensual foi aceito como parte integrante da liberdade humana em muitos outros países. Entretanto, a utilização de precedentes estrangeiros para a análise constitucional interna recebeu forte crítica do Juiz Antonin Scalia (1936-2016), para quem as garantias constitucionais no país não surgem porque nações estrangeiras descriminalizam a conduta, advertindo contra a imposição de humores, hábitos ou modismos estrangeiros aos norte-americanos.

Em Roper v. Simmons, [61] os Juízes Kennedy e Scalia travaram novo debate sobre qual seria a relação adequada entre as cortes americanas e o direito estrangeiro e internacional. Ao declarar inconstitucionais leis estaduais que autorizavam a condenação à pena de morte de pessoas com menos de dezoito anos, Kennedy citou tratados internacionais e práticas estrangeiras como prova do peso “esmagador” da opinião internacional contra a pena de morte juvenil. Ele argumentou que decisões estrangeiras, embora não controlem, fornecem respeitados e relevantes fundamentos para as conclusões da corte norte-americana. E observou:

It does not lessen our fidelity to the Constitution or our pride in its origins to acknowledge that the express affirmation of certain fundamental rights by other nations and peoples simply underscores the centrality of those same rights within our own heritage of freedom. [62]

Scalia, em voto vencido, objetou afirmando que o assentimento por outras nações e povos não deve sustentar o compromisso da corte norte-americana com os princípios nacionais mais do que a desaprovação por outras nações e povos deva enfraquecer esse compromisso. Mencionando outros contextos em que a jurisprudência da corte difere da abordagem de tribunais estrangeiros, Scalia ponderou que recorrer ao direito estrangeiro quando ele está de acordo com o próprio pensamento e ignorá-lo quando não está não é uma tomada de decisão fundamentada, mas sofisma. E concluiu: “What these foreign sources affirm [...] is the Justices’ own notion of how the world ought to be, and their diktat that it shall be so henceforth in America”. [63]

Posteriormente, no caso Graham v. Florida, [64] a Corte decidiu que violava a proibição da Oitava Emenda contra punições cruéis e incomuns [65] a condenação de um menor de idade à prisão perpétua sem a possibilidade de liberdade condicional por um crime que não fosse contra a vida. A decisão citou tratado internacional que proibia a imposição de prisão perpétua sem possibilidade de soltura por crimes cometidos por pessoas menores de dezoito anos. Embora a decisão da maioria tenha observado que não havia acordo internacional que vinculasse os Estados Unidos nesse tema, entendeu que a questão não estava na natureza vinculativa ou não do direito internacional, mas sim em se a punição examinada pela Corte era compatível com sua interpretação atual da Oitava Emenda. É nesse campo, aliás, segundo informação de Rex Glensy, que ocorre o uso mais frequente do direito estrangeiro como autoridade persuasiva pela Suprema Corte dos EUA, tendo em vista a opinião internacional a respeito da aceitabilidade de determinada punição. [66]

Fica claro, portanto, que o crescente interesse da Suprema Corte dos EUA pelo transjudicialismo não é isento de críticas, baseadas em uma suposta afronta à democracia e à soberania do país, assim como na falta de coerência, método e contexto na referência a julgados estrangeiros. [67] Na opinião de Scalia, o estudo comparativo seria útil como fonte de exemplo e experiência para, democraticamente, mudar as leis e a Constituição do país, mas não como forma de reinterpretar a Constituição. [68]

Tal abordagem, entretanto, não leva em conta que a comunicação transjudicial é via de mão dupla. Não se trata de apenas absorver e aplicar visões estrangeiras sobre questões de direito constitucional, em um papel estritamente passivo da corte. A participação no diálogo judicial transnacional não precisa ser um processo unidirecional no qual os tribunais simplesmente aplicam precedentes estrangeiros. O transjudicialismo possui natureza “coconstitutiva”, [69] em que não só o direito estrangeiro e o internacional podem influenciar e moldar o direito interno, mas, ao mesmo tempo, por meio da participação no diálogo, as cortes nacionais podem garantir que seus precedentes informem e moldem o desenvolvimento do direito estrangeiro e internacional. Assim, em uma perspectiva coconstitutiva, a consideração de fontes jurídicas estrangeiras não significa deferência automática a decisões de outros tribunais. As cortes nacionais criam, nesse ambiente, uma nova identidade como mediadoras entre as normas internacionais e as domésticas.

No que toca especificamente a decisões relacionadas ao meio ambiente, uma vez que a Constituição Federal norte-americana nada dispõe a esse respeito, quando tal discussão alcança a Suprema Corte, em geral, a questão resvala para a afetação da propriedade privada (“takings doctrine”), esta sim protegida constitucionalmente. [70] Ou seja, a proteção ambiental não deve interferir na propriedade privada, e, se o fizer, deve ser antecedida de justa compensação. [71] Não se verifica, porém, diálogo transjudicial, ao menos no âmbito da Suprema Corte dos EUA.

Nada obstante, Melissa Waters [72] adverte que a hesitação da Suprema Corte dos Estados Unidos em participar do diálogo transjudicial, particularmente em questões de direitos humanos, está contribuindo para um crescente isolamento e diminuição da sua influência, pois a tendência de olhar somente para dentro pode tornar os julgamentos das cortes norte-americanas cada vez menos relevantes internacionalmente. Julga ser “lamentável e desnecessário” esse declínio na influência da Suprema Corte dos EUA.

Semelhantemente, a juíza aposentada da Suprema Corte Sandra Day O’Connor já havia exortado os juízes norte-americanos a ampliarem seus horizontes intelectuais, enxergando além das fronteiras americanas em busca por fundamentação jurídica persuasiva. Ela destacou que, embora os juízes dos EUA tenham se tornado “mais introvertidos”, outros sistemas jurídicos continuam a inovar, experimentar e encontrar novas soluções para os novos problemas jurídicos que surgem a cada dia, com os quais podem aprender e dos quais podem se beneficiar. [73]

Por outro lado, ao adotar uma abordagem coconstitutiva para o diálogo transjudicial, a Suprema Corte dos EUA poderia recuperar sua posição como uma corte constitucional influente no mundo, principalmente no que diz respeito à proteção dos direitos e das garantias fundamentais. [74]

4.2 Supremo Tribunal Federal

I am certain that this publication is a relevant contribution to the constructive dialogue regarding the experience of constitutional jurisdiction in many nations”. [75] É assim que o presidente do STF, Ministro Luiz Fux, apresenta a segunda edição da coletânea de precedentes do Tribunal sobre a pandemia de COVID-19, [76] mostrando a importância que confere ao diálogo transjudicial entre cortes constitucionais.

Também o CNJ, sob a presidência do mesmo ministro, instituiu o programa internacional Visão Global do Poder Judiciário, destinado a magistrados estrangeiros que tenham interesse em conhecer a realidade do Judiciário nacional. Na linha da comunicação transjudicial, estão entre os objetivos do programa “propiciar o conhecimento mútuo das atividades dos tribunais, com enfoque no compartilhamento de boas práticas e soluções inovadoras nas áreas administrativas e judiciárias”; “estimular o conhecimento da realidade jurídica de outros países”; “apoiar o desenvolvimento de linhas de cooperação no campo da gestão e da atividade judiciária”; “estabelecer e fortalecer laços de amizade e parcerias com organismos e instituições do sistema de justiça mundial”; “dar visibilidade às práticas de sucesso que contribuem para a eficiência do Poder Judiciário brasileiro”; e “proporcionar a troca de experiências e informações entre os órgãos do sistema de justiça brasileiro e internacionais, promovendo o aperfeiçoamento, a modernização e a eficiência do Judiciário”. [77]

A relevância do transjudicialismo no STF foi objeto de interessante pesquisa realizada por Luiz Magno Pinto Bastos Junior e Alini Bunn, [78] que buscou definir os padrões discursivos do Tribunal sobre o uso de precedentes estrangeiros no decorrer da argumentação judicial. A pesquisa teve por base os dados disponíveis no sítio institucional do STF, analisando 123 acórdãos proferidos entre 1998 e 2008 que continham as seguintes expressões de busca: “decisão estrangeira citada”, “legislação estrangeira citada” e “direito comparado”. Os autores verificaram um incremento ao longo do tempo na utilização de argumentos de direito comparado pela corte, e que a imensa maioria dos ministros recorre a essa estratégia discursiva, em maior ou menor grau. As jurisprudências norte-americana e alemã foram as mais citadas, seguidas da portuguesa, da espanhola e da italiana, o que indicaria “a predileção da doutrina brasileira em ‘dialogar’ com os países centrais”. Concluíram também que, “na grande maioria das citações, houve um mero reforço à argumentação (mera referência)”, como argumento de autoridade lançado “no âmbito dos textos das decisões sem um contexto, buscando-se dar um ‘ar mais nobre’ à decisão”. Com isso, sugeriram que o precedente estrangeiro era normalmente utilizado para dar sustentação a uma decisão já tomada pelo julgador no âmbito do contexto normativo, sendo raramente citado no contexto fático. Por fim, deduziram os autores:

O que se pode afirmar é que o STF, assim como grande parte dos países de civil law, recorre ao direito estrangeiro com certa licenciosidade, ou seja, ele cumpre uma função acessória na argumentação judicial empreendida pelos magistrados da Corte. Contudo, pode-se perceber uma tendência de maior abertura por parte do STF às considerações relativas ao direito estrangeiro, fato esse que pode ser verificado, tendo em vista que as decisões que mais citaram o elemento estrangeiro foram a partir de 2005. Dessa forma, pode-se dizer que, aos poucos, o elemento estrangeiro vem ganhando maior importância no âmbito nacional, o que aumenta as fontes de direito, fornece outras formas de resolução de conflitos, bem como importa a internacionalização da prática judicial e do constitucionalismo. [79]

Sem pretensão de alcançar a profundidade do estudo acima, mas utilizando os mesmos parâmetros de pesquisa (expressões de busca “decisão estrangeira citada”, “legislação estrangeira citada” e “direito comparado” em acórdãos publicados no sítio do STF nos últimos dez anos), com acréscimo da expressão “direito ambiental”, foi possível chegar a um total de 20 acórdãos, nos quais o Tribunal se valeu de legislação e/ou decisões estrangeiras para tomada de decisão sobre tema relacionado ao meio ambiente.

A lista a seguir apresenta o rol de acórdãos em ordem decrescente da data de publicação, indicando o tema principal [80] discutido pela corte e a legislação e/ou decisão estrangeira citada:

RE 654.833, repercussão geral; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Alexandre de Moraes; julgamento: 20.04.2020; publicação: 24.06.2020.

– Tema: imprescritibilidade da reparação de dano ambiental.

– Legislação estrangeira citada: Princípio 1 da Declaração de Estocolmo das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, de 1972; art. 24 da Constituição sul-africana; art. 66, nº 2, letra d, da Constituição portuguesa; art. 74 da Constituição polaca de 1997; art. 20º-A da Constituição alemã; art. 127º da Constituição venezuelana; art. 61º, nº 1, da Constituição timorense; Carta Francesa do Meio Ambiente de 2008; art. 39º, nº 2, da Constituição angolana.

– Decisão estrangeira citada: caso do Povo Indígena Kichwa de Sarayaku, da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

ADI 5.475; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Cármen Lúcia; julgamento: 20.04.2020; publicação: 03.06.2020.

– Tema: dispensa de licenças prévias, de instalação e de operação; ofensa à competência da União para editar normas gerais sobre proteção do meio ambiente.

– Legislação estrangeira citada: Constituição norte-americana de 1787.

ADI 5.592; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Cármen Lúcia; redator(a) do acórdão: Min. Edson Fachin; julgamento: 11.09.2019; publicação: 10.03.2020.

– Tema: medidas de contenção das doenças causadas pelo Aedes aegypti; controle vetorial por meio de dispersão por aeronaves mediante aprovação das autoridades sanitárias e comprovação científica da eficácia da medida; possibilidade de insuficiência da proteção à saúde e ao meio ambiente.

– Legislação estrangeira citada: art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10.12.1948; item 5 do art. 191 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia; Convenção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste.

ADC 42; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Luiz Fux; julgamento: 28.02.2018; publicação: 13.08.2019.

– Tema: constitucionalidade do novo Código Florestal.

– Legislação estrangeira citada: Declaração das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, editada por ocasião da Conferência de Estocolmo, em 1972; art. 10, art. 71, art. 72, art. 73 e art. 74 da Constituição da República do Equador; art. 18 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO; art. 30 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948; art. 130-R do Tratado da União Europeia.

– Decisões estrangeiras citadas: Caso FCC v. Beach Communications, Inc. 508 U.S. 307 (1993), Caso Baltimore Gas & Electric Co. v. Natural Resources Defense Council, Inc. (462 U.S. 87, 1983), Caso Chevron USA, Inc. v. Natural Resources Defense Council, Inc. (467 U.S. 837, 1984), Caso Robertson v. Methow Valley Citizens Council (490 U.S. 332, 1989), da Suprema Corte americana. Caso Cavas Fernandes v. Honduras, Caso Kawas Fernándes v. Honduras, sentença de 3 de abril de 2009, da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

ADI 3.829; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Alexandre de Moraes; julgamento: 11.04.2019; publicação: 17.05.2019.

– Tema: pesca; federalismo e respeito às regras de distribuição de competência em direito ambiental.

– Legislação estrangeira citada: Constituição norte-americana de 1787.

ADI 3.470; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Rosa Weber; julgamento: 29.11.2017; publicação: 01.02.2019.

– Tema: substituição progressiva da produção e da comercialização de produtos contendo asbesto/amianto.

– Decisões estrangeiras citadas: Caso Jacobellis v. Ohio, da Suprema Corte americana; BVerfGE 50, 290, da Corte Constitucional alemã (Bundesverfassungsgericht); Caso Corrosion Proof Fittings v. Environmental Protection Agency (942 F2d 1202), do Tribunal Federal de Apelação do 5º Circuito dos Estados Unidos da América.

– Legislação estrangeira citada: art. 254 da Constituição da República da Índia; Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América; Constituição alemã de 1919; Constituição austríaca de 1920.

ADI 4.269; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Edson Fachin; julgamento: 18.10.2017; publicação: 01.02.2019.

– Tema: regularização fundiária das terras de domínio da União na Amazônia Legal.

– Decisões estrangeiras citadas: Caso Skinner v. State of Oklahoma, ex. Rel. Williamson, 316 U.S. 535 (1942); Caso Buck v. Bell, 274 U.S. 200 (1927); Caso Bown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954); Caso One, Inc. v. Olesen, 301 U.S. 340 (1958); Caso Sherbert v. Verner, 374 U.S. 398 (1963); Caso Griswold v. Connecticut, 381 U.S. 479 (1965); Caso Loving v. Virginia, 897 U.S. 113 (1967), da Suprema Corte dos Estados Unidos.

ADI 3.937; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Marco Aurélio; redator(a) do acórdão: Min. Dias Toffoli; julgamento: 24.08.2017; publicação: 01.02.2019.

– Tema: proibição do uso de produtos, materiais ou artefatos que contenham quaisquer tipos de amianto ou asbesto.

– Decisões estrangeiras citadas: Caso Corrosion Proof Fittings v. Environmental Protection Agency (942 F2d 1202), do Tribunal Federal de Apelação do 5º Circuito dos Estados Unidos da América. Caso Associated Provincial Picture House Ltd. v. Wednesbury Corporation, [1948], 1 KB 223; Caso Jacobellis v. Ohio, da Suprema Corte americana.

– Legislação estrangeira citada: Ato Único, de 14 de fevereiro de 1986, Tratado de Lisboa; Decreto nº 1.133, de 24 de dezembro de 1996, da França; Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América; Constituição norte-americana de 1787; art. 254 da Constituição da República da Índia, de 1949.

ADI 5.077; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Alexandre de Moraes; julgamento: 25.10.2018; publicação: 23.11.2018.

– Tema: federalismo e respeito às regras de distribuição de competência legislativa.

– Legislação estrangeira citada: Constituição dos Estados Unidos da América.

ADI 5.016; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Alexandre de Moraes; julgamento: 11.10.2018; publicação: 29.10.2018.

– Tema: federalismo e respeito às regras de distribuição de competência; outorga de direito de uso de recursos hídricos.

– Legislação estrangeira citada: Constituição norte-americana de 1787.

ADI 4.988; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Alexandre de Moraes; julgamento: 19.09.2018; publicação: 05.10.2018.

– Tema: federalismo e respeito às regras de distribuição de competência legislativa; impossibilidade de norma estadual autorizar edificação por particulares em áreas de preservação permanente (APP), com finalidade exclusivamente recreativa.

– Legislação estrangeira citada: art. 130-R do Tratado da União Europeia, de 1992; Constituição norte-americana de 1787.

ADI 4.066; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Rosa Weber; julgamento: 24.08.2017; publicação: 07.03.2018.

– Tema: extração, industrialização, utilização, comercialização e transporte do asbesto/amianto e dos produtos que o contenham.

– Legislação estrangeira citada: art. 263, § 2º, do Tratado de Funcionamento da União Europeia – TFUE; Diretiva 1999/77/CE da União Europeia; Convenção de Bamako, Mali, de 1991.

– Decisões estrangeiras citadas: BVerfGE 50, 290, da Corte Constitucional alemã (Bundesverfassungsgericht); Caso Microsoft Corp. v. Commission of the European Communities (Case T-201/04), do Tribunal de Justiça Europeu; Writ Petition (Civil) nº 260, de 2004, da Suprema Corte da Índia; Caso Corrosion Proof Fittings v. Environmental Protection Agency (942 F2d 1202), do Tribunal Federal de Apelação do 5º Circuito dos Estados Unidos da América; Acórdão nº 39/84 do Tribunal Constitucional português.

RE 194.704; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Carlos Velloso; redator(a) do acórdão: Min. Edson Fachin; julgamento: 29.06.2017; publicação: 17.11.2017.

– Tema: imposição de multa decorrente da emissão de fumaça acima dos padrões aceitos; repartição de competências federativas.

– Legislação estrangeira citada: Ato Único, de 14 de fevereiro de 1986, Tratado de Lisboa e Protocolo de Amsterdam.

ADI 4.983; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Marco Aurélio; julgamento: 06.10.2016; publicação: 27.04.2017.

– Tema: vaquejada; manifestação cultural; crueldade manifesta com animais; preservação da fauna e da flora.

– Decisões estrangeiras citadas: Animal Welfare Board of India v. A. Nagaraja & Ors. (Civil Appeal nº 5387 of 2014), da Suprema Corte da Índia; Sentencia T-296/13, da Corte Constitucional da Colômbia; Décision nº 2012-271 QPC du 21 septembre 2012, do Conselho Constitucional francês; VfGH 17.12.1998, B 3028/97, da Corte Constitucional austríaca; BVerfG 1782/99, de 15.01.2002, e BVerfGE 80, 137 (caso Reiten im Walden), do Tribunal Constitucional alemão; Noah v. The Attorney General, HCJ 9232/01, da Suprema Corte israelense.

– Legislação estrangeira citada: art. 2 (1) da Lei Fundamental de Bonn; Constituição de Weimar; Lei contra maus-tratos de animais domésticos, da França; Lei 28, de 2010, da Catalunha; Leis 18, de 2013, e 10, de 2015, da Espanha; Tierschutzgesetz e Bundeswaldgesetz (1975), da Alemanha; Ato Nacional de Proteção aos Animais, de Israel; Edito nº I do Imperador Asaoka (272 a.C.), da Índia.

RE 627.189, repercussão geral; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Dias Toffoli; julgamento: 08.06.2016; publicação: 03.04.2017.

– Tema: obrigatoriedade de redução, pelas concessionárias de energia elétrica, do campo eletromagnético das linhas de transmissão de energia elétrica abaixo do patamar legal.

– Decisões estrangeiras citadas: Court of Justice of the European Communities, Case C-241-01, National Farmer’s Union (UK) v. Secrétariat Général du Gouvernement (FR), julgado em 22.10.2002.

RE 548.181; órgão julgador: Primeira Turma; relator(a): Min. Rosa Weber; julgamento: 06.08.2013; publicação: 30.10.2014.

– Tema: responsabilidade penal da pessoa jurídica por crimes ambientais.

– Legislação estrangeira citada: art. 121, 2, do Código Penal de 1994 da França.

– Decisões estrangeiras citadas: Birmingham and Gloucester Railway Co. 1842 3 QB 223, 114 ER 492; Caso New York Central & Hudson River R.R v. U.S., 212 U.S. 481, 1901, da Suprema Corte norte-americana; caso U.S. v. Bank of New England, 821 F.2d 844, da Primeira Corte de Apelações Federais dos Estados Unidos.

ADI 2.077 MC; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Ilmar Galvão; redator(a) do acórdão: Min. Joaquim Barbosa; julgamento: 06.03.2013; publicação: 09.10.2014.

– Tema: pacto federativo; partilha de competência; municípios; matéria de interesse local.

– Legislação estrangeira citada: art. 28 (2) 1 da Constituição alemã; Constituição espanhola de 1978.

ADI 1.842; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Luiz Fux; redator(a) do acórdão: Min. Gilmar Mendes; julgamento: 06.03.2013; publicação: 16.09.2013.

– Tema: instituição de região metropolitana e competência para saneamento básico.

– Legislação estrangeira citada: art. 28 (2) 1 da Constituição alemã; art. 282 (4) da Constituição portuguesa; art. 140 da Constituição austríaca; Constituição espanhola de 1978; § 31 (2), § 78 e § 79 (1) da Lei Orgânica da Corte Constitucional alemã; art. 39 da Lei Orgânica da Corte Constitucional espanhola; art. 174, 2, do Tratado de Roma; Carta Europeia de Autogoverno Local.

– Decisão estrangeira citada: Caso Markx, de 13 de junho de 1979, do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

ADPF 101; órgão julgador: Tribunal Pleno; relator(a): Min. Cármen Lúcia; julgamento: 24.06.2009; publicação: 04.06.2012.

– Tema: proibição de importação de pneus usados; reciclagem de pneus usados: ausência de eliminação total de seus efeitos nocivos à saúde e ao meio ambiente equilibrado.

– Legislação estrangeira citada: art. 5 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

Como se vê, confirmam-se as tendências observadas por Luiz Magno Pinto Bastos Junior e Alini Bunn: aumento no uso de material estrangeiro (16 dos 20 acórdãos são dos últimos quatro anos); maior referência a fontes legislativas do que a precedentes, possivelmente em razão da vinculação do país à tradição do civil law; ausência de diferenciação entre direito internacional e direito estrangeiro; citações mais frequentes de fontes provenientes de países desenvolvidos, como Estados Unidos, Alemanha, Portugal e Espanha (o primeiro invariavelmente citado nas discussões envolvendo pacto federativo e repartição constitucional de competências), embora se perceba um crescimento no uso de material de países em desenvolvimento, como África do Sul, Angola, Colômbia, Equador, Índia e Venezuela.

De todo modo, considerando que se trata de um tema caro à humanidade e que envolve interdependência e solidariedade entre os povos, percebe-se um uso ainda tímido de fontes estrangeiras pelo STF. Existe de fato espaço para o incremento do diálogo transjudicial em assuntos relacionados ao meio ambiente, projetando o aperfeiçoamento da tomada de decisão e do cumprimento das medidas judiciais de controle e prevenção. É necessário, contudo, que a “conversa” envolva diversos pontos de vista, experimentados em realidades distintas, para se obter um diálogo de qualidade, o que, no contexto do transjudicialismo, significa admitir a contribuição de múltiplas nações.

Considerações finais

A legitimidade da decisão judicial depende, em grande medida, da capacidade dos juízes de apresentarem razões convincentes para suas decisões, por meio de argumentos persuasivos que transcendem meras preferências pessoais.

Ao elaborar um argumento persuasivo, o julgador pode se beneficiar de experiências alheias no enfrentamento de problemas semelhantes, ainda que advindas de contextos (e nações) diferentes do seu. [81] Além disso, partindo da premissa de que uma decisão qualificada não pode ser insensível aos seus efeitos, uma ampla compreensão pelo julgador das suas consequências, que vão além da esfera jurídica, inspirada em vivências de outras nações, enriquece o processo de tomada de decisão.

Nesse sentido, as fontes jurídicas estrangeiras podem influenciar a interpretação e a aplicação das fontes jurídicas nacionais, mesmo que não constitutivas e não vinculantes no direito interno. Nessa perspectiva, revela-se valiosa a familiarização do juiz com o conteúdo do direito estrangeiro e com o pensamento de cortes estrangeiras sobre o tema em análise.

No campo do direito ambiental, essa constatação se mostra ainda mais evidente, pois cuida de questões afetas à qualidade da vida humana, de problemas comuns aos Estados, muitas vezes de caráter transfronteiriço. Ademais, tratando-se de direito fundamental, o papel das cortes constitucionais ganha destaque no sentido de inspirar os juízes locais a considerarem concepções alternativas de conteúdo e de interpretação desses direitos.

O transjudicialismo, nessa arena, pode não levar o mundo a trilhar sempre o mesmo caminho nem as cortes a julgarem em perfeita harmonia, mas pode auxiliar os tomadores de decisão a articularem melhor os valores da comunidade que servem. Ao forjar uma compreensão pluralista e contextualizada, o diálogo transjudicial demanda dos juízes uma avaliação mais ampla das contingências associadas à criação, à interpretação e à aplicação dos direitos fundamentais.

 


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UNEP. Manual on compliance with and enforcement of multilateral environmental agreements. Guideline 47. Disponível em: http://www.oas.org/dsd/Tool-kit/Documentos/ModulleVI/Full%20Text%20of%20UNEP%20
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WATERS, Melissa A. Mediating norms and identity: the role of transnational judicial dialogue in creating and enforcing international law. Georgetown Law Journal, jan. 2005.

WATERS, Melissa A. The Supreme Court, constitutional courts and the role of international law in constitutional jurisprudence: Justice Scalia on the use of foreign law in constitutional interpretation: unidirectional monologue or co-constitutive dialogue? Tulsa Journal of Comparative & International Law, outono 2004.

 

[1] STAFFEN, Marcio Ricardo. Interfaces do direito global. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 100.

[2] SLAUGHTER, Anne-Marie. A tipology of transjudicial communication. University of Richmond Law Review, University of Richmond Law Review Association, inverno 1994.

[4] GERONTAS, Angelos S. Deterritorialization in administrative law: exploring transnational administrative decisions. 2013.

[8] GIARO, Tomasz. Transnational law and historical precedents. Studia Iuridica, Varsóvia, v. 38, 2016. p. 74.

[9] STAFFEN, Marcio Ricardo. Interfaces do direito global. p. 59.

[11] KOH, Harold Hongju. Why transnational law matters. p. 753.

[13] KOH, Harold Hongju. Why transnational law matters. p. 746.

[14] CRUZ, Paulo Márcio; BODNAR, Zenildo. A transnacionalidade e a emergência do Estado e do direito transnacional. p. 61.

[16] GARCIA, Marcos Leite. Direitos fundamentais e transnacionalidade: um estudo preliminar. p. 180.

[17] STAFFEN, Marcio Ricardo. Interfaces do direito global. p. 116.

[18] STAFFEN, Marcio Ricardo. Interfaces do direito global. p. 103.

[24] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, parágrafo 4º.

[25] BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 25 jun. 2021.

[26] LUPI, André Lipp Pinto Basto. A jurisprudência brasileira e a transnacio­nalidade: uma análise do transjudicialismo. p. 124.

[27] SLAUGHTER, Anne-Marie. A tipology of transjudicial communication. 1994.

[28] LUPI, André Lipp Pinto Basto. A jurisprudência brasileira e a transnacio­nalidade: uma análise do transjudicialismo. p. 124.

[29] SLAUGHTER, Anne-Marie. A tipology of transjudicial communication. 1994.

[30] SLAUGHTER, Anne-Marie. A tipology of transjudicial communication. 1994.

[32] LUPI, André Lipp Pinto Basto. A jurisprudência brasileira e a transnacio­nalidade: uma análise do transjudicialismo. p. 133.

[34] KROTOSZYNSKI JR., Ronald J. “I’d like to teach the world to sing (in perfect harmony)”. 2006.

[36] LUPI, André Lipp Pinto Basto. A jurisprudência brasileira e a transnacio­nalidade: uma análise do transjudicialismo. p. 132.

[38] LUPI, André Lipp Pinto Basto. A jurisprudência brasileira e a transnacio­nalidade: uma análise do transjudicialismo. p. 134.

[39] SLAUGHTER, Anne-Marie. A tipology of transjudicial communication. 1994.

[42] MARKOWITZ, Kenneth J.; GERARDU, Jo J. A. Environmental courts and tribunals: improving access to justice and protection of the environment around the world. 2012.

[44] FERRER, Gabriel Real; DANTAS, Marcelo Buzaglo; BONISSONI, Natammy Luana de Aguiar. O processo de internacionalização da proteção ambiental e dos direitos humanos. p. 169.

[45] MARKOWITZ, Kenneth J.; GERARDU, Jo J. A. Environmental courts and tribunals: improving access to justice and protection of the environment around the world. 2012.

[46] MARKOWITZ, Kenneth J.; GERARDU, Jo J. A. Environmental courts and tribunals: improving access to justice and protection of the environment around the world. 2012.

[47] “Estas questões (ambientais) transcendem fronteiras. A proteção do meio ambiente global está muito além da capacidade de cada país. Apenas uma ação internacional concertada e coordenada será suficiente. O mundo precisa de um sistema mais coerente de governança ambiental internacional” (UNEP. Global Environment Outlook 4 (GEO-4) Report. Disponível em: https://www.unep.org/resources/global-environment-outlook-4. Acesso em: 25 jun. 2021. Tradução nossa).

[51] GLENSY, Rex D. The use of international law in U.S. constitutional adjudication. 2011.

[53] GLENSY, Rex D. The use of international law in U.S. constitutional adjudication. 2011.

[55][...] the life of the law has not been logic, it has been experience” (apud MINTZ, Joel A. Some thoughts on the merits of pragmatism as a guide to environmental protection. Boston College Environmental Affairs Law Review, Boston College Law School, 2004. Tradução nossa).

[56] GLENSY, Rex D. The use of international law in U.S. constitutional adjudication. 2011.

[57] GLENSY, Rex D. The use of international law in U.S. constitutional adjudication. 2011.

[58] GLENSY, Rex D. The use of international law in U.S. constitutional adjudication. 2011.

[60] Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558 (2003).

[61] Roper v. Simmons, 543 U.S. 551 (2005).

[62] “Não diminui nossa fidelidade à Constituição ou nosso orgulho de suas origens reconhecer que a afirmação expressa de certos direitos fundamentais por outras nações e povos simplesmente ressalta a centralidade desses mesmos direitos dentro de nossa própria herança de liberdade” (tradução nossa).

[63] “O que afirmam essas fontes estrangeiras [...] é a própria noção dos justices de como o mundo deveria ser, e seu decreto de que assim será na América” (tradução nossa).

[64] Graham v. Florida, 130 S. Ct. 2011 (2010).

[65]Amendment 8 – Cruel and Unusual Punishment. Ratified 12.15.1791. Excessive bail shall not be required, nor excessive fines imposed, nor cruel and unusual punishments inflicted” (“Emenda 8 – Punição cruel e incomum. Ratificada em 15.12.1791. Não será exigida fiança excessiva, nem impostas multas excessivas, nem punições cruéis e incomuns infligidas”. Tradução nossa).

[66] GLENSY, Rex D. The use of international law in U.S. constitutional adjudication. 2011.

[67] De acordo com Melissa Waters, as críticas não vêm só dos círculos judiciários e acadêmicos. Tramitava no Congresso norte-americano uma resolução segundo a qual decisões judiciais que envolvessem interpretação das leis nacionais não deveriam ser baseadas em fontes jurídicas estrangeiras (WATERS, Melissa A. The Supreme Court, constitutional courts and the role of international law in constitutional jurisprudence. 2004).

[68] WATERS, Melissa A. The Supreme Court, constitutional courts and the role of international law in constitutional jurisprudence. 2004.

[69] WATERS, Melissa A. The Supreme Court, constitutional courts and the role of international law in constitutional jurisprudence. 2004.

[70]Amendment 5 – Trial and Punishment, Compensation for Takings. Ratified 12.15.1791. No person shall be [...] deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation” (“Emenda 5. [...] ninguém poderá [...] ser privado da vida, da liberdade ou de seus bens sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público sem justa indenização”. Tradução nossa).

[71] RAUPP, Daniel. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a possibilidade de ocupação da zona costeira mediante desenvolvimento sustentável. Florianópolis: Habitus, 2020. (Coleção Direito, Meio Ambiente e Sustentabilidade, v. 25). p. 99.

[72] WATERS, Melissa A. The Supreme Court, constitutional courts and the role of international law in constitutional jurisprudence. 2004.

[74] WATERS, Melissa A. The Supreme Court, constitutional courts and the role of international law in constitutional jurisprudence. 2004.

[75] “Tenho certeza de que esta publicação é uma contribuição relevante para o diálogo construtivo sobre a experiência da jurisdição constitucional em muitas nações” (tradução nossa).

[77] Resolução nº 411, de 23 de agosto de 2021.

[79] BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pintos; BUNN, Alini. Abertura e diálogo entre as cortes constitucionais. p. 112.

[80] Tendo em vista o objetivo deste trabalho, não houve preocupação em expor o resultado do julgamento, mas revelar o que foi usado de material estrangeiro na argumentação.

[81] KROTOSZYNSKI JR., Ronald J. “I’d like to teach the world to sing (in perfect harmony)”. 2006.

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