“Neste momento, a imagem da Amazônia em chamas está no mundo inteiro, essa imagem me aterroriza, tenho certeza de que a vocês também. Quem queima não são só as árvores, o solo, o ar, os rios. Somos também nós, o povo da floresta. Queima a nossa história e as nossas formas de viver.” Sônia Guajajara, líder indígena. Discurso na Cúpula do Clima – ONU (2019) Resumo O presente artigo, elaborado de acordo com o método dedutivo, busca identificar o fenômeno da proteção contra as mudanças climáticas nos âmbitos das constituições nacionais e dos tratados e da jurisprudência transnacionais. Objetiva-se observar a densificação das normas climáticas e ambientais nas legislações e o conceito de constitucionalismo global em matéria de governança climática. Para tanto, serão analisados os impactos de tais normas no contrato social e na jurisprudência ambiental global, bem como na litigância climática, que mais e mais tem modificado legislações ao redor do mundo. Pretende-se identificar as características da norma ambiental intergeracional climática e seus impactos nas decisões judiciais. Palavras-chave: Norma ambiental intergeracional climática. Acordo de Paris. Litigância climática. Constitucionalismo global ambiental. Abstract This paper seeks to identify the protection against climate change within Brazilian, international and transnational jurisprudence. Using the method of deduction, it explores the densification of climate and environmental norms and the usage of the global constitutionalism concept in matters of climate governance. It analyzes the impacts of such norms on three interconnected spheres: the social contract, global environmental jurisprudence, and climate litigation. The overarching goal of the project is to identify characteristics of the intergenerational climate environmental norm and its impacts on judicial decisions. Keywords: Intergenerational environmental climate rule. Paris Agreement. Climate litigation. Global environmental constitutionalism. Introdução O presente estudo, elaborado a partir do método dedutivo, busca identificar as características da norma ambiental intergeracional climática. Ela se confunde ou não com o fenômeno das chamadas emendas verdes (green amendments) na proteção contra as mudanças climáticas no âmbito das constituições nacionais e no transnacional? Busca-se conceituar o constitucionalismo global em matéria de governança climática e o impacto que tal prática acarreta para obstar as mudanças climáticas irreversíveis de origem antropogênica. A principal hipótese que abordaremos é que a norma ambiental intergeracional climática é parte intrínseca do próprio pacto social que enseja a noção de Estado. É um componente fundamental e fundamentante da sociedade. Se o Estado é um conjunto de povos ou povo que subsiste em um território determinado ou determinável e possui identificação entre si, será a norma de regulação climática algo novo? Ou faz parte de um conceito maior de intergeracionalidade que é adjacente ao próprio pacto político? A existência de uma norma constitucional e constitutiva do Estado no pré-pacto, analisada sob a ótica de John Rawls, indica a existência de uma base política de perpetuação do povo e de seu pacto, da qual as modernas normas de não perecimento em razão de adventos climáticos extremos seriam apenas subsidiárias. A norma de direito intergeracional climático, como será chamada neste texto, é constitutiva do Estado e – estando ou não formalmente densificada em uma constituição – deve ser obedecida, sob pena de não se viabilizar um Estado justo e sustentável para as futuras gerações. 1 A proteção climática como norma constitutiva e constitucional do Estado 1.1 A emenda verde A expressão green amendment, [1] ou emenda verde, como passaremos a referir aqui, é o nome dado pela ativista Maya K. Van Rossum, fundadora da ONG Delaware Riverkeeper, ao movimento que visa a inserir nas constituições estaduais e federal dos Estados Unidos dispositivos claros de proteção à vida e a um ambiente saudável. A emenda verde abarca um conteúdo maior e mais completo que a doutrina de confiança pública, [2] geralmente arguida nos tribunais como fundamento para proteção do ambiente nos Estados Unidos. Isso porque a doutrina da confiança pública é pontual (recursos hídricos e fatos ambientais mais específicos, como quebra do xisto para liberação de gás etc.), enquanto a emenda verde abordaria todas as questões ambientais, incluindo água, clima, ar, preservação de florestas. A emenda verde seria o modo mais efetivo de abordar os danos ambientais, pois ensejaria a possibilidade de se agir preventivamente. Ao longo do livro intitulado The green amendment: securing our right to a healthy environment, de 2017, Maya K. Van Rossum exemplifica como a redação de várias constituições estaduais americanas enseja uma maior ou menor proteção. E a grande diferença reside, justamente, na linguagem objetiva de proteção ambiental que há em cada uma delas. A luta ambiental não poderia mais prescindir dessa incerteza constitucional – proporcionada pela não densificação do direito fundamental ao meio ambiente saudável nas constituições federal e estaduais americanas. Na história das emendas verdes estaduais americanas, somente os estados americanos da Pensilvânia, de Montana e de Rhode Island possuíam antigas previsões constitucionais ambientais (Pennsylvania Const. art. I, § 27 (1971); Montana Const. art. II, § 3 (1889); e Rhode Island RI Const. art. I, § 17 (1970)). Três outros estados – Havaí, Illinois e Massachusetts – articulam e protegem os direitos ambientais de seus cidadãos em artigos separados de seus estatutos (Hawaii Const. art. XI, §§ 1, 9 (1978); Illinois Const. art. XI, §§ 1, 2 (1971-72); Massachusetts Const. Alteration 49 (1972)). [3] As constituições dos Estados de Montana e da Pensilvânia, segundo a ambientalista, facilitam a defesa ambiental, por possuírem previsões expressas e diretas. Fundada nessa redação direta, a Suprema Corte de Montana derrubou licenças, como as que permitiam que o empreendimento de mineração Seven-Up Pete trabalhasse ao longo do Rio Blackfoot. [4] Para a ambientalista, a linguagem constitucional por si só permitiu ao tribunal agir para evitar danos ambientais, e os cidadãos engajados na proteção ambiental e climática não precisaram esperar que os danos ocorressem. Ela lembra que a disposição constitucional de Montana obriga o Estado a preservar e proteger seus recursos ambientais, enquanto a da Virgínia não, por exemplo. A Constituição de Montana direciona a ação – “o Estado e cada pessoa deve manter e melhorar” –, enquanto a Constituição da Virgínia apenas define a proteção ambiental como princípio ou objetivo – “será a política da Comunidade conservar, desenvolver e utilizar seus recursos naturais”. A redação da norma constitucional ambiental de Montana seria mais forte, porque reconhece os direitos ambientais como direitos inalienáveis na seção de direitos da Constituição, e, como tal, esses direitos não podem ser violados pelo Estado (sem atender ao padrão de interesse estatal convincente). Além disso, tais direitos ambientais têm a mesma força jurídica que outros direitos fundamentais/civis. A disposição constitucional de Montana também é clara na exigência de ações específicas, particularmente por parte do Estado. [5] Assim, os dispositivos constitucionais das Constituições da Pensilvânia e de Montana deveriam ser replicados, num movimento da sociedade civil americana que hoje se chama Green Amendment (Emenda Verde, como mencionado). Emendas nas constituições federal e estaduais mais diretas são necessárias, segundo a ativista, substituindo declarações de direitos ditas mais aspiracionais e teóricas, como as dos Estados da Virgínia e de Michigan. [6] Isso garantiria não somente um ambiente limpo e seguro, preservando materialmente os direitos fundamentais das populações e das gerações futuras, mas também uma proteção em altos padrões legais, como os que são usados para garantir outros direitos fundamentais, como o direito à liberdade de expressão, por exemplo. As constituições estaduais que possuem essa proteção direta de uma emenda verde somente poderiam ter seu dispositivo contornado por alto interesse público. Isso se consolidou na decisão da Suprema Corte de Montana no caso do Cape-France Enterprises. [7] Esse foi um caso muito significativo nos Estados Unidos, pois estabeleceu que apenas um “interesse estatal convincente” poderia ser invocado para permitir uma ação que violasse o direito da Constituição estadual a um ambiente limpo. Isso criou uma barreira significativa para qualquer projeto que ameaçasse o meio ambiente. Mas também forneceu um caminho para que o Estado distorcesse decisões que impactaram o meio ambiente de forma constitucional, se houvesse uma razão convincente, identificada e apoiada para fazê-lo, como nos lembra Von Rossum no livro mencionado. Em nível federal, porém, há uma grande barreira em ratificar uma emenda à Constituição dos EUA, demonstrada pela escassez de tais alterações desde a Declaração de Direitos, o que torna a ação estatal preferível, porque é mais provável que tenha sucesso no curto prazo. E, embora as constituições estaduais possam ser mais frequentemente alteradas do que a Constituição Federal, isso não significa que alterar uma constituição estadual é um feito fácil, e é mais difícil alterar uma constituição estadual do que aprovar ou reverter a legislação ou regulamentos. Dado o caminho mais difícil para a alteração de uma constituição, uma vez ratificada uma emenda verde, é improvável que seja substituída ou anulada por uma disposição constitucional menos rigorosa, não só pela complexidade do processo, mas também porque exigiria que os legisladores e o público avançassem e apoiassem uma mensagem de que as pessoas não deveriam ter um direito reconhecido de água limpa e ar limpo. Não, porque o fato de as constituições estaduais estarem abertas a emendas significa que elas podem ser alteradas novamente para desfazer quaisquer proteções fornecidas por uma emenda verde. (...) O pensamento de longo prazo é essencial para considerar o impacto ambiental de qualquer decisão, porque os problemas ambientais muitas vezes levam um tempo considerável para se desenvolver, mas, uma vez que atingem um ponto crítico, eles podem ser extremamente caros para resolver. Os estudantes também podem considerar a obrigação moral de proteger as crianças e que uma falha em considerar as gerações futuras viola essa ética moral. (...) Muitos dos países que não adotaram as disposições de direitos ambientais em suas constituições são nações ricas, como os Estados Unidos e o Canadá. Por que as nações ricas não adotariam as alterações dos direitos ambientais, enquanto nações menores ou menos ricas, como Equador ou Portugal, incluem tais proteções em suas constituições? [8] Ao final dessas reflexões, a ativista refere a pergunta principal que enfrentamos diante da onda de ações de litigância climática: será o constitucionalismo ambiental inconstitucional nos Estados Unidos (e no mundo)? [9] Qual a natureza da norma ambiental dentro da teoria da filosofia política e de pensadores como Kant, John Rawls e Foucault? Uma vez que as cortes estaduais estão se substituindo na decisão dos representantes dos povos em garantir o direito último à vida e a uma vida digna e saudável, haveria aí uma burla (inconstitucional) à vontade política, principalmente diante de constituições nacionais que não possuem garantias diretas em sua redação? A resposta que várias decisões jurisprudenciais importantes pelo mundo estão dando é: não. É papel do Judiciário defender o direito das gerações futuras e responder à emergência climática, mesmo diante de uma norma pouco clara ou constitucionalmente densificada, mesmo não havendo uma cláusula verde constitucionalmente pactuada em nível interno. Como isso acontece, quais os padrões de normas ambientais constitucionais e se há um direito à vida saudável que emana do pré-pacto social são os pontos que serão desenvolvidos neste artigo. 1.2 A proteção climática como norma constitucional global e como norma constitucional do Estado A emergência das normas climáticas como normas de uma constituição global é um fenômeno já bem estudado, principalmente pelos professores Erin Daly e James R. May, titulares da Cátedra Ambiental na Widener University Delaware Law School. Ambos publicaram as obras mais importantes nessa seara, sob encomenda e distribuição da ONU – Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas: James R. May and Erin Daly, Judicial handbook on global environmental constitutionalism (United Nations Environment 2017); [10] James R. May and Erin Daly, New frontiers in environmental constitutionalism (UN Environment 2017); [11] Erin Daly and James R. May, Compendium to Judicial handbook on global environmental constitutionalism (UN Environment 2018, 3rd edition 2019). [12] Para os professores de Delaware: O constitucionalismo ambiental é um fenômeno relativamente recente na confluência do direito constitucional, do direito internacional, dos direitos humanos e do direito ambiental. Incorpora o reconhecimento de que o meio ambiente é um tema adequado para a proteção em textos constitucionais e para a reprovação por tribunais constitucionais em todo o mundo. O constitucionalismo ambiental oferece uma forma de enfrentar desafios ambientais que vão além do alcance de outras construções legais. (...) Ele pode ser implantado para proteger preocupações locais, como acesso a alimentos frescos, água ou ar, ou preocupações globais, como biodiversidade e mudanças climáticas, que compartilham elementos tanto dos direitos humanos quanto da proteção ambiental. O constitucionalismo ambiental oferece um caminho a seguir quando outros mecanismos legais são aquém. (...) Alguns aspectos são bastante comuns. Por exemplo, cerca de metade dos países do mundo reconhece expressamente ou implicitamente um direito constitucional a um ambiente de qualidade. Cerca do mesmo número prevê um dever correspondente aos indivíduos para proteger o meio ambiente. Algumas disposições são bastante específicas, como as que preveem direitos da natureza, ou direitos à água potável ou outros recursos naturais. Alguns são mais efêmeros, reconhecendo responsabilidades de confiança sobre os recursos naturais ou para as gerações futuras, ou abordando assuntos relacionados como sustentabilidade ou mudanças climáticas. Alguns reconhecem a gestão ambiental como uma questão de política nacional. Embora a maioria das disposições constitucionais que tratam das preocupações ambientais seja narrativa, algumas incorporam resultados numéricos, como a manutenção de uma porcentagem da cobertura de árvores prescrita, incluindo Butão (60%) e Quênia (10%). (...) Alguns países incorporam em sua constituição normas ambientais, incluindo o Brasil, enquanto outros o evitam inteiramente. A maioria dos países cai em algum lugar no meio. A variedade de disposições, com o objetivo de proteger diferentes aspectos do meio ambiente com uma gama de patamares e mecanismos de aplicação, atesta o crescimento do constitucionalismo ambiental em todo o mundo em número e relevância. O constitucionalismo ambiental também está crescendo a nível estadual (subnacional), preenchendo lacunas nos sistemas federais. Mais proeminentes pelos Estados das Américas em geral, e pelo Brasil, em particular, governos subnacionais em todo o mundo têm considerado adequado constitucionalizar direitos ambientais substantivos e processuais, deveres ambientais e desenvolvimento sustentável para as gerações atuais e futuras, muitas vezes com muito mais especificidade e aplicabilidade do que previstos nas constituições nacionais. A densificação constitucional em nível subnacional dos direitos constitucionais ambientais também pode ter uma relevância especial em países que ainda não reconheceram os direitos ambientais em nível federal. O constitucionalismo ambiental é um nó essencial na rede de gestão nacional do meio ambiente, juntamente com esquemas estatutários nacionais, como avaliações de impacto ambiental e estrutura hídrica, legislação, adesão a tratados e normas internacionais, multilaterais e regionais e diálogo com governos subnacionais e locais. Como resultado, pode proporcionar um mecanismo para garantir e promover a complementaridade de diferentes regimes nos diversos níveis de governança. [13] O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas nomeou, em sua Resolução 19/2010, um perito independente para a questão das obrigações de direitos humanos relacionadas ao gozo de um meio ambiente seguro, limpo, saudável e sustentável. Daí surgiu um relatório com mais de cem boas práticas no uso de obrigações relativas ao ambiente. [14] As recomendações do documento sobre boas práticas na redação de obrigações constitucionais foram divididas em: a) obrigações processuais; b) obrigação de tornar públicas as informações ambientais; c) obrigação de facilitar a participação pública na tomada de decisões ambientais; d) obrigação de proteger os direitos de expressão e associação; e) obrigação de fornecer acesso a recursos legais; f) obrigações substantivas; g) obrigações relativas aos intervenientes não estatais; h) obrigações relativas a danos ambientais transfronteiriços (transnacionais); i) obrigações relativas a membros de grupos em situações vulneráveis. A densificação da norma que se pretende constitucional – para ter maior salvaguarda de direitos – gira em torno desses temas principais. Uma das principais conclusões em boas práticas foi reconhecer que a norma ambiental constitucional é uma norma transnacional (transfronteiriça) por natureza, fato que compartilha com os direitos humanos que salvaguarda: Obligaciones relativas a daños ambientales transfronterizos 62. Muchas amenazas graves al disfrute de los derechos humanos se deben a daños ambientales transfronterizos, incluidos problemas de alcance mundial como la destrucción de la capa de ozono y el cambio climático. Ello lleva a plantearse si los Estados tienen la obligación de proteger los derechos humanos contra los efectos ambientales extraterritoriales de las medidas adoptadas en su territorio. 63. No hay motivos evidentes por los que un Estado no deba considerarse responsable de actuaciones que, en cualquier otro caso, constituirían un incumplimiento de sus obligaciones de derechos humanos por el mero hecho de que el daño se experimente fuera de sus fronteras. Aun así, la aplicación de las obligaciones de derechos humanos a los daños ambientales transfronterizos no siempre está clara. Una dificultad que se plantea es que los instrumentos de derechos humanos abordan las cuestiones relativas a la jurisdicción de distintas maneras. Algunos, como la Declaración Universal de Derechos Humanos y la Carta Africana, no contienen limitaciones jurisdiccionales expresas, y el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales puede ofrecer incluso un fundamento explícito para las obligaciones extraterritoriales (art. 2, párr. 1). Sin embargo, otros tratados, como el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, la Convención sobre los Derechos del Niño, el Convenio Europeo de Derechos Humanos y la Convención Americana sobre Derechos Humanos, limitan al menos algunas de sus protecciones a las personas situados bajo la jurisdicción del Estado o sometidas a ella, sin aclarar hasta qué punto esas protecciones se extienden más allá del territorio del Estado. Otro problema es que muchos órganos de derechos humanos no han abordado la extraterritorialidad en el contexto de los daños ambientales. 64. Aun así, la mayoría de las fuentes consultadas en que se aborda esta cuestión señalan que los Estados están obligados a proteger los derechos humanos, y en particular los derechos económicos, sociales y culturales, contra los efectos ambientales extraterritoriales de las medidas adoptadas en su territorio. El Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales ha interpretado que el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales exige a los Estados que son partes en él que se abstengan “de cualquier medida que obstaculice, directa o indirectamente, el ejercicio del derecho al agua potable en otros países” (Observación general Nº 15, párr. 31), y ha declarado que las partes deben también adoptar medidas para impedir que terceros sujetos a su jurisdicción, como sus propios ciudadanos y empresas, violen el derecho al agua potable y a la salud en otros países (Observación general Nº 15, párr. 33; y Observación general Nº 14, párr. 39). Varios relatores especiales han realizado interpretaciones similares. En 2011, el Relator Especial sobre el derecho a la alimentación y la Relatora Especial sobre la extrema pobreza y los derechos humanos se unieron a académicos y activistas para aprobar los Principios de Maastricht sobre las Obligaciones Extraterritoriales de los Estados en el Área de los Derechos Económicos, Sociales y Culturales. La Relatora Especial sobre el derecho humano al agua potable y el saneamiento citó recientemente esos Principios, que “recalcan la obligación de los Estados de evitar que se causen daños extraterritorialmente” y “afirman la obligación de los Estados de proteger los derechos humanos extraterritorialmente, es decir, de adoptar las medidas necesarias para asegurar que los actores no estatales no anulen o menoscaben el disfrute de los derechos económicos, sociales y culturales. Ello implica que están obligados a evitar la contaminación de los cursos de agua en otras jurisdicciones y, en consecuencia, a regular la actuación de los agentes no estatales” (A/68/264, párr. 46). 65. Estas interpretaciones coinciden con la obligación fundamental de los Estados de cumplir los compromisos dimanantes de los tratados de buena fe, para lo cual deben evitar tomar medidas que frustren el objeto y el fin de dichos tratados. La Corte Internacional de Justicia ha interpretado que este principio de pacta sunt servanda exige a las partes en un tratado que lo apliquen “razonablemente y de manera que pueda cumplirse su objetivo”. Esto indica que las partes en un tratado de derechos humanos no deberían comportarse de formas que dificulten a otras el cumplimiento de sus propias obligaciones en virtud de ese tratado. 66. Otras fuentes, como el Representante Especial del Secretario General para la cuestión de los derechos humanos y las empresas transnacionales y otras empresas, han adoptado una visión más restrictiva del alcance de las obligaciones extraterritoriales en materia de derechos humanos. El Representante Especial ha afirmado, sin embargo, que “a nivel internacional hay un creciente estímulo (...) de que los Estados de acogida adopten medidas regulatorias para prevenir los abusos de sus empresas en el extranjero” (A/HRC/8/5, párr. 19), y ha instado a los Estados a que tomen más medidas para evitar que las empresas vulneren los derechos humanos en el extranjero (A/HRC/14/27). 67. Aunque aún queda mucho por hacer para aclarar el contenido de las obligaciones extraterritoriales en materia de derechos humanos que se relacionan con el medio ambiente, esta falta de claridad total no debería impedir ver un aspecto básico: los Estados tienen la obligación de cooperar internacionalmente en materia de derechos humanos, y esta obligación figura no solo en tratados como el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales (art. 2, párr. 1), sino también en la propia Carta de las Naciones Unidas (arts. 55 y 56). Esta obligación se aplica en particular a las amenazas ambientales mundiales contra los derechos humanos, como el cambio climático (A/HRC/10/61, párr. 99). Como señaló el Consejo de Derechos Humanos en su Resolución 16/11, el principio 7 de la Declaración de Río establece que “(l)os Estados deberán cooperar con espíritu de solidaridad mundial para conservar, proteger y restablecer la salud y la integridad del ecosistema de la Tierra”. 68. De hecho, gran parte del derecho ambiental internacional refleja los esfuerzos de los Estados por cooperar ante los desafíos transfronterizos y mundiales. Para la futura labor de aclarar las obligaciones extraterritoriales respecto de los daños ambientales que menoscaban los derechos humanos, podrá extraerse orientación de los instrumentos internacionales relativos al medio ambiente, muchos de los cuales incluyen disposiciones específicas para identificar y proteger los derechos de los afectados por esos daños. [15] Esse direito ambiental constitucional possui três facetas: o direito interno constitucional em si, o direito internacional dos tratados internalizados e o direito transnacional da jurisprudência, por exemplo, que se faz em termos de litigância climática. É o que Délton Winter de Carvalho, um dos mais importantes pesquisadores em litigância climática brasileira, define como regime climático internacional: “O Direito das Mudanças Climáticas é constituído por um regime jurídico tridimensional, constituído pelos regimes internacional, transnacional e nacional de tratamento da mudança climática e seus efeitos”. [16] Nesse artigo, esclarece-se que o regime internacional que a ONU propõe é composto por três acordos-chave: a Convenção-Quadro de 1992, o Protocolo de Quioto de 1997 e o Acordo de Paris de 2015. Para o pesquisador, os países passam a desenvolver seu Direito das Mudanças Climáticas, internalizando as normas: (i) ratificando tratados climáticos de direito internacional; (ii) promulgando normativas acerca da matéria climática, tais como previsões constitucionais, processos legislativos nacionais, subnacionais e municipais e atos normativos infralegais; (iii) por meio do desenvolvimento de planos executivos de mitigação e adaptação climática. [17] Nesse contexto, verificamos a emergência de um direito transnacional, na medida em que mais e mais ações de litigância climática emergem nos países, baseadas nesses tratados, e firmam uma jurisprudência comum, no sentido de que as mudanças climáticas são uma preocupação igualmente comum a toda a humanidade: Regime climático transnacional. Para além das dimensões internacional e nacional, há a formação de uma cada vez mais forte dimensão transnacional. Esta se volta para os aspectos globais do Direito das Mudanças Climáticas, tendo por base propulsora a expansão global dos litígios climáticos que, por seu turno, desencadeiam um movimento transnacional por justiça climática (PEEL; LIN, 2019, p. 681). Nesse processo, cada vez mais frequente, casos paradigmáticos mundiais passam a influenciar e ter sua aderência testada em outras jurisdições, desencadeando uma verdadeira governança climática transnacional pelo litígio (CARVALHO, 2015, p. 140-149; CARVALHO, 2020, p. 188-197). Os litígios climáticos são fenômenos jurisdicionais e, portanto, frequentemente ocorrem em âmbito local, em cortes nacionais ou subnacionais. Ante a constante ausência de um caráter vinculante (binding) e de execução forçada (enforcement) dos instrumentos internacionais, como o Acordo de Paris, os litígios climáticos envolvem litigantes e decisões de cortes domésticas (PEEL; LIN, 2019, p. 696). Apesar de frequentemente os litigantes serem de uma mesma nação, onde tramita a demanda jurisdicional, o caráter transnacional decorre da constatação de que os seus reflexos judiciais adquirem um alcance local e global, simultaneamente (BODANSKY, 2015). Um dos aspectos mais destacados dessa dimensão, originada nas orientações emanadas do próprio Acordo de Paris, é o fato de a governança climática (i) ser multinível e para além do Estado (tendo como atores indivíduos, organizações não governamentais, cidades, estados, países etc.); (ii) ter uma base científica (fundada em relatórios científicos do Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC); e (iii) identificar o potencial que as mudanças climáticas têm de afetar os mais vulneráveis e ocasionar a violação a direitos humanos, tais como a vida, a dignidade da pessoa humana, a propriedade, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, entre outros. E é no âmago desse movimento transnacional que um constitucionalismo global passa a adquirir sua face ambiental e, mais recentemente, climática. [18] Vemos que essa transnacionalidade emerge como uma evolução e uma salvaguarda mesmo aos direitos humanos, como nos fala o Professor David Hunter. Mas a obrigatoriedade das decisões judiciais transnacionais, para esse eminente professor de Washington, ainda é uma incógnita: Da mesma forma, os juristas internacionais podem tomar orientação dos princípios e dos raciocínios empregados pelos juízes nos tribunais nacionais, embora essas decisões não sejam, em si mesmas, direito internacional. Além dos escritos dos jurisconsultos, o ICJ também pode buscar orientação em suas decisões anteriores ou nas de outros tribunais internacionais. Mas as decisões de tais tribunais, mesmo as do próprio ICJ, são vinculantes apenas aos Estados cuja disputa o tribunal decidiu. Para outros Estados, tais decisões podem fornecer provas do que é a lei, mas as decisões não criam lei. Dito isso, as opiniões do ICJ são citadas como autoridade com tanta frequência que a distinção entre simplesmente identificar a lei e realmente fazê-la foi borrada. Embora as decisões judiciais sejam relativamente incomuns no campo ambiental, elas têm sido importantes para o desenvolvimento do direito ambiental internacional e para a formulação das responsabilidades dos Estados que compartilham recursos transfronteiriços. Vários tribunais internacionais abordaram questões ambientais, incluindo o ICJ, que tem jurisdição geral sobre disputas internacionais (quando ambas as partes concordam com a jurisdição). Outros tribunais com jurisdições limitadas por região ou assunto, como o Direito Internacional do Tribunal do Mar, o Órgão de Apelação da Organização Mundial do Comércio ou o Tribunal Europeu de Justiça, também estão desempenhando um papel cada vez mais importante na abordagem de questões relacionadas ao meio ambiente e no desenvolvimento do direito ambiental internacional. A seguir, exemplos breves de duas das mais conhecidas disputas ambientais internacionais. A Arbitragem de Trail Smelter (1941). A Arbitragem de Trail Smelter, a mais famosa adjudicação ambiental internacional, envolveu emissões transfronteiriças de dióxido de enxofre de uma fundição localizada em Trail, Colúmbia Britânica, apenas alguns quilômetros ao norte da fronteira EUA-Canadá. Durante a década de 1930, a Trail Smelter emitiu aproximadamente 250.000 toneladas de dióxido de enxofre por ano no ar. Essa emanação atravessou a fronteira e danificou a propriedade de cultivadores de maçãs no Estado de Washington. Por uma variedade de razões jurisdicionais, os residentes do Estado de Washington não puderam entrar com uma ação judicial no Estado de Washington ou na Colúmbia Britânica, por isso pediram ao governo dos EUA para intervir em seu nome em 1927. Em última análise, o tribunal ficaria ao lado dos Estados Unidos, decidindo que, “sob os princípios do direito internacional, nenhum Estado tem o direito de usar ou permitir o uso de seu território de forma a causar danos por fumaça no ou ao território de outro ou às propriedades ou pessoas nele, quando o caso é de consequência grave e o dano é estabelecido por evidências claras e convincentes” (Caso Trail Smelter 1941: 1965). O tribunal, portanto, responsabilizava o Canadá, sob o direito internacional, pelos danos causados pela poluição do ar. O Canadá foi forçado a pagar indenização e a tomar medidas para reduzir a poluição. A obrigação de não causar danos ambientais a um Estado vizinho seria posteriormente reconhecida como parte da lei habitual pelo ICJ. O Caso Pulp Mill (Argentina x Uruguai) (2010). Em 2010, o ICJ decidiu sobre uma disputa internacional de água envolvendo a poluição antecipada de duas fábricas de celulose propostas no Uruguai, perto do Rio Uruguai, que forma a fronteira entre o Uruguai e a Argentina. A Argentina alegou uma série de violações de um tratado de 1975 entre Argentina e Uruguai que estabeleceu o regime para o uso compartilhado do rio. O tratado de 1975 estabeleceu uma comissão fluvial bilateral (CARU), que forneceu o quadro institucional para alcançar mutuamente o uso racional e o desenvolvimento do rio. Em uma decisão abrangente, o tribunal decidiu que o Uruguai havia violado obrigações processuais, mas não substantivas, devidas à Argentina no planejamento e na construção das fábricas de celulose. O tribunal considerou que a obrigação de informar a CARU sobre os desenvolvimentos planejados era o primeiro passo em todo o mecanismo processual estabelecido pelo tratado e não poderia ser substituído por alguma forma alternativa de notificação. O ICJ concluiu, em última análise, que o Uruguai havia violado suas obrigações processuais de notificar e consultar a Argentina sob o tratado de 1975, mas que nenhuma obrigação ambiental substantiva foi violada. Determinou ainda que a Argentina não deveria receber nenhuma reparação além da descoberta de uma violação. As fábricas de celulose ainda poderiam operar sem qualquer restituição. Apesar desses dois exemplos, as disputas ambientais internacionais raramente são levadas a tribunais ou outras cortes formais. Vários fatores explicam isso. Em primeiro lugar, a autoridade jurisdicional e de execução dos tribunais formais pode ser inadequada para garantir uma reparação significativa. Mecanismos formais de disputa podem ser lentos e caros (...). Pode ser mais eficiente resolver tais disputas por meio de negociações informais entre as partes (...). A razão predominante, porém, provavelmente reside em um simples truísmo do direito internacional – os Estados geralmente não estão dispostos a ceder sua soberania, submetendo-se à jurisdição de arbitragem de terceiros ou a acordo judicial. Além disso, as regras substantivas do direito ambiental internacional ainda não são totalmente claras, portanto, prever qual Estado prevalecerá é difícil e pode impedir alguns Estados de trazer processos judiciais. Por essas razões, os tratados recentes têm se concentrado tanto em mecanismos para evitar disputas (por exemplo, facilitando o cumprimento) quanto nos procedimentos para resolver os litígios. [19] Essa precaução dos Estados nacionais mais e mais cai por terra diante das mudanças climáticas e da necessidade urgente de soluções emergenciais e comuns. Vários julgados estão sendo usados como jurisprudência global independentemente das soberanias nacionais. Pretende-se resguardar, conforme consolidado em julgados ambientais nas cortes superiores de direitos humanos, principalmente, o direito das gerações futuras. No julgado Comunidades indígenas miembros de la Asociación Lhaka Honhhat (nuestra terra) v. Argentina, uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH – prolatada em 6 de fevereiro de 2020 considerou o Estado da Argentina internacionalmente responsável pela violação dos direitos a propriedade comunitária, identidade cultural, ambiente saudável, comida e água adequadas para as comunidades indígenas. Pela primeira vez em um caso contencioso, a Corte analisou os direitos a um meio ambiente saudável, alimentação adequada, água e identidade cultural de forma autônoma a partir do artigo 26 da Convenção Americana, ordenando medidas específicas de reparação e restituição desses direitos, inclusive ações de acesso a água e alimentos, recuperação de recursos florestais e recuperação da cultura indígena. Pela primeira vez, um Estado nacional foi condenado por uma norma de direito ambiental transnacional advinda de tratado (artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos). A determinação da Corte baseou-se no argumento de que o Estado argentino violava os direitos a identidade cultural, ambiente saudável, alimentos e água adequados devido à falta de eficácia das medidas estatais para interromper as atividades que lhes eram prejudiciais. O tribunal entendeu que a exploração ilegal de madeira, bem como outras atividades realizadas no território pela população crioula, como pecuária, afetou os ativos ambientais, impactando as comunidades indígenas em sua maneira tradicional de se alimentar e em seu acesso à água. Isso alterou o modo de vida indígena, prejudicando sua identidade cultural. [20] As recentes decisões de ações em litigância climática reforçam, igualmente, essa natureza de extraterritorialidade da norma constitucional ambiental, [21] como evidenciado nas recentes decisões das cortes constitucionais da Holanda e da Alemanha, nos casos Urgenda [22] (2018) e Neubauer [23] (2020), respectivamente. A própria universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos ambientais dos tratados internacionais e a base científica que os embasa reforçam a conclusão pela transnacionalidade como atributo essencial da norma ambiental advinda de tratado e, por que não, da norma constitucional nacional dentro do conjunto de nações. Se, nas ações Urgenda e Neubauer, vemos as cortes constitucionais holandesa e alemã salvaguardando gerações futuras de holandeses e alemães frente à implementação imediata dos níveis de emissão contratados por esses países no Acordo de Paris, devemos considerar que essa norma – vinda de tratado – tem impacto nas futuras decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Ao analisar as mesmas ou similares arguições de descumprimento, não será diferente a decisão da corte constitucional brasileira. É de se considerar que a jurisprudência das decisões dos tribunais de direitos humanos é cogente para os países signatários, como a CIDH explicitou na sua decisão Asociación Lhaka Honhhat (nuestra terra) v. Argentina. Estas formam uma experiência constitucional geral aos juízes ambientais de todo o mundo, pois baseada principalmente na ciência das mudanças climáticas ou na verdade exarada por um rol de boas práticas em normas ambientais (como relatado pelas Nações Unidas e exposto anteriormente). Essa ideia de que julgados transnacionais sejam jurisprudência ao juiz brasileiro, por exemplo, sofre resistência, ao argumento de que cada país tem a sua soberania. A pergunta central é: pode um juiz brasileiro ou americano, por exemplo, invocar uma jurisprudência global? A resposta é sim, em determinadas condições. Primeiramente, não é qualquer jurisprudência que será invocada, mas jurisprudência exarada por tribunais de cortes transnacionais em direitos humanos e jurisprudência em matéria regulada por tratado transnacional com base científica comum. Como exemplos, citam-se a decisão acima, da CIDH em Asociación Lhaka Honhhat (nuestra terra) v. Argentina, e as decisões Urgenda e Neubauer. Explico. Na decisão da CIDH sobre a Asociación Lhaka Honhhat (nuestra terra) v. Argentina, temos uma análise de prática governamental frente a tratados de direitos humanos que tem uma conexão climática, o que torna simples sua aplicação, uma vez que o Brasil e os Estados Unidos aderiram a tal tratado e, portanto, as decisões da CIDH tornam-se cogentes aos signatários. Nas decisões Urgenda e Neubauer, por sua vez, temos um liame mais indireto, mas não menos legítimo, pois a jurisprudência será usada com base no fundamento científico que embasa toda a ciência da litigância climática. Assim, muitas decisões que reflitam a constitucionalidade ou não de um agir diante de uma norma de direito intergeracional climático (densificada em tratado ou em constituição nacional), quando fundamentadas na aplicação de um pacto transnacional e, principalmente, quando fundamentadas nas ciências-base, farão uma jurisprudência “natural” aplicável aos demais signatários para casos climáticos. Não é porque esteja escrito em algum tratado que os juízes devam adotar tal jurisprudência, mas porque é a natureza intrínseca da norma constitucional ambiental ser abrangente a todos os humanos e suas gerações futuras. Dependemos, como povos, de clima e de recursos naturais finitos. Assim, adotar soluções razoáveis de decisões que são exaradas em cortes estrangeiras sobre litígios climáticos já não soa tão estranho. Tem-se que qualquer juiz que esteja diante de uma ação climática idêntica ou similar aos casos estrangeiros já analisados pode julgar com respaldo nas experiências anteriores dessas cortes, ou por conexão de se tratar de corte internacional de direitos humanos, ou por se fundamentar a decisão em ciência-base, que é comum a todos os países. Pois tudo que se produz – com base científica – em jurisprudência constitucional de norma ambiental é transnacional por natureza. Assim, o juiz brasileiro ou americano, diante de um caso similar a Lhaka Honhhat (nuestra terra) v. Argentina ou a Urgenda, tem a mesma legitimidade de aplicação da jurisprudência densificadora da norma de direito intergeracional climático, pois a norma ambiental, quando constitucionalizada ou pactuada transnacionalmente, o é por expressar a universalidade do que veicula. Ao contrário dos que alegam que somente a emenda verde propicia a defesa efetiva do meio ambiente, o simples fato de termos tratados, e eles ensejarem jurisprudência transnacional, poderia suprir a falta de leis ambientais constitucionais específicas, inclusive para prevenção dos danos. Se o Brasil, os Estados Unidos ou a Costa Rica se uniram ao Acordo de Paris, não há que se arguir que a Constituição americana, brasileira ou costarriquenha não possua dispositivos constitucionais precisos de regulação de emissões de gases de efeito estufa, principalmente se atentarmos para a conexão extrema que há entre direito a ambiente saudável e direitos humanos. O simples fato da existência do tratado traz a possibilidade de aplicação da jurisprudência já emitida nessas searas por outros pactuantes. Repiso: porque baseada em direitos universais ou porque baseada em uma ciência que já é capaz de antecipar os riscos danosos e quiçá irreversíveis das mudanças climáticas. Esse fenômeno da formação de jurisprudências globais como consequência advinda do “juiz mundializado” [24] foi bem estudado já nos anos 1990 por Antoine Garapon: Uma revolução jurídica. A introdução de um nível jurídico superior à lei nacional provocou uma verdadeira revolução jurídica, no próprio sentido da palavra, quer dizer, uma rotação ao final da qual os elementos passam a ocupar posições exatamente opostas. O soberano, que ainda ontem era o último recurso, viu-se subordinado a uma instância superior, diante da qual todos os seus atos são passíveis de serem revistos. A justiça, que era um órgão do Estado, passa subitamente a encarnar o foro de legitimidade do qual procede o Estado. A vontade geral não pode mais pretender ter o monopólio da produção de direito, mas deve se tornar compatível com os princípios contidos nos textos básicos, que são a Constituição, o Tratado de Roma, e depois o Tratado de Maastrich, a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos Humanos e outras convenções internacionais. O direito não está mais, portanto, à disposição da vontade popular. A soberania de representantes do povo vê-se freada por princípios encontrados nesses diferentes textos de enunciado claro e conciso e de forte densidade moral. A lei tem agora dois senhores: o soberano, que lhe dá consistência, e o juiz, que a sanciona visando a sua conformidade aos textos básicos e acolhendo-a na ordem jurídica. Não se trata de uma oposição entre o soberano e um inimigo externo, mas entre duas condições da vontade do soberano, expressas por titulares diferentes. Esses princípios comuns são a base de um novo pacto entre as nações. Esses textos tornam-se a fonte na qual os juízes buscam diretamente inspiração para seus julgamentos além do Estado que os fez. A universalização é obra de juristas e igualmente de servidores do Estado, os quais temem uma diluição de suas prerrogativas. A justiça supranacional exerce um poder integrador considerável, a se julgar, por exemplo, sua influência no artigo 6-1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, relativo ao processo de equidade. Ela não tende mais a uniformizar os diferentes direitos nacionais, mas a torná-los compatíveis entre si. Melhor ainda, o direito comunitário e a jurisprudência da corte de justiça das comunidades europeias lançam as bases de uma cultura comum que permite às diferentes culturas comunicar-se entre si e até mesmo emancipar-se de um grande domínio estatal. [25] É justamente por advir desse atributo universal e incontornável para a sobrevivência humana digna que a jurisprudência em matéria de litigância climática ganha uma dimensão autônoma, até em hipóteses de regressão de direitos constitucionalmente consagrados. Se lutamos por emendas verdes, lutamos também por mantê-las em legislações avançadas em conquistas ambientais, como o é a Constituição brasileira de 1988. Qualquer regresso ou retrocesso que um congresso nacional faça de um direito – direito esse que continua respaldado em pacto internacional climático ou de direitos humanos – poderia, com base nessa jurisprudência global que avança, ser rechaçado por juízes nacionais desse mesmo congresso que eliminou direitos. Não há inconstitucionalidade ou invenção judicial aí, mas somente a verificação de que um congresso não pode capitular sua civilidade. Sua civilidade ambiental não se desvencilha dos tratados assinados. Vemos assim que, positivada ou não, nacional ou subnacionalmente, a norma de direito intergeracional climático possui existência independentemente da densificação legislativa ou pactual que possua em seu Estado nacional, porque a base já não é nacional, mas uma orquestração internacional de tratados. E mesmo que assim não fosse, mesmo que, numa hipótese de trabalho, exigíssemos que a cláusula constitucional verde devesse ser clara em cada constituição ou em cada carta, ainda assim essa cláusula de existência cairia por terra, pois ela não é produto do pacto político, mas causa deste. A green amendment não precisa estar expressa nas constituições para ter a defesa dos direitos ambientais efetivada, pois ela é constituinte do próprio pacto social. Ela aflora do acordo político que forma as nações. A norma de direito intergeracional climático não é somente constitucional, ela é principalmente constitutiva dos Estados. É esse o grande ponto que as grandes ações em litigância climática começam a perceber. 1.3 A proteção climática como norma constitutiva dos Estados – o pacto social sob a ótica climática A regulação do meio ambiente – a fim de possibilitar a vida humana sustentável – é parte intrínseca do próprio pacto social. Se conceituamos Estado como um conjunto de povos ou povo que subsiste em um território determinado ou determinável e possui identificação entre si, será que a norma de regulação climática traz algo novo? Ou faz parte de um conceito maior de intergeracionalidade que é adjacente ao próprio pacto político? Da leitura da teoria política formadora do Estado de direito de Rawls [26] – que podemos dizer que foi um densificador dos imperativos categóricos de Kant –, a resposta que se depreende é direta: se o experimento mental que leva as pessoas a escolher determinadas instituições para a sua sociedade é feito por seres racionais – mesmo que as pessoas não saibam, pelo véu da ignorância, em que estamento e em que circunstâncias estarão ao final do experimento –, nenhum pacto político pode prescindir da vida ou do substrato da vida que perpetua as gerações e o próprio pacto político. Para a teoria rawlsiana, a vida é um requisito racional tão forte para o pacto político que facilmente o Estado estaria em risco de ruptura se o justo direito ou a justa norma não fosse salvaguardado no pacto inicial para assegurar a vida. E a existência de uma paz para além da kantiana, o que ele chama paz democrática, [27] a fim de que a sociedade internacional de povos seja justa e equânime: A sociedade dos povos é possível. No parágrafo 1.1, eu disse que a filosofia política é realisticamente utópica quando amplia o que normalmente pensamos ser os limites da possibilidade política prática. Nossa esperança para o futuro baseia-se na crença de que as possibilidades de nosso mundo social permitem a uma sociedade democrática constitucional viver como membro de uma sociedade de povos razoavelmente justa. Um passo inicial para nos reconciliarmos com o nosso mundo social é perceber que tal sociedade de povos é realmente possível. [28] O perigo de perecimento em razão de adventos climáticos extremos somente estaria aflorando esse elemento do pacto que protege a vida. O cimento do pacto político é a sobrevivência humana, e, mais modernamente, a sobrevivência com dignidade e justiça (também ambiental). Se hoje temos a regra de direito ambiental climático em nossas constituições e tratados, não devemos esquecer que ela vem de muito longe, de uma construção de direitos que é pré-sociedade de direito e que tem sobrevivência própria. Assim, condicionar a defesa da norma de direito ambiental climático para um determinado povo ou determinados seres vivos (porque, sim, os demais seres vivos têm direito a uma existência digna) à previsão da emenda verde pelas constituições é um erro de não conhecer a ciência política por trás das leis. Os pactos que fundam Estados não são somente iniciais, eles se renovam e se perpetuam, e também se rompem se o equilíbrio de forças e a realidade da vida se rompem. Esse direito à vida e à perpetuação das gerações de seres é pré-pactual. É anterior às sociedades e sustenta o pacto político se respeitado, independentemente do status que tenha nas legislações internas dos países o respeito ao meio ambiente saudável. 1.4 A norma de direito intergeracional climático Por todos esses atributos indicados anteriormente, essa norma constitucional deve ser entendida como uma “norma de direito intergeracional climático”, qual seja, a norma constitucional advinda de tratados ou constituições soberanas, que veicula verdades universais no que tange a direitos humanos e prognósticos científicos, para a sobrevivência da atual e das futuras gerações. Sua interpretação é exarada por tribunais de direitos humanos ou tribunais constitucionais internos, o que forma uma jurisprudência global, acessível e aplicável por legisladores e juízes, tanto interna quanto externamente ao sistema constitucional de normas. Assim, a norma que surge de constituições estaduais e federais e de protocolos ratificados pela maioria dos países na seara transnacional (Rio92, Quioto e Paris), que passamos a denominar, por uma necessidade científica de maior definição e clareza, como “norma de direito intergeracional climático”, possui as seguintes características: a) É uma norma que nasce com o pacto social, possuindo a mesma força fundamentante e constitutiva de pacificar e organizar as forças sociais que se unem em um Estado para desenvolver objetivos comuns e para benefício mútuo, e, portanto, essencial para a estabilidade do pacto. b) Tem como objeto ser uma norma de natureza constitucional que veicula verdades universais no que tange a direitos humanos e prognósticos científicos, para a sobrevivência da atual e das futuras gerações. c) Em razão de ser uma norma constitutiva do Estado, ela necessariamente não precisa estar escrita em uma constituição nacional ou estadual para ser seguida. Sua força normativa vem do direito universal à vida e, também, dos pactos transnacionais que a salvaguardam no âmbito internacional, pela mera aderência dos países signatários e pela ratificação pelos parlamentos nacionais. O ingresso nos pactos transnacionais já densifica internamente nos Estados signatários o comando da norma de direito intergeracional climático com que o país nacional se comprometeu. Os países podem ser condenados por ações e omissões que confrontem o acordo internacional ao qual aderiram. d) Da transnacionalidade, que é atributo da norma de direito intergeracional climática, se depreende que a interpretação exarada por tribunais de direitos humanos ou tribunais constitucionais internos forma uma jurisprudência global, acessível e aplicável por legisladores e juízes, tanto interna quanto externamente ao sistema constitucional de normas. e) A norma de direito intergeracional climático é parte de um novo ramo de ciências jurídicas e sociais que se chama direito intergeracional e que versa sobre o impacto das normas jurídicas e das legislações nas responsabilidades da atual geração para com as gerações futuras e com a própria vida. [29] 2 O papel do Judiciário no constitucionalismo ambiental As mudanças climáticas são consideradas como um dos principais desafios enfrentados pela sociedade atualmente. [30] Como bem recordam James R. May e Erin Daly ao redigir o Judicial handbook (2017) encomendado pela ONU para introduzir juízes de todo o mundo ao fenômeno do constitucionalismo global ambiental: O papel do Judiciário no constitucionalismo ambiental no estado atual das coisas revela uma falha geral do sistema legal para proteger a humanidade do colapso dos recursos naturais finitos pela busca descontrolada dos lucros de curto prazo. O Judiciário moderno tem se enfraquecido ao ponto de que a aplicação da lei raramente pode ser realizada levando predadores ambientais ao tribunal. [31] Não há mais a ficção de que um Estado como o americano ou o brasileiro faça parte ativamente do Acordo de Paris, quando os legisladores ou os juízes que aplicam a razão pública (Rawls) ou seu sistema de normas (Alexis) descartam a aplicação do acordo ao argumento de qualquer tese desenvolvimentista vazia. Embora a era Trump tenha marcado a visão de muitos americanos na adesão à norma de direito internacional que é o Acordo de Paris, [32] ou a tese de eterna recessão econômica sempre esteja à espreita do juiz brasileiro quando se depara com uma ação ambiental ou climática, o certo é que, ao ser signatário do referido pacto, tanto o Estado-nação quanto seus agentes não podem mais analisar suas demandas sem ser sob a ótica da redução das emissões de carbono e da descarbonização, para dar somente um exemplo. A norma de direito intergeracional climático que submete os países signatários de vários acordos internacionais a tecer essa grande constituição global climática deve ser o norte de cada juiz. Isso foi decidido recentemente pela Juíza Federal Rahmeier ao acatar que o licenciamento de usinas termelétricas no Estado do Rio Grande do Sul deve se submeter às políticas em curso sobre mudança do clima. [33] A juíza decidiu que a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), Lei nº 12.187/09, e as diretrizes da Lei Estadual nº 13.594/10, que criou a Política Gaúcha sobre Mudanças Climáticas (PGMC) – normas que densificam dentro do Brasil o Acordo de Paris –, não podem mais ser contornadas em qualquer análise judicial com repercussão ambiental. Igualmente, é o que temos na decisão americana de Pennsylvania Environmental Defense Foundation v. Commonwealth of Pennsylvania (Supreme Court of Pennsylvania 2017), em que os juízes, conduzidos pelo voto do Juiz Federal (Justice) Donohue, entenderam pela constitucionalidade de decretos estatutários relativos a recursos gerados a partir do arrendamento de florestas e parques estaduais para exploração e extração de petróleo e gás (xisto). A corte afirmou que os parques e as florestas estaduais, incluindo os minerais de petróleo e gás neles, fazem parte do corpus do patrimônio público ambiental da Pensilvânia, e considerou que a Commonwealth, como fiduciária, deve administrá-los de acordo com a linguagem simples da emenda constitucional da Constituição da Pensilvânia, que, em 1971, reconheceu – formal e vigorosamente – seus direitos ambientais como proporcionais aos seus direitos políticos e individuais mais sagrados. O julgado considera que a linguagem constitucional controla – e molda – como a Commonwealth (que podemos traduzir para o direito brasileiro como os agentes públicos a quem se dirige a norma ambiental) pode dispor de quaisquer receitas geradas com a venda de recursos naturais públicos comuns: Não é um acidente histórico que a Constituição da Pensilvânia agora coloque os direitos ambientais dos cidadãos no mesmo nível de seus direitos políticos. Aproximadamente três séculos e meio atrás, o pinheiro branco, a cicuta oriental e as florestas mistas de madeira de lei cobriam cerca de 90 por cento da superfície da Comunidade, de mais de 20 milhões de acres. Dois séculos depois, o estado experimentou um boom da indústria de colheita de madeira que, em 1920, deixou grande parte da Pensilvânia estéril. “Os madeireiros mudaram-se para a Virgínia Ocidental e para os estados dos lagos, deixando para trás milhares de hectares sem árvores devastados”, abandonando as serrarias e anunciando a morte de cidades outrora vibrantes. A regeneração de nossas florestas (menos a diversidade de espécies) levou décadas. (...) O terceiro evento ambiental de grande importância foi a exploração industrial dos campos de carvão da Pensilvânia, de meados do século XIX até o século XX. Durante esse tempo, a indústria do carvão e a indústria do aço que alimentava eram a pedra angular da economia cada vez mais industrializada da Pensilvânia. Os dois setores forneceram empregos para um grande número de pessoas e proporcionaram enormes oportunidades para pequenos e grandes investidores. “[Quando] o carvão era um monarca reinante”, a indústria operava “virtualmente sem restrições” pelo governo estadual ou federal. O resultado, na opinião de muitos, foi devastador para o ambiente natural das regiões ricas em carvão da Comunidade Britânica, com efeitos duradouros na saúde e na segurança humanas e na beleza estética da natureza. Esses efeitos negativos incluem bancos de carvão com fuligem suave ou não queima em chamas e resíduos; incêndios em minas subterrâneas; poluição das águas pela drenagem ácida de minas; subsidência do solo; e paisagens marcadas por fossos de mineração e represas de água ácida. Em meados da década de 1960, a Commonwealth iniciou um grande empreendimento para recuperar mais de 250.000 acres de minas de superfície abandonadas e cerca de 2.400 milhas de riachos contaminados com drenagem ácida de mina, que não atendiam aos padrões de qualidade da água. O custo dos projetos até agora tem sido da ordem de centenas de milhões de dólares, e o Departamento de Proteção Ambiental previu que cerca de 15 bilhões de dólares são de fato necessários para resolver o problema de recuperação de minas abandonadas sozinho. Queimamos e marcamos nossa terra antes verde e agradável com operações de mineração. Poluímos nossos rios e córregos com drenagem ácida de minas, com resíduos industriais, com esgoto. Envenenamos nosso ar “delicado, agradável e saudável” com a fumaça das siderúrgicas e dos fornos de coque e com a fumaça de milhões de automóveis. Nós destruímos nossas rodovias através de campos férteis e prósperos bairros da cidade. Cortamos nossas árvores e erguemos monstruosidades ao longo de nossas estradas. Nós enaltecemos nossa terra e chamamos isso de progresso. O fato de a Pensilvânia deliberadamente ter escolhido um curso diferente de praticamente todos os seus estados irmãos mostra a experiência da Comunidade em ter o benefício de vastos recursos naturais cuja exploração virtualmente desenfreada, embora inicialmente uma bênção para investidores, indústria e cidadãos, levou a consequências destrutivas e duradouras não só para o ambiente, mas também para a qualidade de vida dos cidadãos. As gerações posteriores pagaram e continuam a pagar um tributo ao desenvolvimento inicial não controlado e insustentável financeiramente, nas consequências para a saúde e a qualidade de vida e com o rebaixamento aos livros de história de valiosos aspectos naturais e estéticos de nossa herança ambiental. Os redatores e os cidadãos da Comunidade que ratificaram a Emenda dos Direitos Ambientais, cientes dessa história, articularam o direito do povo e os deveres do governo para com as pessoas em termos amplos e flexíveis que permitiriam não apenas a proteção reativa, mas também antecipatória do meio ambiente para o benefício das gerações atuais e futuras. Além disso, as funções de administrador público foram delegadas concomitantemente a todos os ramos e níveis de governo em reconhecimento de que a qualidade do meio ambiente é uma tarefa com implicações locais e estaduais, e para garantir que todo o governo não infringisse os direitos do povo nem deixasse de agir por ser o benefício das pessoas nessa área crucial para o bem-estar de todos os habitantes da Pensilvânia. (...) A confiança ambiental da Pensilvânia, portanto, impõe duas obrigações básicas à Commonwealth como fiduciária. Em primeiro lugar, a Comunidade tem o dever de proibir a degradação, a diminuição e o esgotamento de nossos recursos naturais públicos, quer esses danos possam resultar de ação direta do estado, quer de ações de partes privadas. Robinson Twp., 83 A.3d em 957. Segundo, a Comunidade deve agir afirmativamente por meio de ação legislativa para proteger o meio ambiente. [...] Não pode haver dúvida de que a própria emenda declara e cria uma confiança pública dos recursos naturais públicos para o benefício de todas as pessoas (incluindo as gerações futuras ainda não nascidas) e de que a Comunidade se torna o depositário desses recursos, com a ordem de conservá-los e mantê-los. Nenhuma legislação de implementação é necessária para enunciar esses objetivos amplos e estabelecer essas relações; a emenda o faz por seu próprio ipse dixit. [...] A Commonwealth (incluindo o governador e a Assembleia Geral) não pode abordar nossos recursos naturais públicos como um proprietário e, em vez disso, deve sempre cumprir seu papel de administrador. Como os atos legislativos em questão aqui não refletem que a Commonwealth cumpriu seus deveres constitucionais, a ordem do Tribunal da Commonwealth com relação à constitucionalidade de 1602-E e 1603-E foi revertida e a ordem foi anulada em todos os aspectos. O caso é devolvido ao Tribunal da Commonwealth para procedimentos adicionais consistentes com este parecer. [34] A citação é um pouco longa justamente para delinear o turning point, a virada dos direitos ambientais nos Estados Unidos e no mundo, quando juízes se deparam com a norma de direito intergeracional climático, seja inscrita em uma constituição estadual ou federal, seja prevista em tratado, e quando veem as verdades científicas dolorosas de uma possível extinção [35] por não agirmos a tempo. Os motivos são que não podemos mais jogar fora recursos naturais em detrimento de qualquer desenvolvimento. Somente o desenvolvimento que for sustentável e em consonância com o que a ciência coloca como necessário (IPCC) pode ser admitido como legítimo e legal aos ordenamentos regidos pela norma de direito intergeracional climático. A PEC 233/2019, proposta de emenda à Constituição brasileira para incluir o termo “manutenção da estabilidade climática” nos princípios de ordem econômica, portanto, é mais de ordem a mostrar nossa disposição como povo a ajudar na redução das emissões do que propriamente algo necessário para que se reconheça a jurisprudência que assegura tais níveis em âmbito interno. A jurisprudência global é plenamente aplicável por qualquer juiz interno que queira se basear no que foi decidido numa ação como Neubauer ou Urgenda. E nossa data-base brasileira de litigância climática, a Jusclima, também tem aplicação externa. [36] A ratificação pela maioria dos países de protocolos como os da Rio 92, de Quioto e de Paris – por si só – sela nosso destino comum: não podemos mais contornar a norma de direito intergeracional climático, sob pena de uma sexta extinção. [37] Conclusão Discorremos ao longo deste artigo sobre o significado da norma de direito intergeracional climático e sua autoaplicabilidade, por tratado ou por positivação interna, por juízes de todo o mundo. Movimentos da sociedade civil que buscam inserir garantias constitucionais são importantes para ressaltar o quanto determinado povo está engajado em ver a salvaguarda das normas de direito intergeracional climático que acham mais relevantes. Mas sua positivação ou densificação em constituições nacionais não é imprescindível para que a garantia do que em direito internacional ele protege seja alcançado. Isso porque a norma de direito intergeracional climático tem uma dimensão pré-pactual, que forma e constitui o pacto político, o que significa e ressignifica o viver e estar em sociedade num Estado-nação. Ela pressupõe ser uma norma constitucional advinda de tratado ou constituições soberanas, que veicula verdades universais e protege direitos humanos e uma sobrevivência comum para a atual e as futuras gerações. Sua interpretação é exarada por tribunais de direitos humanos ou tribunais constitucionais internos, o que forma uma jurisprudência global, acessível e aplicável por legisladores e juízes tanto interna quanto externamente ao sistema constitucional de normas. Pensar que as cláusulas verdes são necessárias para a salvaguarda total de direitos contra as mudanças climáticas e direitos contra um ambiente insustentável à vida equivaleria a dizer que a retirada de tal emenda de uma constituição invalidaria a implementação da norma de direito intergeracional climático que ela salvaguardaria. E isso não é mais verdade. Vivemos cada vez mais regidos por um direito globalizado cujas garantias são igualmente asseguradas por um sistema de freios e contrapesos que são confeccionados por jurisprudências e julgados internacionais. Se a Amazônia queima e o povo indígena que dela depende denuncia que as salvaguardas legais e constitucionais não mais funcionam, nacionalmente falando, ainda assim a norma de direito intergeracional climático que subsiste nos pactos de que o Brasil é signatário conferiria efetividade ao comando de proteger a floresta e o povo originário que por centenas de gerações nela habita. Forma-se uma teia de julgados que, ao retirar um pouco a soberania de Estados individualmente, confere uma força implacável à perpetuação comum a que visam os pactos transnacionais. Referências bibliográficas ADLER, D. US climate change litigation in the age of Trump: year two. Sabin Centre for Climate Change Law. Columbia Law School, 2019. Disponível em: http://columbiaclimatelaw.com/files/2019/06/Adler-2019-06-US -Climate-Change-Litigation-in-Age-of-Trump-Year-2-Report.pdf. BAUER, Luciana; SEVEGNANI, Ana. Litigância ambiental: uma ética ambiental para o novo milênio. Revista da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região, Porto Alegre, a. 7, n. 18, p. 49-72, jul. 2021. Disponível em: https://www.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/2021/uli72_revemagis18-49-72.pdf. Acesso em: 30 ago. 2021. BRAZILIAN DATABASE CLIMATE CASES. National Council of Justice’s JusClima 2030 project. Disponível em: https://jusclima2030.jfrs.jus.br/litigio/. Acesso em: 30 ago. 2021. CARVALHO, Délton Winter. 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The public trust doctrine in natural resource law: effective judicial intervention. Michigan Law Review, v. 68, n. 3, p. 471-566, 1970. [4] MONTANA ENVIRONMENTAL INFORMATION CENTER; Clark Fork-Pend Oreille Coalition; Women’s Voice for the Earth, Plaintiffs and Appellants v. DEPARTMENT OF ENVIRONMENTAL QUALITY, Defendant and Respondent, Seven-Up Pete Joint Venture, Defendant-Intervenor and Respondent. Supreme Court of Montana decided October 20, 1999. Disponível em: https://caselaw.fi ndlaw.com/mt-supreme-court/1480261.html. Acesso em: 30 ago. 2021. [5] ROSSUM, Maya K. Van. The green amendment: securing our right to a healthy environment. Austin: Disruption Books, 2017. p. 45-66. [7] CAPE-FRANCE ENTERPRISES, A Montana Partnership, Plaintiff and Respondent v. The ESTATE OF Lola H. PEED, a/k/a Lola Peed, f/k/a Lola H. Johnson, Deceased and Marthe E. Moore, Defendants and Appellants. Supreme Court of Montana decided: August 02, 2001. Disponível em: https://caselaw.findlaw.com/mt-supreme-court/1368568.html. Acesso em: 30 ago. 2021. [8] ROSSUM, Maya K. Van. The green amendment: securing our right to a healthy environment. Austin: Disruption Books, 2017. p. 45-66. Tradução nossa. [9] ROSSUM, Maya K. Van. The green amendment: securing our right to a healthy environment. Austin: Disruption Books, 2017. p. 215. [13] MAY, James R.; DALY, Erin. Judicial handbook on global environmental constitutionalism (United Nations Environment 2017). p. 7-9. Tradução nossa. [16] CARVALHO, Délton Winter. Constitucionalismo climático: a tridimensionalidade do Direito das Mudanças Climaticas. Revista de Direito Internacional da UNICEUB (no prelo). [17] CARVALHO, Délton Winter. Constitucionalismo climático: a tridimensionalidade do Direito das Mudanças Climaticas. Revista de Direito Internacional da UNICEUB (no prelo). [21] CARVALHO, Délton Winter. Constitucionalismo climático: a tridimensionalidade do Direito das Mudanças Climaticas. Revista de Direito Internacional da UNICEUB (no prelo). [24] Nome de uma obra famosa de Antoine Garapon. [25] GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Traduzido por Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 43-44. [26] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Traduzido por Almiro Pisatta e Lenita Maria Rimoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002. [27] RAWLS, John. O direito dos povos. Traduzido por LuisCarlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 62. [28] RAWLS, John. O direito dos povos. Traduzido por Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 162-163. [31] MAY, James R.; DALY, Erin. Judicial handbook on global environmental constitutionalism (United Nations Environment 2017). [33] “A inclusão nos termos de referência que tratam dos processos de licenciamento de usinas termelétricas no Rio Grande do Sul das diretrizes legais previstas na Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), Lei nº 12.187/09, e das diretrizes da Lei Estadual nº 13.594/10 – que criou a Política Gaúcha sobre Mudanças Climáticas (PGMC) –, sobretudo quanto à necessidade de realização de avaliação ambiental estratégica, nos termos do art. 9º da referida lei estadual, e quanto à necessidade de inclusão de análise de riscos à saúde humana”. Decisão da Juíza Rahmeier em 31 de agosto de 2021 na apreciação de preliminar em Ação Civil Pública 5030786-95.2021.4.04.7100/RS. Disponível em: www.jfrs.jus.br. [35] KOLBERT, Elizabeth. A sexta extinção: uma história não natural. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015. [37] KOLBERT, Elizabeth. A sexta extinção: uma história não natural. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015. |