Resumo O novo modelo de formação judicial proposto pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) para a magistratura nacional centrado em um projeto pedagógico que visa ao desenvolvimento de competências desejáveis de um magistrado para uma prestação jurisdicional de qualidade, tendo como pressupostos a ética e o humanismo como princípios norteadores de toda ação formativa e a interdisciplinaridade no tratamento do conteúdo, constituiu o fator motivacional da pesquisa de mestrado realizada, que teve como principal propósito a identificação das competências judiciais a serem requeridas dos magistrados. A investigação contou com uma abordagem de aporte qualitativo exploratório e outra quantitativa conclusiva para validação das hipóteses formuladas pela pesquisa qualitativa. O público-alvo foi constituído de magistrados federais e estaduais de alguns tribunais federais e de justiça do país, sendo os dados coletados por meio de entrevistas semiestruturadas (parte qualitativa) e questionário estruturado (parte quantitativa). Os dados foram analisados, no seu aporte qualitativo, por meio da técnica de Análise Textual Discursiva; e na parte quantitativa, por meio de análises estatísticas descritivas e multivariadas. Foram identificados quatro grupos de competências judiciais: competências sociocomunicativas, administrativas e organizacionais, técnico-jurídicas e pessoais. A importância da identificação dessas competências é a de conferir parâmetros seguros para embasar os processos de seleção e formação da magistratura nacional. Palavras-chave: Magistrados. Seleção. Formação. Competências. Abstract The new model of judicial training proposed by the National School for the Training and Improvement of Magistrates (ENFAM) for national magistrates centered on a pedagogical project that aims at the development of desirable competencies of a magistrate for a quality jurisdictional work, having as premises ethics and humanism as guiding principles of all formative action and interdisciplinarity in the treatment of content, was the motivating factor of the master's research carried out in order to identify what judicial competencies would be required of magistrates. The investigation had an exploratory qualitative approach and a conclusive quantitative one to validate the hypotheses formulated in the qualitative research. The target audience was composed of federal and state magistrates from some Brazilian federal and state courts of justice. The data were collected through semi-structured interviews (qualitative part) and structured questionnaire (quantitative part). The data were analyzed, in their qualitative portion, using the Discursive Textual Analysis technique; and in the quantitative part, through descriptive and multivariate statistical analyzes. Four groups of judicial competencies were identified: socio-communicative, administrative and organizational, technical-legal and personal competencies. The importance of identifying these competencies is to ensure safe parameters to support the selection and training processes of the national magistrates. Keywords: Magistrates. Selection. Formation. Competencies. Introdução A expressiva visibilidade alcançada pelas decisões judiciais na atualidade tanto no Brasil quanto no mundo inteiro, seja quando revestidas de um caráter político no tempo em que buscam cumprir os fins sociais ínsitos em um Estado Democrático de Direito, seja durante o tempo em que atuam como guardiãs da lei e da ordem com o intuito de assegurar a paz social, tem acarretado uma mudança significativa quanto às expectativas dos cidadãos em relação aos seus julgadores. Por conseguinte, somente um apurado conhecimento jurídico já não é suficiente para atender às complexas demandas sociais que aportam aos tribunais diariamente, e outras competências têm sido requisitadas desses juízes. Além do que é preciso ter presentes as palavras tão bem expressas de Waine Martin [1] quando afirma que: [...] a independência do Judiciário depende da aprovação e da confiança do cidadão. A confiança pública depende de quão eficientemente os juízes realizam seu trabalho de dizer a justiça [...] e a educação judicial tem o importante papel de assistir as cortes, formando e treinando juízes capazes de melhorar a qualidade da prestação jurisdicional. No caso específico do Brasil, é oportuna, portanto, a determinação expressa pelo legislador na Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, tornando obrigatórios a formação inicial de juízes no período do vitaliciamento [2] e o aperfeiçoamento permanente ao longo da carreira; [3] e criando a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) [4] com a missão de implantar um projeto nacional de formação e aprimoramento dos magistrados brasileiros fundado na ética, no humanismo e na interdisciplinaridade do conhecimento. Contudo, há que se ressaltar que essa preocupação com a capacitação judicial está presente no planejamento das principais nações no mundo inteiro no sentido de que o Judiciário possa prestar uma jurisdição de qualidade e que atenda de forma efetiva às reais necessidades da sociedade contemporânea. O próprio Conselho Consultivo dos Juízes Europeus [5] bem destacou em documento que a formação dos juízes constitui um pré-requisito “se o Judiciário deseja ser respeitado e fazer valer esse respeito”. Países como França, Estados Unidos, Canadá e Austrália dispõem de órgãos institucionais focados em formar e capacitar seus magistrados não só em matérias dogmáticas, mas buscando sobretudo novos paradigmas pedagógicos com vista a desenvolver outras habilidades e atitudes em seus julgadores, como bem aponta o Projeto Leonardo da Vinci [6] : [...] o foco do treinamento inicial é o de não somente aumentar o conhecimento teórico entre os novos juízes e procuradores, mas sobretudo ensiná-los como manejar e pôr em prática a teoria adquirida previamente a fim de desenvolver as habilidades requeridas de um magistrado. 1 O projeto nacional de formação de magistrados proposto pela ENFAM Pautado nesse mesmo propósito, e compreendendo que as transformações ocorridas no mundo nas últimas décadas, alavancadas especialmente pelo desenvolvimento tecnológico, têm demandado que os magistrados atuem em cenários cada vez mais complexos nos quais o conhecimento jurídico por si só já não basta, o projeto nacional de formação judicial proposto pela ENFAM carrega consigo essa conjectura: Dos juízes é exigido que saibam compreender e trabalhar as questões complexas da sociedade contemporânea; que sejam capazes de identificar e posicionar-se criticamente frente aos valores sociais e jurídicos envolvidos nas questões sob sua apreciação; que saibam se comunicar; que dialoguem e firmem boas relações interpessoais (com advogados, partes, servidores, mídia e outras instituições); que sejam capazes de gerir seu próprio trabalho e sua unidade jurisdicional; e que se aprimorem e tenham autocrítica, entre outros saberes e fazeres. [7] Da mesma forma, é importante destacar que esse novo projeto de formação da magistratura nacional encontra eco nas palavras de Jorge Wertheim, que, ao prefaciar a obra de Edgar Morin (2000) Os sete saberes necessários à educação do futuro, declara que o Relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o Século XXI, organizado por Jacques Delors, acertou quando afirma que a educação contemporânea deve ser estabelecida sobre quatro pilares: “aprender a ser, a fazer, a viver juntos e a conhecer”. E conclui dizendo que “uma educação só pode ser viável se for uma educação integral do ser humano. Uma educação que se dirige à totalidade aberta do ser humano, e não apenas a um dos seus componentes”. Nessa linha, o projeto pedagógico da ENFAM defende uma educação judicial que tem, segundo o texto de suas diretrizes pedagógicas, [8] os seguintes pressupostos: [...] a prática jurisdicional como ponto de partida para a seleção e a organização de conteúdos, superando a lógica que rege as abordagens disciplinares, que expressam a fragmentação da ciência e a sua separação da prática; os princípios metodológicos de articulação entre teoria e prática, entre parte e totalidade e entre disciplina e transdisciplinaridade; a integração entre saber tácito e conhecimento científico; entre conhecimentos e habilidades básicas, específicas e de gestão; a transferência de conhecimentos e experiências para novas situações. Esses pressupostos derivam-se da natureza do processo de educação profissional, cujo foco é o desenvolvimento de competências, e não a formação acadêmica. Dessa forma, a ação formativa da ENFAM tem como princípios orientadores: i) a ética e o humanismo como princípios norteadores de toda ação formativa, ou seja, todos os temas e conteúdos a serem desenvolvidos devem relacionar-se com uma base ética e humanista; ii) a interdisciplinaridade no trato do conteúdo, isto é, superam-se a fragmentação e a disciplinaridade que isolam o conhecimento, privilegiando-se a relação entre o conhecimento jurídico e outras áreas do saber (sociologia, psicologia, história) para a formação do saber; iii) a prática jurídica como ponto de partida para seleção e organização dos conteúdos, isso significa dizer que o conhecimento a ser desenvolvido deve fazer sentido para a atuação individual e coletiva do magistrado; iv) a articulação entre teoria e prática, ou seja, as ações educativas devem possibilitar a estruturação do conhecimento a partir da prática profissional do magistrado. Tem-se, portanto, uma proposta de formação judicial em que se valoriza a qualidade dos processos educativos, os quais devem necessariamente conduzir a construções significativas para a prática da jurisdição e ao desenvolvimento de competências em detrimento da ênfase exclusivamente em conteúdos. 2 Competência: entendendo o conceito e sua importância Importantes estudos e pesquisas têm sido realizados por instituições dedicadas à educação em todo o mundo sobre a compreensão do conceito de competências e a relevância de sua aplicabilidade em processos educativos. Um relevante documento germinal a esse respeito denominado DeSeCo (Definição e Seleção de Competências-Chave), de autoria da UNESCO, OCDE-CERI, apresenta a seguinte definição de competência: [...] a capacidade de responder às demandas complexas e realizar as várias tarefas adequadamente. É uma combinação de habilidades, práticas, conhecimentos, motivação, valores, atitudes, emoções e outros componentes sociais e comportamentais que são mobilizados conjuntamente para alcançar uma atuação eficaz. (ORGANIZACIÓN PARA LA COOPERACIÓN Y EL DESARROLLO ECONÓMICO, 2002 apud PÉREZ-GOMES, 2015) A própria Comissão Europeia (The European Commission’s Cedefop Glossary, 2008) define competência em seu glossário como sendo formada não apenas de elementos cognitivos (teóricos, conceitos e conhecimento tácito), mas também por aspectos funcionais (habilidades técnicas, atributos interpessoais, habilidades organizacionais e sociais) e valores éticos. O Conselho Nacional de Educação igualmente manifestou-se em parecer [9] a respeito do sentido a ser conferido ao conceito de competência: Para efeitos deste parecer, entende-se por competência profissional a capacidade de articular, mobilizar e colocar em ação valores, conhecimentos e habilidades necessárias para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho. O conhecimento é entendido como o que muitos denominam simplesmente saber. A habilidade refere-se ao saber fazer relacionado com a prática do trabalho, transcendendo à mera ação motora. O valor se expressa no saber ser, a atitude relacionada com o julgamento da pertinência da ação, com a qualidade do trabalho, a ética do comportamento, a convivência participativa e solidária e outros atributos humanos, tais como a iniciativa e a criatividade. Logo, ser competente é saber mobilizar e articular conhecimentos, habilidades e atitudes com vista à solução de problemas que não se restrinjam apenas às atividades rotineiras, mas sobretudo àqueles casos imprevistos, seja no campo de trabalho, seja na vida pessoal. Um estudioso do tema, Perreneud (2002), define competência como caracterizada por três componentes básicos: a pessoalidade, o âmbito e a mobilização. Sustenta que o sentido de competência é pessoal, ou seja, somente pessoas é que podem ser competentes, não existindo qualquer possibilidade de se atribuir competência a artefatos ou objetos. O outro componente tem a ver com o âmbito no qual será exercida: sempre haverá um contexto no qual a competência irá se materializar. O terceiro componente que integra o conceito de competência diz respeito à mobilização do que se sabe, conhece, em prol da realização de uma ação. “As competências constituem, portanto, padrões de articulação do conhecimento a serviço da inteligência.” É importante também destacar que a competência profissional ocorre na prática da atividade laboral, sendo decorrente da conjunção de um saber e de um contexto. “O profissional não é aquele que possui conhecimentos ou habilidades, mas aquele que sabe mobilizá-los em um contexto profissional” (LE BOTERF, 2003). A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados define competência como: [...] a capacidade de agir, em situações previstas e não previstas, com rapidez e eficiência, articulando conhecimentos tácitos e científicos, experiências sociais e de trabalho, comportamentos e valores, desejos e motivações, desenvolvidos ao longo das trajetórias de vida em contextos cada vez mais complexos. [10] 3 Os processos pedagógicos voltados para o desenvolvimento de competências A partir, portanto, dessa nova compreensão dos processos educativos e da importância que adquirem na formação e no aperfeiçoamento profissional, aliada à complexidade das demandas trazidas ao Judiciário e ao impacto das decisões judiciais na vida dos cidadãos, a formação judicial assume papel relevantíssimo e estratégico no âmbito das instituições, sendo necessário repensar os programas de educação judicial tendo como foco o desenvolvimento das competências desejáveis desses magistrados. Hoje, espera-se muito dos magistrados. Espera-se que o juiz seja humano, sensível, interessado em praticar uma justiça muito mais substantiva do que procedimental; que tenha preocupação muito mais com as relações do presente e do futuro do que com a crônica pretérita; que seja capaz de buscar a verdade do conflito e os elementos de uma solução justa pelo exame dos fatos significativos; que saiba flexibilizar a rigidez das regras sempre que elas impedirem a concretização do justo (BELLEY, 1995, p. 113-114). Que seja também um conciliador, que gerencie sua unidade de trabalho com eficiência, que participe de projetos institucionais para o aprimoramento da Justiça. Portanto, novas habilidades e atitudes são requisitadas desses juízes, além do esmerado conhecimento do Direito, cabendo às escolas de magistratura atuar para essa formação, planejando e executando programas em que essas competências, uma vez identificadas, possam ser melhor trabalhadas e desenvolvidas. Para tanto, aposta-se em novas metodologias para esses processos de ensino-aprendizagem: os chamados métodos ativos. O emprego de metodologia ativa adquire especial importância uma vez que favorece o caráter de utilidade e interesse do assunto, as interações dos participantes com base em suas próprias experiências, o papel do magistrado-aprendiz como protagonista da sua própria aprendizagem, tornando os processos de aprendizagem significativos para a prática laboral e possibilitando, assim, o desenvolvimento das competências desejáveis dos julgadores em prol de um Poder Judiciário mais eficiente e efetivo. Segundo ensina Vygotski (1984), a aprendizagem deve ser compreendida como um processo de mediação em que o conhecimento é adquirido por meio da interação entre vários interlocutores e no qual todos os envolvidos são considerados sujeitos ativos. 4 As competências requisitadas de um magistrado A partir da compreensão de que os elementos que integram o conceito de competência são conhecimentos, habilidades e atitudes (BEHAR et al., 2013, p. 26), foi realizada uma pesquisa com o propósito de identificar que elenco de competências (conhecimentos, habilidades e atitudes) relacionadas à prática jurisdicional poderiam ser requisitadas do juiz brasileiro, com base na Constituição Federal, na cultura e nos valores nacionais. Inicialmente, um pequeno grupo de magistrados respondeu perguntas de um questionário semiestruturado cujas respostas foram analisadas por meio de um método de análise textual [11] em uma perspectiva qualitativa da pesquisa, sendo, posteriormente, com base nas hipóteses formuladas pela própria pesquisadora, examinadas em um aporte quantitativo com alargamento do universo de magistrados mediante um questionário composto de questões afirmativas e de escolha direta, visando à testagem das conclusões por meio de variáveis estatísticas. Desse modo, foi possível a identificação de quatro grupos de competências a serem demandadas dos magistrados na sua prática jurisdicional: competências sociocomunicativas, competências administrativas e organizacionais, competências técnico-jurídicas e competências pessoais. É importante ressaltar que o sentido atribuído à competência para apuração das competências judiciais identificadas foi o de que competência corresponde a um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes que integram o aparato pessoal do magistrado e que precisam ser mobilizados para o adequado exercício da jurisdição. Conforme estudos do importante pesquisador australiano Armytage (2015), a competência judicial deve ser assim compreendida: Competência é variadamente definida. Para estes fins, será defendido que competência judicial deve ser vista como o domínio de conhecimentos, habilidades, práticas e disposições (atitudes) para julgamento. Competência é a capacidade de executar uma série de tarefas por meio da aplicação de conhecimentos e habilidades para a resolução de problemas específicos de acordo com determinados padrões, dentro de um quadro de regras de conduta e ética da profissão judiciária. 4.1 Competências sociocomunicativas As competências sociocomunicativas a serem requisitadas de um magistrado identificadas pela pesquisadora estão relacionadas com uma das principais formas de atuação dos juízes na atualidade e, talvez, uma das mais controvertidas. Se, por um lado, os cidadãos esperam que as decisões judiciais possam repercutir em prol da equidade e da justiça social de que tanto necessita uma expressiva parcela carente da sociedade, tendo o juiz o compromisso de atuar como guardião do efetivo cumprimento dos direitos sociais, decidindo, em algumas oportunidades, de forma proativa; de outra banda, tem-se que a característica inerente da ação do juiz é a de que ele somente aja mediante provocação e dentro de um estrito respeito à lei. Essa aparente contradição tem estado presente em grande parte do trabalho do magistrado na prestação jurisdicional na atualidade. Isso se deve ao fato de que a atuação do Judiciário se ampliou de maneira expressiva nas últimas décadas, tendo as decisões judiciais repercutido nas mais diferentes áreas da sociedade (saúde, educação, questões de gênero, religiosas, etc.), justificando dessa forma o chamado “ativismo judicial”. A busca por novos paradigmas hermenêuticos em que haja valorização dos fatos sobre o positivismo das leis e em que a regência se dê sob a batuta do texto constitucional constitui pressuposto fundamental para a efetivação da justiça social, especialmente se confrontada com as profundas desigualdades sociais e a desorganização estrutural existentes. A questão não se trata de propor uma reflexão sobre como se processa a prestação jurisdicional, mas na direção do desvelamento do sentido do direito rumo à busca por novos paradigmas, por novos modelos de pensamento, por novas alternativas, tendo sempre o direito como uma alternativa humana. (CASTANHEIRA NEVES, 1995) Diante desse contexto, perguntado aos magistrados que integraram a pesquisa sobre o papel social da magistratura, obtiveram-se respostas em que é possível comprovar que esse dualismo se faz presente: O papel social da magistratura é relevante, mas deve ser exercido secundariamente, isto é, a justiça social deve ser definida pelo Parlamento, pelos representantes eleitos; o papel social deve ser atuante quando eventualmente o sistema normativo aprovado pelo Parlamento confrontar os direitos e as garantias fundamentais ou for omisso e/ou dúbio, como tem sido a tônica da aprovação de legislação até o presente momento. (M9) O papel social da magistratura é absolutamente relevante, pois nossa tarefa primordial é a justa solução dos conflitos sociais, de modo que o papel social da magistratura, individual e por sua associação de classe, não pode jamais ser negligenciado. A realização da justiça supõe compreensão do meio em que estamos inseridos, notadamente diante das profundas desigualdades sociais e da desorganização estrutural em que nos encontramos. (M8) Igualmente relevante, em razão do pretenso protagonismo experimentado pelo Judiciário na atualidade, está a capacidade do juiz de inter-relacionar-se de forma clara, objetiva e transparente com as partes, os agentes de direito público e privado, entre outros, que integram a lide judicial; e, em especial, com a mídia e com a sua exposição nas redes sociais. No caso específico da mídia, é preciso ter cuidado para que posicionamentos prévios feitos pela população naqueles casos mais contundentes não afetem a capacidade do magistrado de chegar ao justo. Sobre esse tema, Lenio Streck (2013) comentou: Não mais se decidirá conforme o que cada-um-pensa-sobre-o-mundo-e-o-direito, mas, sim, a partir do que diz a doutrina e a jurisprudência, com coerência e integridade. O direito terá um DNA. As denúncias do Ministério Público somente serão deduzidas quando efetivamente existirem indícios. Não bastará juntar reportagens de revistas, por exemplo. E serão recebidas de forma amplamente fundamentada. Contudo, o isolamento do juiz não é algo saudável, e há trabalhos sérios feitos pela mídia investigativa; portanto, deve-se procurar trabalhar no sentido de buscar uma relação saudável com a mídia, mantendo-se uma comunicação clara, segura e transparente com os meios de comunicação sem que isso possa significar qualquer perda de imparcialidade por parte do juiz. Finalizada a análise qualitativa do que seriam as competências sociocomunicativas a serem requeridas do juiz em sua prática jurisdicional a partir da pesquisa realizada, tem-se que: O juiz deve: – atuar como agente de transformação social, e não como instrumento de manutenção a serviço das elites dominantes; – atuar com o compromisso de efetivação dos direitos humanos e das garantias da dignidade da pessoa humana, em cumprimento dos preceitos constitucionais e legais; – inter-relacionar-se de forma clara, transparente e objetiva com as partes, os agentes de direito público e privado, entre outros, que integram o processo judicial; – manter um relacionamento adequado com a mídia e de cautela quanto à exposição nas redes sociais; – exercer a função social da magistratura, embora relevante, dentro dos limites do processo. O “ativismo judicial” não deve ser um fim a ser perseguido; – buscar a construção de um mesmo arcabouço de valores para a organização de um sistema de justiça coerente e uniforme. 4.2 Competências administrativas e organizacionais Este grupo de competências refere-se essencialmente à atuação do magistrado quanto às funções de planejamento, organização, gerenciamento dos processos de trabalho, administração das unidades jurisdicionais, incluindo a gestão de pessoas e de recursos materiais e o desenvolvimento e o fortalecimento de uma network com outros órgãos do sistema de justiça visando justamente a uma eficiente gestão do Poder Judiciário. Apesar de sua relevância para a administração da Justiça, essas atribuições são, muitas vezes, relegadas a um segundo plano dentre as múltiplas funções de que têm que se ocupar os magistrados em seu trabalho jurisdicional. Contudo, a sua falta é apontada como uma das causas da morosidade e da baixa produtividade do Poder Judiciário. Contribui para que essas competências não adquiram um caráter de maior protagonismo para um grande número de magistrados a ausência de uma cultura organizacional. Essa carência, segundo afirmam Wernneck, Carvalho, Melo e Burgos (1997), resulta da inexistência de “uma concepção de corporação institucionalizada hierarquicamente e ordenada pelo seu vértice”. Outro aspecto que também pode ser aludido como fator que contribui para os entraves que dificultam a administração judiciária, nas palavras do desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, é a própria compreensão que uma parte significativa dos magistrados tem do serviço judicial, ou seja: “(...) no Judiciário, a despeito de algumas iniciativas e vozes longe da unanimidade, parece prevalecer a noção de que justiça não é serviço público, mas missão etérea, transcendente e desvinculada de qualquer avaliação”. A quantidade e a heterogeneidade de tribunais e de justiças existentes no território nacional – duas justiças comuns (federal e estadual) e três justiças especiais (do trabalho, eleitoral e militar), isso em mais de uma instância, além dos tribunais superiores, perfazendo um total de 91 tribunais –, além das distintas condições de recursos humanos, materiais e financeiros de cada tribunal e/ou unidade jurisdicional e da herança de uma administração burocrática, fazem com que ainda se observe que é um Judiciário “fortemente hierarquizado, autocentrado e que privilegia formas em detrimento de conteúdo, de resultado efetivo para o jurisdicionado” (FIGUEIREDO, 2014, p. 83). A própria criação do Conselho Nacional de Justiça [12] encontrou e ainda encontra grande resistência de juízes e tribunais com relação ao estabelecimento de metas de produtividade e de outras formas de aferição com relação ao trabalho judicial realizado. Dentre as várias manifestações dos magistrados respondentes da pesquisa sobre as competências judiciais referente ao tema, destaca-se a seguinte: A meu sentir, a figura do juiz é indissociável da figura do administrador da vara. Essas duas atividades estão numa só pessoa e são inseparáveis. O profissional julgador é também – e ao mesmo tempo – o profissional administrador. Por isso é fundamental buscar formação não apenas em matérias de direito, mas também em gestão. (M5) Assim, a partir do exame das respostas dos magistrados que integraram esta pesquisa, foi possível identificar este rol de competências administrativas e organizacionais a serem requisitadas dos juízes no tocante à administração da justiça. O juiz deve: – utilizar, para otimização de julgamento de processos sob sua jurisdição, critérios de organização como antiguidade, tempo de conclusão para sentença, entre outros; – estabelecer metas de produtividade levando em conta o contexto e as necessidades do local de jurisdição; – ter um tratamento digno e respeitoso com os servidores, incentivar o seu aperfeiçoamento e flexibilizar seus turnos de trabalho, desde que isso não implique perda de produtividade; – procurar estabelecer um ponto de equilíbrio entre a qualidade e a quantidade de suas decisões tendo como foco a resolução de conflitos; – participar de projetos estratégicos como conciliação, gestão documental, responsabilidade ambiental e/ou de direção como forma de maior integração institucional; – utilizar ferramentas de gestão como instrumentos para obtenção de melhor organicidade da unidade de trabalho: fixação de metas de produtividade, distribuição da força de trabalho, alocação de recursos, etc. 4.3 Competências técnico-jurídicas Este conjunto de competências identificadas pelos magistrados participantes da pesquisa diz respeito fundamentalmente ao domínio do conhecimento do direito que, em sentido lato, trata da aplicação das normas como único caminho possível para a correta e adequada solução dos conflitos sociais, ou seja, o trabalho jurisdicional é entendido como “se a única possibilidade de vivenciar a experiência jurídica fosse o processo judicial” (NALINI, 2015, p. 121). Nesse sentido, foram igualmente apontados como pertencentes a este rol: a utilização dos mecanismos de julgamento como súmulas vinculantes e julgados de repercussão geral pelos magistrados; a tomada de decisões levando em conta as consequências delas decorrentes; as soluções autocompositivas e heterocompositivas dos conflitos; o uso das novas tecnologias e a linguagem jurídica. Fica latente que, para esse conjunto de competências judiciais, o que se está a prestigiar é o “conhecimento do direito”. O que, na verdade, constitui um dos componentes de que trata o conceito de competência, assim definido por Boterf (2003): “competência seria a capacidade de saber agir num contexto profissional, de forma responsável e legitimada, por meio da mobilização, da integração e da transferência de conhecimentos, habilidades e capacidades em geral” (destaque nosso). Contudo, há que se ressaltar que, imbuído da condição de condutor do processo judicial, o juiz deverá ter competência para fazê-lo tramitar de forma regular, célere e sem riscos; deverá buscar extrair das normas processuais o que lhe for possível a fim de assegurar a concretização do justo. Ao responder sobre o trabalho jurisdicional, um magistrado participante da pesquisa assim se posicionou: O trabalho do magistrado envolve grande capacidade de tomar decisões adequadas e eficazes de forma rápida, na busca de soluções para diversos tipos de conflitos que se apresentam. Além de muito conhecimento técnico, exige criatividade, bom senso, coragem e firmeza. (M4) A Emenda Constitucional nº 45/2004, por sua vez, determinou que magistrados passassem a observar em seus julgados os efeitos decorrentes das súmulas vinculantes e da repercussão geral, acarretando com isso um certo inconformismo em parte da magistratura, que se vê alijada de sua prerrogativa de decidir sobre as lides que lhe são trazidas a juízo, tendo, portanto, que desenvolver competência que lhes assegure atuar de forma satisfatória de acordo com o novo regramento. A promulgação da Lei nº 13.655/2018 [13] trouxe mais um desafio para o agir do magistrado, que terá que considerar as implicações fáticas decorrentes de seus julgados. Isso significa dizer que o juiz terá que ser mais pragmático na construção de suas decisões, buscando nos textos normativos, nas teorias do direito, fontes para suas escolhas como elementos instrumentais para a construção da sua decisão, a qual deverá garantir objetividade e previsibilidade e, ao mesmo tempo, segurança às expectativas dos cidadãos por ela atingidos. Também integram este conjunto de competências a serem requeridas dos magistrados a sua capacidade de buscar, na sua prática, formas alternativas para a resolução dos conflitos, como as soluções autocompositivas. Essa forma de atuação remete à necessidade de desenvolver a capacidade da mediação do juiz, uma vez que “tomar decisão é mais do que resolver um problema, pois implica mobilizar valores, estabelecer raciocínios, enfrentar dilemas e decidir pelo que se julga melhor, mais justo, mais condizente para o sujeito e para a sociedade à qual pertence” (MACEDO, 2002, p. 127). Atualmente, o manejo das novas tecnologias, incluindo o uso da inteligência artificial, para vencer os grandes volumes de trabalho de repetição que assolam as cortes de justiça constitui também uma competência a ser requerida dos magistrados, não sendo mais possível aceitar a inoperância digital. Ainda tratando de competências técnico-jurídicas de um magistrado está aquela relacionada ao uso adequado da linguagem jurídica, seja como forma de expressão oral em audiências, seja como instrumento de elaboração de decisões e/ou sentenças. Nesse sentido, há que se ter cuidado para que a linguagem jurídica, sem menosprezo do linguajar jurídico, seja efetivamente um ato de comunicação eficaz, claro, objetivo, visto que “a linguagem do Direito é uma linguagem pública, social e cívica” (POSSATO, 2012). Assim, apuradas as respostas dadas pelos magistrados que participaram da pesquisa e considerando que competências sejam entendidas como capacidades a serem mobilizadas pelo magistrado em sua prática jurisdicional, compreendendo conhecimentos, habilidades e atitudes que integram o seu aparato pessoal, tem-se o seguinte conjunto de competências técnico-jurídicas a serem requisitadas de um magistrado. O juiz deve: – servir-se dos mecanismos de julgamento como súmulas vinculantes e julgados de repercussão geral para a formação de seus entendimentos como medidas que servem para a racionalidade e a uniformidade do sistema de justiça como um todo; – fundamentar suas decisões levando em consideração as consequências práticas delas decorrentes, conforme estabelecido pela Lei nº 13.655/2018; – buscar, na apreciação de ações sob sua competência jurisdicional, soluções autocompositivas e heterocompositivas para a resolução dos conflitos; – ter domínio sobre os procedimentos processuais; – utilizar novas tecnologias na sua prática jurisdicional diária e aprovar o uso da inteligência artificial para que se alcance uma jurisdição mais acessível e célere; – utilizar linguagem jurídica adequada. 4.4 Competências pessoais Pode parecer, à primeira vista, redundante falar em “competências pessoais”, uma vez que “a pessoalidade” é a característica fundamental da ideia de competência, pois não há como se atribuir competência a objetos ou artefatos (PERRENOUD, 2002, p. 141); somente as pessoas podem ser competentes. Ainda em se tratando de competência em sua dimensão pessoal, Zabala (2010) define que “o indivíduo deverá ser competente para exercer, de forma responsável e crítica, a autonomia, a cooperação, a criatividade e a liberdade, por meio do conhecimento e da compreensão de si mesmo, da sociedade e da natureza em que vive”. Quando se trata de competências pessoais do magistrado, é praticamente impossível separá-las da sua dimensão profissional, em que o conhecimento jurídico tem lugar de destaque. Entretanto, elas não devem restringir-se a ele: há outras habilidades e atitudes que são esperadas do juiz na sua prática laboral. E que, de certa maneira, acabam sendo confundidas com os valores e os princípios pelos quais o próprio Poder Judiciário é visto pela sociedade, que o fazem mais ou menos merecedor da confiança dos cidadãos. A partir da pesquisa realizada com o grupo de magistrados, foi possível apurar que as competências pessoais a serem esperadas de um magistrado referem-se a uma atuação de forma imparcial, independente e de acordo com os padrões éticos e legais na busca da justa solução para os conflitos e da estabilidade das relações sociais, devendo ter como base o respeito e a responsabilidade; um agir de forma flexível e equilibrada com a prática permanente da alteridade e da escuta ativa. Englobam também esse rol a participação em cursos de formação e aperfeiçoamento no início e ao longo da carreira; uma interlocução com os pares com o intuito de compartilhar experiências e conhecer novas práticas que possam contribuir para uma reflexão crítica com relação aos processos de trabalho visando sempre à melhoria da prestação jurisdicional. Ter uma atuação pautada pela independência e pela imparcialidade e de acordo com os padrões éticos na sua prática laboral, sem dúvida alguma, constitui uma das principais competências pessoais de um magistrado. O próprio Código de Ética da Magistratura Nacional assim determina em seu artigo 1º: Art. 1º O exercício da magistratura exige conduta compatível com os preceitos deste Código e do Estatuto da Magistratura, norteando-se pelos princípios da independência, da imparcialidade, do conhecimento e capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo profissional, da prudência, da diligência, da integridade profissional e pessoal, da dignidade, da honra e do decoro. Nesse sentido, a independência deve ser vista como uma qualidade prógona: “a própria essência da função judicial” (NALINI, 2012, p. 68). Outra importante competência a ser esperada do magistrado diz respeito a sua atuação em conformidade com os padrões éticos indispensáveis à concretização do justo. A eticidade de conduta permitirá que as decisões judiciais possam ser mais céleres, eficazes e efetivas, contribuindo assim para a valorização da própria magistratura. Também a formação e o aperfeiçoamento no início e ao longo da carreira constituem competência a ser desenvolvida pelo juiz, estando ínsita no Capítulo X do Código de Ética da Magistratura Nacional, consistindo em um direito dos jurisdicionados e da própria sociedade para que seja entregue uma prestação jurisdicional de qualidade como decorrência de uma formação permanente do magistrado. O ensino jurídico por si só não é suficiente para atender às necessidades do futuro magistrado, uma vez que se trata de um aprendizado centrado fundamentalmente no conhecimento técnico; ao passo que os conflitos atuais são bem mais complexos (os litígios ambientais, as invasões de terras, as grandes desapropriações, etc.), demandando cada vez mais juízes não apenas tecnicistas, mas dotados de criatividade, liderança, produtividade e inovação. Um dos depoimentos colhidos dos magistrados participantes da pesquisa bem traduz essas competências referidas: As virtudes de um bom juiz estão bem sintetizadas no Código de Ética da Magistratura: o magistrado deve ser imparcial e independente, evitando favoritismos e preconceitos. Deve pautar-se pela integridade profissional e pessoal, ciente de que a atividade jurisdicional impõe restrições e exigências e resguardo do cargo que ocupa. Deve ser transparente, documentando seus atos, informando os interessados acerca de sua atuação, de forma compreensível e clara. Na jurisdição, deve buscar a verdade com base na prova e dar às partes igualdade de tratamento, com cortesia e educação. Deve ser prudente ao decidir e ao administrar a equipe. Delegar o que pode ser delegado, sempre com supervisão e sob sua orientação. Deve evitar de se expor, tomando cuidado ao manifestar-se em redes sociais e em público, pois, ainda que possa fazê-lo, como cidadão, sua imagem está colada à atuação como juiz. Deve seguir estudando e usar o conhecimento para inovar e aperfeiçoar o sistema de justiça. (M8) A criação de uma Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) pela Emenda Constitucional nº 45/2004 foi extremamente adequada, pois possibilitou a implantação de um grande projeto de formação de magistrados a nível nacional tendo como fundamento uma perspectiva humanista, ética e multidisciplinar dos magistrados. Assim, em uma época de mais incertezas do que fiéis convicções, é necessário tentar buscar o melhor de cada um de nós e, nesta caminhada, o educar-se e o conhecer-se a si mesmo, sem dúvida, é trilhar na busca de uma convivência mais humana e fraterna, na qual a presença de uma justiça efetiva e igualitária será o grande farol a iluminar os caminhos (SELAU, 2019). Foi apontada ainda a interlocução com os pares para o compartilhamento de experiências e boas práticas como uma importante competência a ser trabalhada pelos magistrados como uma estratégia de atuação e melhoria dos processos de trabalho. A complexidade das demandas, a importância da administração dos tribunais, a própria cobrança dos cidadãos por decisões mais céleres e efetivas têm contribuído para que os juízes dialoguem mais com seus pares, inteirando-se de práticas exitosas, o que tem colaborado para a ideia de construção coletiva do sistema de justiça nacional. A escuta ativa, a prática da alteridade e uma atuação de forma ética, responsável, flexível e equilibrada também foram identificadas na pesquisa como competências a serem desenvolvidas nos magistrados. O próprio Código de Ética da Magistratura Nacional aponta como um dever dos magistrados agir de forma ética, equilibrada e flexível: “atitude aberta e paciente para receber argumentos ou críticas lançados de forma cortês e respeitosa, podendo confirmar ou retificar posições anteriormente assumidas nos processos em que atua”. [14] O juiz precisa exercitar a sua comunicação não distorcida. Não pode ele ignorar o significado concreto dos bens sociais. Daquilo que moveu as partes a recorrerem ao Judiciário. “Nem sempre é nítida a constatação de que dizer o direito não significa fazer justiça.” Contudo, “aperfeiçoá-la é o dever ético do juiz brasileiro” (NALINI, 2012, p. 246-247). No tocante à prática da alteridade e da escuta ativa, é importante que o magistrado se veja a si próprio na figura do outro e tenha presente que para julgar bem deva “transpor-se ao drama que se debate, comungando um instante que seja com a sorte dos litigantes” (BITTENCOURT, 2002, p. 193). Concluída a análise pela pesquisadora, foi possível apurar um rol de competências pessoais a serem requeridas de um magistrado. O juiz deve: – atuar de forma imparcial, independente e de acordo com os padrões éticos e legais na busca da justa solução para os conflitos sociais e da estabilidade das relações sociais; – participar de cursos de formação e aperfeiçoamento no início e ao longo da carreira, em cumprimento ao preceito constitucional que dispõe sobre a frequência e o aproveitamento de juízes em cursos reconhecidos de aperfeiçoamento; – buscar a interlocução com os pares a fim de compartilhar experiências e conhecer novas práticas; – debater e refletir criticamente sobre processos de trabalho com vista a obter melhores formas de atuação; – desenvolver a escuta ativa e a prática de alteridade; – atuar de forma ética, responsável, flexível e equilibrada. 5 Validação das competências Após a identificação dos quatro grupos de competências judiciais fruto da análise qualitativa empreendida pela pesquisadora e, portanto, bastante impregnada da sua própria percepção, buscou-se a validação desses achados por meio da realização de outra pesquisa – agora de cunho quantitativo. Para tanto, foi elaborado um outro instrumento de coleta no formato de um questionário online que foi enviado a juízes estaduais e federais do Brasil, tendo sido efetivamente respondido por um total de 264 magistrados, sendo 74 juízes estaduais e 190 juízes federais. Os dados foram coletados com a aplicação do questionário e tabulados por meio do aplicativo SPSS, sendo os resultados apresentados em forma de tabelas e gráficos com o propósito de permitir uma melhor visualização e compreensão das informações. No tocante à descrição dos dados, a pesquisa quantitativa foi dividida em duas partes: caracterização da amostra, considerando a sua distribuição por sexo, tipo de justiça, idade e tempo de magistratura; e análise descritiva dos quatro grupos de competências judiciais identificadas do magistrado brasileiro por meio da distribuição de médias e frequência. Pois, segundo ensina Malhotra (2005), em uma distribuição de frequência, “o objetivo é obter uma contagem do número de respostas associadas aos valores diferentes da variável”, sendo que essas contagens foram expressas em termos de percentuais. Essa análise possibilitou que se conhecesse, em cada um dos quatro grupos, o grau de concordância dos magistrados em relação a cada uma das competências indicadas e, também, quais aquelas que os juízes avaliaram como de maior relevância para o trabalho jurisdicional. Tomando como exemplo o rol das competências técnico-jurídicas apontado pela pesquisa quantitativa, é possível apurar que há concordância dos juízes com relação às competências identificadas e que integram esse grupo, uma vez que 59% responderam que concordam e 34,8% que concordam totalmente. Quanto ao nível de importância conferido para as competências técnico-jurídicas identificadas, apurou-se que a competência inscrita na letra “A” do questionário (“servir-se dos mecanismos de julgamento como súmulas vinculantes e julgados de repercussão geral para a formação de seus entendimentos como medidas que servem para a racionalidade e a uniformidade do sistema de justiça como um todo”) foi a mais citada na primeira posição. Finalizada a parte da análise descritiva da pesquisa, foram realizadas análises estatísticas multivariadas: teste t de student e análise de variância (ANOVA), que serviram para averiguar os níveis de concordância média dos magistrados respondentes em relação aos grupos de competências identificados, consideradas as variáveis de sexo e tipo de magistratura, estadual ou federal (teste t de student); e para comparação dos níveis de concordância médios entre os grupos formados por juízes de diferentes tempos de magistratura, ou seja, juízes com até 5 anos de magistratura, juízes com mais de 5 anos até 15 anos de judicatura e juízes com mais de 15 anos na carreira da magistratura em relação aos grupos de competências apontados na pesquisa qualitativa (análise de variância – ANOVA).[15] Considerações finais A importância da repercussão que têm as decisões judiciais na vida dos cidadãos em um Estado Democrático de Direito; a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004, que determinou a obrigatoriedade da formação inicial e o aperfeiçoamento permanente dos magistrados brasileiros; e, em especial, o projeto educacional da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), que tem por base o desenvolvimento de competências judiciais, motivaram a realização desta pesquisa para buscar identificar que competências judiciais seriam essas a serem requeridas dos juízes nacionais. É relevante destacar que o conceito atribuído a competência tomou como referencial teórico a formulação de Perrenoud (2002), para quem: [...] define-se competência como a aptidão para enfrentar uma família de situações análogas, mobilizando de uma forma correta, rápida, pertinente e criativa múltiplos recursos cognitivos; saberes, capacidades, microcompetências, informações, valores, atitudes, esquemas de percepção, de avaliação e raciocínio. Entende-se que a identificação dessas competências seja fundamental tanto para os processos seletivos de candidatos à carreira da magistratura, como para o planejamento de projetos educativos que possam trabalhar com o desenvolvimento das competências judiciais e que não fiquem calcados exclusivamente em conhecimentos técnico-jurídicos. O que se tem observado é que os magistrados possuem alta qualificação técnica, porém, muitas vezes, são desprovidos de saberes atitudinais e relacionais, o que pode tornar-se grave e mesmo acarretar resultados perversos para a prestação jurisdicional. “Juiz tecnicamente preparado, mas insensível, será incapaz de concretizar as promessas do constituinte. O insensível é quase sempre um burocrata” (NALINI, 2015, p. 267). Portanto, a relevância dos achados concernentes à identificação das competências a serem requeridas dos magistrados possibilita que os projetos educacionais das escolas de magistratura dos tribunais adquiram parâmetros seguros para operar no planejamento de ações voltadas à formação judicial, bem como constituam indicadores confiáveis para a realização dos processos seletivos dos concursos de ingresso na carreira da magistratura. Em uma sociedade tão notadamente marcada pela desigualdade social, torna-se primordial que os magistrados sejam selecionados e capacitados não apenas em razão de seus conhecimentos técnicos, mas sobretudo desenvolvam cada vez mais competências calcadas em habilidades e atitudes éticas, humanas, responsáveis, empáticas, visando à adequada resolução dos conflitos sociais e à estabilidade das relações sociais. Referências ARMYTAGE, Livingston. Educating judges: towards improving justice: a survey of global practice/edited reprint with updated research by Livingston Armytage. Netherlands: Koninklijke Brill NV, 2015. ARMYTAGE, Livingston. Leadership for judicial educators: vision for reform. Journal of the International Organization for Judicial Training, n. 3, p. 16-34, 2015. BEHAR, Patrícia Alejandra (org.). Competências em educação a distância. Porto Alegre: Penso, 2013. BELLEY, Jean-Guy. Vous qui êtes un client just et honnête. In: BARANES, William; FRISON-ROCHE, Marie-Anne. La Justice, l’obligation impossible. Paris: Autrement, 1995. BITTENCOURT, Edgard de Moura. O juiz. 3. ed. Campinas: Millennium, 2002. CASTANHEIRA NEVES, António. Digesta: escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 1. FIGUEIREDO, Luiza Vieira Sá de. Gestão em Poder Judiciário: administração pública e gestão de pessoas. Curitiba, 2014. LE BOTERF, Guy. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Traduzido por Patrícia Chittoni Reuillard. Porto Alegre: Artmed, 2003. MACEDO, Lino de. Situação-problema: forma e recurso de avaliação, desenvolvimento de competências e aprendizagem escolar. In: PERRENOUD, Philippe; THURLER, Monica Gather. As competências para ensinar no século XXI: a formação dos professores e o desafio da avaliação. Porto Alegre: Artmed, 2002. MALHOTRA, Naresh K. et al. Introdução à pesquisa de marketing. Traduzido por Robert Brian Taylor. São Paulo: Prentice Hall, 2005. MARTIN, Waine. 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[2] Art. 93, inc. IV: “previsão de cursos oficiais de preparação, aperfeiçoamento e promoção de magistrados, constituindo etapa obrigatória do processo de vitaliciamento a participação em curso oficial ou reconhecido por escola nacional de formação e aperfeiçoamento de magistrados”. [3] Art. 93, inc. II, c: “aferição do merecimento conforme o desempenho e pelos critérios objetivos de produtividade e presteza no exercício da jurisdição e pela frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento”. [4] Art. 105, parágrafo único, inc. I: “funcionarão junto ao Superior Tribunal de Justiça: I – a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, cabendo-lhe, dentre outras funções, regulamentar os cursos oficiais para o ingresso e a promoção na carreira”. [5] CCJ (2003) Op. N. 4. Strasbourg, 27 nov. 2003. [6] LEONARDO DA VINCI PARTNERSHIP PROJECT. Guidelines for initial training of judges and prosecutors. 2011. O Projeto Leonardo da Vinci é fruto da reunião de cinco países integrantes da Comunidade Europeia (Bélgica, França, Romênia, Espanha e Turquia) que se reuniram e criaram um projeto dedicado à formação e à preparação de seus magistrados. [7] SELAU, Isabel Cristina Lima. Formação de magistrados: as competências do juiz como referenciais para as ações de seleção e formação da magistratura nacional. 2019. 187 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Educação, PUCRS. [8] Anexo único da Resolução ENFAM nº 11, de 07 de abril de 2015, que dispõe sobre as diretrizes pedagógicas da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados. Boletim de Serviço do STJ, 9 abr. 2015. [9] Parecer CNE nº 16/99 – CEB, aprovado em 05.10.1999. [10] Diretrizes pedagógicas da ENFAM. Boletim de Serviço do STJ, 9 abr. 2015. [11] O método de Análise Textual Discursiva proposto por Moraes e Galiazzi (2006) “corresponde a uma metodologia de análise de informações de natureza qualitativa com a finalidade de produzir novas compreensões sobre os fenômenos e discursos”. [12] O Conselho Nacional de Justiça foi criado pela Emenda Constitucional nº 45/2004 e instalado em 2006. É um órgão que tem competência exclusivamente administrativa (não judicial) e abrangência nacional. Esse Conselho tem a incumbência de exercer o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e fiscalizar o cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados. [13] Lei nº 13.655, de 25 de abril de 2018, que incluiu no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre a segurança jurídica e a eficiência na criação e na aplicação do direito público. [14] Art. 26 do Código de Ética da Magistratura Nacional. [15] A análise de variância (ANOVA) é utilizada quando se deseja verificar se existem diferenças entre as médias de uma determinada variável (variável resposta) em relação a um tratamento com dois ou mais níveis categóricos. |